Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Existem momentos da vida que nos acompanham permanentemente, pelas emoções do instante que despertaram. Parece-nos que os trazemos aconchegados nos cantinhos da memória, só para nos oferecer um abraço de calor quando o tempo frio teima em despir-nos as esperanças.
São momentos que nos fazem recordar o que realmente vale a pena. Temos muitos, silenciosos, dentro de nós, à espera que lhes demos as mãos, de vez em quando. Mas somos crescidos demais para os escutarmos, porque apenas nos sussurram de mansinho ao lado do pensamento. E nós, já sabedores de todas as vidas, porque somos crescidos, perdemos há muito essa sabedoria tão particular de ouvirmos a nossa vida que, curiosamente, parece ser a única que desconhecemos.
Gosto de recordar o espanto da minha infância, como se o mundo se me tivesse revelado por inteiro, num dia de inverno em que a minha amiga Fatinha, levou para a escola a sua caixa de vinte e quatro marcadores coloridos. “Foi o meu tio que me ofereceu!”, disse-me com a sua voz terna, de menina, a rebentar de orgulho e uma certa pontinha de vaidade.
Os meninos da aldeia não tinham, assim, um “rico tio” como a Fatinha. Eu também não tinha. Por isso, com os olhos emocionados, a espreitar pelo canto da caixa de madeira, onde ela acomodara os seus magníficos marcadores coloridos, perguntei-me de imediato se a minha amiga saberia do fantástico tesouro que tinha em sua posse. Eu, que adorava desenhar e pintar, via ali todas as cores que poderiam dar encanto aos meus mais bonitos sonhos artísticos de criança, esculpidos a lápis de carvão numa simples folha branca de papel.
E o sol entrou-me pelo rosto dentro, desdobrado num gigantesco sorriso com sabor a verão, quando ela me garantiu que, sempre que a professora nos mandasse fazer um desenho, partilharia comigo tamanha raridade.
Gosto de recordar com saudade este instante. Um dos muitos que me permitiu à memória aprender lições imprescindíveis sobre o que realmente importa.
E o que importa? Importa esse olhar de criança, esse sentir de criança. Esse descobrir da simplicidade da vida com uma admiração tão imensa, que apenas o silêncio é possível de nascer como resposta capaz de ser proferida. Não vá aquele assombro assustar qualquer adulto que passe por perto. É que os adultos não sabem ler as emoções ditas no silêncio. Porque cresceram, ficaram cegos.
Para as crianças, o relógio do tempo não tem ponteiros. Já os adultos, só conseguem ouvir o som do tiquetaque. Para as crianças, o tempo é despreocupado, tranquilo, tem um compasso próprio. Para os adultos, parece que cada dia é uma réstia de passado, com ansiedade de futuro, num tempo que os atravessa cada vez mais depressa.
Enquanto as crianças constroem as suas estórias de forma poética, sem medo, e com elas voam para um mundo feito de arco-íris ao encontro da Terra do Sempre, são os adultos quem corre em passo acelerado em busca da Terra do Nunca, carregados de histórias que não os deixam sentirem-se em paz com eles mesmos.
As crianças seguem rumo a onde o vento as levar, num constante entusiasmo pela viagem. Os adultos, somente viajam ao ritmo do seu dorido “e tudo o vento levou”…
Já dizia Rubem Alves, entendido em coisas de crianças, que “viver ao ritmo de alegrias e tristezas é ser sábio”, e que “sapio, em latim, quer dizer, eu saboreio.”
O que pensam, tantas vezes, os adultos sobre o que as crianças pensarão sobre as suas vidas? Eu responderia, seguindo o dito popular, que “em terra de cegos, quem tem um olho é rei”. E creio, portanto, que será com elas, as crianças, que mais temos a aprender sobre estes assuntos do coração. Aí, nesse universo descomplicado que é muito menos ‘faz de conta’ do que o nosso, elas são reis e rainhas. E sabem, melhor do que ninguém, que tudo o que é demasiado pequeno para ser descoberto à vista desarmada, é o mais primordial, necessário e absoluto e, exatamente por essa razão, não pode ser escutado senão através da emoção.
A criança rainha que um dia fui ensinou-me mais esta, entre tantas matérias que fui aprendendo. Nos tempos de hoje, agrada-me sentir que o “… meu corpo de adulto pelo tempo foi esculpido, embora me sinta criança, num corpo crescido, com roupas de adulto, mas espírito despido…”, como escreveu o meu amigo Paulo Cesar, que tem cor de poeta na mão e olhar de criança no coração.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
- José Saramago -
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021: Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) e Nunca é Tarde (poesia).
Prefaciadora do romance Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021) e da obra poética Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021).
Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança, da Revista HeliMagazine e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.
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