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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

As epidemias e a minha gente no tempo da minha infância

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


A vida era diferente, nem melhor, nem pior. Como tudo na vida é relativo, umas coisas eram melhores, outras piores. Mas foi o tempo que nos coube vivermos e como em todas as gerações deixou marcas indeléveis em todos e em cada um.
Recordo-me dum tempo inseguro em que a semelhança com a angústia actual não estava longe! Posso, a esta distância temporal e à falta de melhor exemplo usar o que era a expectativa que pesava na comunidade no tempo em que a Tuberculose era o inimigo principal da sociedade portuguesa. Claro que esta enfermidade era de origem diferente desta, pois era causada por um bacilo e esta é de origem viral.
Os espaços temporais entre a infetação e a cura, ou a morte, eram incomparáveis, mas era igual a angústia da população já que se tratava de uma doença infecto-contagiosa que quando se instalava, destruía a paz nas famílias e no auge da epidemia, desconhecida como era, portava com ela a ameaça do sofrimento e da incerteza.
Foi longo o caminho até à sua erradicação e foi necessária muita tenacidade do povo, do Estado e das Ciências-Médicas até que lentamente se foi afastando e depois quase esquecida. Reapareceu de novo há uns poucos anos mas já sob a capacidade científica para a combater e salvar vidas com o conhecimento de todos os fatores que a transformam numa ameaça para a sociedade. Conheci algumas pessoas que passaram por esse pesadelo e guardo ainda a perceção do quanto esta doença foi estigmatizante.
A sociedade estava mais estratificada e o nível cultural desta era incomparável ao dos dias de hoje. As classes alta e média-alta estavam mais protegidas naturalmente, pois que a doença era prolífica onde a higiene não fosse levada à risca e a alimentação escasseasse e ou onde o vício particularmente o do cigarro campeasse.
É evidente que a classe média-baixa e a base da pirâmide, o povo, estavam mais expostos e por razão de todos estes fatores era mais atingidos. Foram tempos comparáveis aos atuais, mas de menos rapidez nos processos de contaminação e desfecho. As referências que faço devem ser tomadas como informação simplificada e sem pretensão a qualquer análise científica. 
Mas a vida da gente continuava no seu dia a dia, no trabalho, no convívio, nas instituições, em pleno gozo dos seus direitos e obrigações e sem esta ameaça constante que começa a envenenar o nosso sentido gregário.
Começa nas advertências primárias dadas pelas Autoridades à população como sejam: não apertar a mão, manter-se afastado dois metros da pessoa mais perto de si, lavar as mãos frequentemente, usar luvas de borracha e máscara cirúrgica etc,etc,. Tudo isto como estratégia para conseguirmos extirpar o vírus que sendo altamente mortífero não tem preferências de atacar as classes alta, média ou baixa. Leva tudo sem se saciar jamais. Felizmente o povo está hoje mais culto, mais sereno, mais abastado e mais paciente. E é aqui que está a força que a educação, a Escola e a ciência deram ao povo a partir do fim da segunda Guerra Mundial e que só como termo de comparação posso dar para que se veja a diferença entre as probabilidades de não se ser infectado hoje e comparativamente com o tempo da minha criação. 
O número de pessoas a viverem em condições de insalubridade é ínfimo.
A capacidade de tomar decisões sensatas e cientificamente orientadas deixa a sociedade do meio do século passado a anos-luz da atual. 
Há, muito bem implantado, um SNS que a todos atende de igual forma e há uma comunicação social que não dá tréguas aos erros dos responsáveis e os confronta permanentemente no ajuizar de actos e omissões. Em suma estamos mais avançados e conseguimos encurtar as diferenças entre o nosso país e os considerados de vanguarda. 
Ao correr da pena e quando escrevia as últimas frases ocorreu-me uma passagem que por insólita ainda hoje recordo com alguma condescendência, porque ilustra a diferença de conceito de vida de nos sentirmos membros de uma sociedade mais esclarecida e mais humanizada. Devia ter os meus doze anos, trabalhava na Pastelaria Ribeiro e o forno onde se cozia a pastelaria era aquecido com estevas e giestas que algumas mulheres da Boavista, apanhavam nos bosques que circundavam a cidade muito particularmente na Quinta do Lima ou do Calaia e outras, mas sempre em contravenção, já que vezes sem conta eram obrigadas a deixar o feixe pois os caseiros as apanhavam em flagrante e a lei do mais forte prevalecia. Dado que o cerco havia apertado um pouco, as mulheres passaram a ir menos vezes ao monte e naturalmente o "Stock" de lenha seca no sequeiro começou a baixar perigosamente.
Era quase Páscoa e a azáfama era muita e o consumo de lenha estava no auge. Posto isto o patrão mandou-me à Boavista a casa da tia Carrachela,  que mulher esta, só comparável à Padeira de Aljubarrota, para lhe dizer que estávamos quase sem lenha e que urgia procurá-la. Sigo para a Tia Carrachela e bato à porta. Sai-me o seu marido , homem já de uma provecta idade, mas também ele homem de armas e sempre pronto a contar uma história .
Eu conhecia toda a gente da Boavista e o Tio Carrachelo era meu amigo. Saudamo-nos e eu perguntei-lhe pela esposa e pu-lo ao corrente do que me levava ali. Respondeu-me que ela não estava, pois tinha saído com o burro pela arreata, na intenção de juntar alguns guiços para queimar à lareira pois ele era já ancião e tinha frio sem lume na lareira. Mas ... o patrão precisa das estevas para aquecer o forno, ripostei. Disse-me então: -Entra para aqui que te vou contar uma história. E eu entrei. Sentou-se e disse-me: -Há uns anos a "Minha"  teve necessidade de ir ao rebusco e o meu rapaz mais velho ainda mamava na teta. Disse-me: -Homem toma conta do garoto que eu demoro pouco. Assenti e o garoto ficou aí. Pouco depois o rapaz quis mamar na teta e eu não tenho teta e também não tinha leite. O moço berrava parecia que deitava a casa abaixo. Quando passou a ser de mais e ele não parava de berrar pela teta, fartei-me e pensei… que lhe dou em vez da teta? Decidi ir buscar o presunto que tinha lá em baixo na adega e cortei um bom pedaço que chegasse para ele e para mim. Cortei de novo o que era para mim e dei-lhe o que achei que ele seria capaz de comer. Quando lho passei para a mão levou-o à boca e com os olhos cravados em mim começou a moer. Gostou, comeu-o todo e nunca mais pediu teta.
Eu estava bem atento à narrativa e com este desfecho ri à gargalhada e perguntei: -Mas..., e a lenha? Que resposta dou? Contas-lhe esta história, eu não tinha teta nem tinha leite, usei o presunto. Ele não tem estevas nem tão pouco giestas, que queime a mobília.
Saí e o Tio Carrachelo sorria como quem dá uma grande lição ao aluno que ávido de saber, aproveitará o tempo para concluir que para grandes males grandes remédios.
Todos os membros da nossa sociedade deveriam saber esta história e pensarem que estamos diante de uma calamidade que só se resolve com desprendimento, sentido de sobrevivência e tenacidade. O tio Carrachelo abriu a reserva do seu tesouro por rusticidade, mas sentido prático.
E eu aprendi que há um tempo para poupar e outro para tomarmos decisões que nos salvem a vida. 

... O que a Pandemia me está a fazer à cabeça!!!




Bragança 01/04/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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