(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo - Brasil
- Eis aqui um trecho do texto “Menino Jesus da Silva”, mostrado pelo Teatro Itinerante nas ruas do Rio de Janeiro: “Maria mãe é terra/ Muito fértil, meu senhor/ José jogou a semente/ Que na barriga dela brotou/ O menino chega hoje/ Será filho da fome/ Ou homem respeitado/ Com diploma de doutor?/ Salve louvor esse menino/ Que pode endireitar esta nação/ Aqui está o brasileiro/ A ele foi dada a missão”.
O repente, ou desafio, também está presente fora da região nordestina. Como vimos no meu texto “O Cego Aderaldo”, o repente é utilizado também para professar religiosidade, quando passa a chamar-se de “cururu”. Nesse caso, ele funciona tal como um “mantra”, que se repete noite e dia, como verdade estabelecida daquilo escrito pela ficção. Em outros casos. Como mostrarei adiante, ele serve tão somente à louvação de Deus e dos santos.
O QUE É O CURURU?
Concebido como dança de roda, na zona rural da região do Médio Tietê, o Cururu foi levado como espetáculo ao público urbano, pela primeira vez em 1910, por Cornélio Pires, à mesma época em que este historiador levou também ao conhecimento de todos, a música caipira autêntica.
Apesar de ser inicialmente dançado, o Cururu é, sobretudo, um Canto de Repente, de modo que as letras, a melodia e a música são feitas com total improviso. Cada improviso deve respeitar um tipo de regra, conforme veremos adiante, no parágrafo “Regras para o Cururu”. Embora conduzido ao som de viola, que marca o compasso, além dos versos do cururueiro, o Cururu também tem na sua tradição, uma participação do público, que pode aplaudir uma combinação brilhante de palavras nos versos, ou então, criticar o desempenho do canturião, quando este perde o compasso da viola e "perde a batida".
Totalmente improvisado, mas cumprindo regras determinadas pelas tradições folclóricas, o Cururu foi criado por motivos religiosos, com base em eventos da igreja Católica Apostólica Romana, principalmente nas Festas em devoção ao Divino Espírito Santo. Quando chega a hora em que ocorre o "pouso do divino", o cururueiro começa a cantar para saudar a chegada do Divino. Nessas ocasiões, o canturião pode e deve mostrar todos os seus conhecimentos dos temas bíblicos (e com eles construir uma história), assim como deve mostrar toda sua habilidade em lidar com as rimas e o repente, propriamente. Dessa forma, o Cururu é uma história cantada, onde o assunto é o louvor ao Divino.
A maneira de se fazer o louvor e a “carreira” a ser seguida, são decididos pelos próprios carurueiros, que o fazem no início da cantoria. O Cururu também pode ser denominado “canto de repente”, só que o diferencial do repente paulista para os demais, como o repente gaúcho e nordestino, está nas particularidades, como definiremos a seguir, mas o que todas elas têm em comum é a improvisação durante a apresentação musical. O cururu religioso é tradição de uma região específica do estado de São Paulo, o Médio Tietê, especialmente Sorocaba e Piracicaba. Portanto, o chamado “cururu de Piracicaba” é de cunho religioso, enquanto o cururu gaúcho (e o nordestino) é de contendas, onde um dos cururueiros tenta desestabilizar o oponente, fazendo-o feio, pouco inteligente, guloso, preguiçoso, magro, gordo, etc.
Há algumas versões a respeito da origem do cururu. Alguns dizem que remonta à época da colonização, do tempo em que os jesuítas se esforçavam para catequizar os povos indígenas dessas terras. As ladainhas e a devoção aos santos católicos, as bandeiras do Divino ou da Folia de Reis foram heranças deixadas pelos lusos ao mameluco tipicamente paulista, o caipira.
Conforme o cururueiro Zico Moreira, natural de Conchas (SP), dá-se aos bandeirantes o crédito da difusão do cururu. Diz ele, que os bandeirantes (portugueses) utilizavam o canto de improviso para louvar os santos e pedir o sucesso da bandeira.
“Se um cantador louvasse o santo de forma equivocada, outro cantador, também repentista, o advertia de seu erro, cantando um verso para chamar-lhe a atenção. O repreendido, por sua vez, fazia a réplica, também em versos cantados, à sua defesa. Dependendo do valor e inteligência da réplica, o acusador fazia outro verso na tréplica; e assim por diante. Na defesa de seus versos, cada um dos contendores fazia surgir toda uma linha lógica de pensamentos em adoração ao santo; dessa defesa surgiu, ao final, o desafio cantado do cururu".
O evento onde o cururu ocorre, é chamado de várias maneiras; costuma-se chamá-lo de “Festa do Divino” ou “Pouso da Bandeira do Divino”. Já o cururu é o “repente”, ou “desafio trovado” ao som de violas dos cururueiros (trovadores da região). Os desafios atravessam a noite e a madrugada, com revezamento de vários trovadores. E não há quem arrede pé, diante de uma boa porfia de “canturiões” (cantadores).
