Há 36 anos, a construção da central nuclear de Moral de Sayago avançava. Hoje, em Miranda, a memória mantém-se.
In memoriam de Afonso Cautela
A história
Em Setembro de 1982, escrevia no Pela Vida, suplemento de informação e coordenação ecológica da Gazeta das Caldas, a propósito do II Festival Ecológica que se tinha realizado nesse Agosto em Miranda do Douro: “A 340 quilómetros do Porto e perto de 600 de Lisboa, na ancestral cidade nordestina, no interior isolado do país, pelo comboio que não chegou, pelo telefone sem ligação à rede nacional, pela má estrutura viária, longe do trepidar angustiante da sucessão de dias iguais, na bela e antiga cidade de Miranda, durante uma semana passaram mais de 300 ecologistas vindos de Espanha, Alemanha, Estados Unidos, França e, claro, daqui.”
Nesse artigo falo do empenho do então presidente da câmara Júlio Meirinhos (grande incentivador da Lhéngua Mirandesa) e do Padre António Mourinho (criador do Museu da Terra de Miranda e notável etnólogo), com quem estivemos e partilhámos empenhos, que tal como hoje em Ferrel, permitem ter aqui, hoje, uma terra empenhada em recuperar as tradições, desenvolver as suas potencialidades e valorizar o património.
Há 36 anos, a construção da central de Moral de Sayago avançava, onde hoje vemos uma enorme esplanada já terraplanada e infra-estruturada e instalações que serviriam para a refrigeração das águas que seriam lançadas no Douro.
A pressão de e em Portugal, a situação no país basco com a central Lemoniz alvo de sucessivos atentados, os preços no mercado internacional e um novo governo (liderado pelo PSOE, de Felipe Gonzalez) levaram a uma moratória, ao congelamento do programa nuclear. Infelizmente, no ano seguinte, entraria em base o grupo de Almaraz I, que é certo, logo em 1985, mereceria uma tomada de posição da CML, onde substituía ocasionalmente na vereação Gonçalo Ribeiro Telles, exigindo o seu encerramento. Nos primeiros anos os acidentes, bem graves, foram férteis. Infelizmente têm continuado e o risco a aumentar.
A actualidade
Hoje, em Miranda, a memória mantém-se e é com emoção que somos reconhecidos por este povo único. Em Moral de Sayago a vida parou. As esplanadas imensas, onde se poderia instalar um parque fotovoltaico, ou ser um local para eventos culturais, servida por um estradão (“una estrada ancha”, como me disse o dono de um bar), só servem de área de repouso e pastoreio de rebanhos de cabras e ovelhas.
A luta contra estes projectos, bem estruturada e com clarividência, permitiu criar sustentabilidade em Portugal e desenvolver novos segmentos de produção, seja no sector primário e terciário, seja na área da produção industrial de novas energias que são tributárias do facto de termos evitado a nuclear, termos terminado com a mineração de urânio (ainda hoje temos algumas centenas de toneladas para vender... e agora já não há Khadafi...), e conseguido abrir o sector energético e o mercado aos privados e às renováveis.
Hoje continuamos, todavia, a viver rodeado de mitos, de falsas notícias, de inverdades. Tive que desmentir, em Portugal e Espanha, a ideia mitológica que na zona de Ricobayo haveria um depósito de resíduos nucleares. Tenho regularmente que desmontar a falsidade dos custos das renováveis, que são financeiramente muito, muito menores que as nucleares, mas infelizmente “trumpeçam” num mundo que vive na lógica do título e do tweet. E não percebo como gente que se empenha contra tecnologias do passado tenta com a mitologia das taxas e taxinhas dar o golpe de Brutus nas renováveis, ainda por cima esquecendo as questões da conservação e da eficiência, onde uma intervenção fiscal adequada seria da maior utilidade.
Esperamos que a nuclear seja rapidamente intransitiva e que nos permita concentrarmo-nos no outro problema central dos nossos tempos. A nuclear é um aliado da economia das energias fósseis, ao bloquear a transição energética, os investimentos necessários para alterarmos o uso final da electricidade e também a fundamental alteração do paradigma dos transportes.
Também em Miranda, em Atenor, encontramos uma base para um novo sistema de locomoção, a AEPGA, não que seja aspiração voltarmos à tracção animal, mas porque a recuperação do tempo, da ruralidade, a alteração para já da velocidade rodoviária, pode ser um elemento importante na fulcral alteração das mentalidades para sobrevivermos com as alterações climáticas.
António Eloy
Jornal Público
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