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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 30 de julho de 2019

OS ERROS DE JEAN-JACQUES

Nunca li uma única linha de rousseau. Há muita coisa para ler e o tempo não dá para tudo. No entanto já tropecei nele vezes sem conta e parto do princípio que tenha mesmo dito que as pessoas nascem boazinhas, algo que contradizia o conceito de pecado original até então aceite, e depois se estragam no convívio com a sociedade (quer dizer, com as outras pessoas). Não se podendo avaliar ninguém sem saber o contexto em que afirmou o que afirmou, arrisco ainda assim um pequeno comentário a essa ideia, à primeira vista inocente, mas que quanto a mim tem feito estragos no mundo de há duzentos e cinquenta anos a esta parte.

É certo que do seu ponto de vista, adotado depois pelas esquerdas, o indivíduo é considerado corrompido. Mas não tem que se preocupar, pois a culpa cabe inteirinha aos outros indivíduos. Alguém sugeriu que não existe coisa tão idiota que não possa ser dita por um filósofo, o que me parece ter sido o caso. Se fôssemos paridos em estado de natural bondade e depois nos metessem à força no meio de seres alienígenas que, tendo em vista uma experiência científica qualquer, nos arrastassem aos caminhos do mal para ver o efeito, até se poderia aceitar essa teoria a que poderíamos chamar “das más companhias”. Que também se justificaria no caso de haver duas humanidades, uma malévola que formasse os grupos e as instituições e outra que se limitasse a deambular passivamente dentro deles.

Ora nem uma nem outra destas suposições é verdadeira. O suíço não reparou que a sociedade (os grupos) não existe como coisa concreta. O que existe são pessoas singulares que, embora de algum modo ligadas a outras, não deixam de ser as mesmíssimas pessoas, únicas entidades que possuem consciência, razão, vontade e capacidade de ação pela qual respondem. É inegável que aqueles a quem nos juntamos nos podem influenciar, e de que maneira. Basta pensar que muitas vezes a imbecilidade dos ajuntamentos é muito superior à soma das imbecilidades individuais, o mesmo se podendo dizer da sua capacidade de praticar o bem. Mas nós também os influenciamos a eles: se é certo que uma víbora que caia numa família ou numa repartição pode ter o mesmo efeito que uma maçã podre numa cesta, também se sabe que há no mundo almas que têm o condão de o mudar para melhor, não só agindo sozinhas como fazendo-o até muitas vezes contra tudo e contra todos.

Como membro de um grupo e companhia dos restantes membros, influencio e sou influenciado, beneficio e sou beneficiado, corrompo e sou corrompido. Para os outros, o outro sou eu. Tenho um papel em tudo o que acontece. Ajudo a fazer a sociedade que me faz. A história da pescadinha de rabo na boca, o dilema do ovo e da galinha. De forma que dividir a humanidade em duas categorias, uma constituída pelas pessoas singulares, inocentes, e outra pelos grupos, a origem do mal que se instalaria nelas, é um absurdo que me faz lembrar os filmes do faroeste – índios maus e cobóis bons; a desculpa dos miúdos que fazem traquinices – não fui eu, foi aquele; os pais dos miúdos justificando as ditas traquinices – as más companhias; ou, acrescentaria eu, a síndrome da vista cansada – ver bem ao longe e mal ao perto.

Esta distorção infantil que consiste em vermo-nos sistematicamente como vítimas dos outros foi assentando na mente coletiva pelas décadas afora antes de triunfar nos tempos que correm, acarinhada pelas esquerdas e pelo estado, explorada até à náusea pelos meios de comunicação. Basta dizer que quase não há hoje quem não derrame abundantes lamúrias por dá cá aquela palha e não entoe a canção do desgraçadinho quando se depara com câmaras de tv, um tique já quase tão natural como respirar.

Enorme obstáculo ao autoconhecimento (e ao conhecimento em geral), a vitimização é também por isso inversamente proporcional à responsabilidade, e também por isso muito nociva. Desde que começou a proliferar, há de haver meio século mais coisa menos coisa, vamos já com duas gerações avessas a regras e deveres, ética e civicamente deficitárias, mas que se choram. O mal está disseminado, pelo que me limito a exemplificar com algo que me toca de perto e incomoda imenso: nas escolas públicas há cada vez mais meninos que se conduzem como selvagenzinhos; do ponto de vista deles e dos papás a culpa é dos professores (cá está, da sociedade…), uns incompetentes que “não os conseguem controlar”.


Eduardo Pires
in:jornalnordeste.com

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