Cido Garoto, autor do livro “Cururu, Retratos de uma Tradição”, lembra-nos da noite de festa junina em que conheceu Nhô Zé (José de Moura Barbosa, paulista de Serra Azul –SP; poeta, compositor, radialista e empresário musical). Cido Garoto teria perguntado ao Nhô Zé como o cururu teria nascido. Nhô Zé lhe respondeu misturando Português com Caipirês:
- "Ói, moço, eu fui rezadô de terço nessa região e pelo que vi contá, nas minhas rezadas por aí, é que aquele tempo a gente guardava o Divino como se fosse defunto; a noite inteira”!
Tal noite de vigília era chamada pela gente simples de “pouso do Divino”. Em tais noites faziam a louvação da imagem do divino, cantavam hinos e louvavam os festeiros donos da casa. Ocorre que a caminhada a pé, entre uma casa e outra, podiam chegar a vinte quilômetros ou mais. Logicamente a “irmandade” se cansava, o sono batia” por vezes deitavam-se para descansar nos terreiros de secar café ou nas varandas das casas visitadas; muitas vezes eles traziam cobertas dentro de embornais. Dessa maneira, só restavam nas salas os rezadores e vizinhos, cantando hinos defronte ao altar do divino, para passar o tempo, até o dia raiar. O hino mais cantado, repetido à exaustão, era em “louvor a Nossa Senhora Aparecida”.
Contou o Nhô Zé, e o Cido Garoto publicou a fala; que a repetição era tanta “que chegava a ficar “injuativo”. E era tanta repetição, que alguns rezadores começavam a mudar a letra dos hinos, como se fosse uma paródia. O que ocorria nessas ocasiões é que, quando o pessoal da sala gostava do improviso, aplaudia o autor. A partir daí começou o interesse do improviso, de tal forma que o hino tradicional já nem se cantava mais. A partir de então, foram surgindo os melhores rezadores e repentistas rezadores, que eram disputados pelos festeiros, tentando trazê-los para sua festa, participando do seu próprio “pouso do divino”. E o cururu foi mudando, mudando, mudou e continua mudando, até hoje; em pleno Século XXI.
REGRAS PARA O CURURU
A principal regra do cururu é seguir uma rima (ou carreira). Quando o primeiro cantador inicia um verso, seu oponente deve repetir a rima ou carreira exatamente igual ao primeiro e assim por diante. O cururu pode ser cantado por dois cantadores, mas geralmente é cantado por quatro cantadores. O primeiro é parceiro do terceiro e o segundo do quarto. Se o número de cantadores for ímpar, desaparecem as duplas e é cada um por si. A maioria das rimas tem nomes de santos. (carreira do DIVINO: as rimas têm obrigatoriamente que combinar com o sufixo de divino (...ino); carreira de São João: as rimas têm obrigatoriamente que combinar com o sufixo de João (...ão), e assim por diante). Existem ainda as carreiras do Sagrado (...ado), carreira do “A” (dançá/ espaiá/ rezá/...á). Como o escritor Cido Garoto nos relata, “às vezes um cururueiro se enrosca, engole um tempo ou meio de compasso, pronuncia uma palavra com mais sílabas ou perde métrica ou o ritmo do verso. Quando o violeiro que canta é atento, ele atrasa o compasso, ou o adianta, para que tudo dê certo ao final. Na maioria das vezes a plateia nem percebe”!
Somente depois que apareceu o cururueiro Zé Moreira, é que algumas dessas regras foram quebradas dada a genialidade dele. Ele fazia o primeiro verso rimar com o terceiro e o segundo com o quarto; e ainda respeitava a “carreira” escolhida no desafio.
O CURURU JÁ ESTÁ EM EXTINÇÃO?
Segundo apurei, já que não li o livro em pauta; o livro do Cido Garoto, o “Cururu- Retratos de uma Tradição” relata também os percalços do cururu; relaciona os cantadores mais famosos, fala do perigo entre desafio entre um branco e um negro; elenca a ética no cururu, fala sobre os torneios de cururu e ainda organiza um glossário sobre o cururu. O livro ainda apresenta, como um dos ápices, as biografias de cerca de 200 cantadores de cururu e de violeiros que os acompanham, com fotos e breve descrição da carreira de cada um. O grande número de cururueiros é sintomático: serve como prova final para calar a boca daqueles que pregam a “extinção de nossas tradições”. O cururu continua; está preservado e vive no coração e na mente das gentes que cantam, respeitam e aprecia essa arte tão nobre de nosso folclore, oriunda do Médio Tietê paulista. O que este autor percebe na pesquisa que fez, ainda considerando o trecho inicial do presente artigo, até no estado do Rio de Janeiro e no Pantanal mato-grossense, o “cururu de Piracicaba” chegou; respeitando as tradições da região do médio Tietê. Estamos no século XXI, estamos também completando cem anos que Cornélio Pires difundiu o cururu (assim como a música caipira) aos citadinos.
