Jonathan Swift garantiu celebrada memória com o seu olhar sarcástico sobre a sociedade do seu tempo, nos fins do século XVIII, quando se vivia num verdadeiro caldo histórico, mistura de utopias a realizar logo ali com as inevitáveis expressões de soberba, inveja, preguiça e cobardia que não têm dado mostras de definhar neste mundo.
O seu personagem Gulliver é protagonista de viagens a territórios exóticos, artifício literário para reflectir sobre questões do mundo real. A primeira viagem foi a Lilliput, onde tudo era pequeno, corpo e alma das criaturas, governadas por imperador mesquinho, dado a crueldades para impor uma ordem que emanava das suas caprichosas convicções.
Uma das leis mais intrigantes determinava o lado certo para partir um ovo, norma que esteve na origem de um conflito latente, depois ostensivo, violento e sanguinário, levando o próprio Gulliver a fugir a sete pés antes que fosse cumprida uma sentença que o tornaria cego.
É interessante imaginar hoje uma nova viagem de Gulliver, desta vez ao nosso país, onde se tropeça na pequenez por todo o lado, não na física, porque as últimas décadas fizeram crescer as criaturas, mas nessoutra diminuta alma, que não cresce com papas, bolos, hotdogs e hamburgers. Curiosamente o designativo latino para pequeno é parvo.
Podemos estar num caminho perigoso quando nos confrontamos com frenesins ululantes de grupos fanatizados a exigir mais e mais regras, proibições, aumentos de penas máximas e humilhações públicas se não veem satisfeitos os seus desígnios, muitas vezes a imitar as festas da santa inquisição e com ânimo de participar em lapidações à maneira da que foi descrita nos Evangelhos, no episódio de Maria Madalena, afinal práticas de todos os dias por esses mundos fantásticos das diversas arábias, que continuam a castigar com pau e pedra quaisquer assomos de liberdade.
No Portugal de 2019 não faltaria inspiração ao escritor irlandês. Desde logo a tremenda ousadia do tratamento discriminatório das criaturas do reino, umas impantes de direitos, outras infestadas de desgraças, aquelas tratadas com luvas de seda, estas com botas cardadas a pisar os calos da miséria e do abandono. Enquanto pelas lisboas tudo vai um mar de rosas, um cidadão de Penhas Juntas, para se deslocar à sede de concelho (Vinhais), só o poderá fazer uma vez por semana, precisa de marcar o táxi colectivo e terá que desembolsar três a cinco euros na ida e outros tantos na volta.
Entretanto alguns iluminados dedicam-se a parir novíssimos direitos, manipulando a benevolência geral e rapidamente se arrogam a condição de novos profetas, hirsutos, rubicundos, apontando a unhaca em todas as direcções. Elegeram as beatas dos cigarros como o maior pecado do universo, mas não se preocupam com a trampa espalhada por todo o lado, que prejudica a convivência urbana e favorece a pestilência, porque entendem, eles e os seu apaniguados, os animais de estimação como brinquedos de sangue quente.
Valia a pena encher-lhes as ruas das capitais com vacas indianas para que pudessem sentir os efeitos desse primeiríssimo pecado que é a soberba.
Teófilo Vaz
in:jornalnordeste.com
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