É possível que o cururu religioso tenha também expandido para outros estados da federação; coisa que este autor não conseguiu “enxergar” em suas pesquisas. Este trabalho está apenas começando. Espero que haja outros interessados em continuar este trabalho, que reputo importante; para compreender os costumes dos brasileiros, mote que leva este autor a pesquisar tais assuntos. Portanto, não só discordo de que o cururu está em extinção, como acho que ele ainda dormita em lugares inimagináveis do Brasil. E como é gostoso saber disso; ao menos para mim!
CIDADES ONDE SE PODE VER E OUVIR O CURURU (estado de SP)
- Conchas, Laranjal Paulista, Piracicaba, Porto Feliz, Tietê, Sorocaba, Tatuí, Cesário Lange, Itajobi e Itapetininga; dentre outras.
ALGUNS CURURUEIROS FAMOSOS
Eis alguns nomes de cururueiros: Cido Garoto(mencionado acima); João Mazero; Zé Antônio; Moacir Siqueira; Manezinho; Toninho Pais; Noel; Wagner (de Porto Feliz); Alemão do pandeiro; Marcha Lenta; Narciso Pieroni (de Laranjal Paulista); Zico Moreira, (de Tietê - canta cururu desde 1924);Parafuso; Dito Carrara; Luizinho Rosa; Horácio Neto, (de Cesário Lange); Natalino Jesus (de Campos); Jonatas Antunes Nascimento (Jonáta Neto); Rubens Ribeiro e Toniquinho Batuqueiro (Antônio Messias de Campos- amigo de Geraldo Filme e Plínio Marcos, mencionado no meu texto “Pirapora do Bom Jesus e Bom Jesus de Pirapora”), etc. Já entre os cururueiros mais famosos do disco, estão os irmãos Vieira e Vieirinha, (de Itajobi), que brilharam no rádio nos anos 50.
ADENDO: A ORIGEM DAS MÚSICAS DE RAÍZ BRASILEIRAS
Quando os jesuítas (espanhóis) e os colonizadores (portugueses) começaram mostrar os cantos as modinhas de suas terras, estas se misturaram às músicas e danças dos índios brasucas da época. Daí apareceu gêneros que se enraizaram especialmente na região sudeste, depois no sul e centro-oeste do país, integrando a que ficou conhecida como "música caipira", como os catiras e cururus, as toadas e modas de viola. A viola de pinho, rústica e bela, cavada num tronco de árvore e com cordas feitas de tripas de animais (e depois de arame), foi sacramentada, na cultura rural, como seu instrumento-base. Entre as palavras do Brasil Colonial, surgidas do tupi e da mistura do idioma indígena com o Português, estão, por exemplo, "caipira" => junção de caa (mato) com pir (que corta). Já a palavra Cururu, que adveio de curuzu ou curu, que era como os índios tentavam dizer cruz. Curuzu. Em pleno Século XXI, o Brasil, Curuzu é também nome de logradouros públicos e até de bairros de cidades grandes e pequenas.
O radialista e compositor Ariovaldo Pires (sobrinho de Cornélio Pires), também conhecido como Capitão Furtado, compôs junto com um músico de nome Laureano, uma música chamada de “Assim Nasceu o Cururu”, onde escreveu esses versos:
“Catequistas se moviam
pra provar o seu amor
aos nativos que temiam
o estranho invasor
mas ouvindo o som mavioso
de uma viola a soluçar
o selvagem, cauteloso,
espreitava, a escutar”.
O cururu nasceu, pois, dos cantos religiosos, como afirmamos anteriormente, marcados por batidas de pé. Das festas ao redor dos oratórios (que em alguns lugares do Brasil são chamados de “capitéis”), ganhou os terreiros, nos acontecimentos sociais das fazendas e vilas. Nos anos 30, Mário de Andrade viajou pelo interior paulista e, nas suas pesquisas, observou que no médio-Tietê o cururu era um desafio improvisado; uma espécie de "combate poético" entre violeiros-cantadores, iniciado com saudações aos santos. Dessa forma ele ainda resiste em cidades como Piracicaba, Sorocaba, Tietê, Conchas e Itapetininga – a chamada região cururueira do estado de São Paulo.
Bibliografia
1)Artigo de Sandra Abramo, sobre o livro “Cururu - Retratos de uma tradição”
Autoria de Cido Garoto (Aparecido Garuti), edição 2003 contato com cidogaroto@yahoo.com.br ou cidogaroto@ig.com.br
2)Textos recolhidos em matérias de jornais e na internet, além de memórias do próprio autor do artigo.
Criado em: 28/02/2011 09:21:00 h
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos. É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos” e quatro em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”.
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