No Jornal de Bragança de 5 de março de 1911 é anunciada, para o fim do mês, a visita do ministro da Guerra.
Já há comissão para os festejos e está projetado um banquete no salão do Grémio de Bragança.
O ministro acabou por chegar, só que com algum atraso! A 2 de abril, A Pátria Nova informava que, devido ao “mau tempo, foi adiada a visita do titular da pasta da Guerra para o próximo dia 7”. Como não podia deixar de ser, este órgão de informação vai fazer uma grande cobertura da visita: extensos artigos de fundo, onde se faz política e propaganda, informação sobre o programa das festividades, relato circunstanciado das cerimónias, reprodução dos discursos oficiais.
A visita realizou-se nos dias 8 e 9 de abril. “Boas Vindas”, um autêntico manifesto político, faz a pedagogia com excelsos argumentos a favor da República, estabelecendo flagrantes diferenças em relação à Monarquia; chama a atenção para a pobreza e a decadência da região brigantina, outrora próspera, para os problemas mais profundos e para as mais ingentes necessidades; enaltece as inúmeras e excelsas qualidades do visitante e a sua ilustre folha de serviços; insiste em reivindicações ditas justas. “É a primeira vez que, depois da implantação do novo regímen, esta Cidade é visitada por um tão alto funcionário do Estado. Esse funcionário é ao mesmo tempo, e em conformidade com os princípios vigentes, um cidadão como os outros, cujos direitos e deveres são essencialmente os mesmos. Tem mais encargos apenas, encargos que, no presente momento revolucionário, são sobremaneira pesados, porque obrigam a reformar uma sociedade velha”.
“O ilustre hóspede com que todos os brigantinos se devem honrar, o prestimoso cidadão coronel Correia Barreto, não pertence à fase dos alquimistas na história da política portuguesa. Para o atestar, basta ler esse documento firmado por sua excelência em que se lançam as bases de um novo sistema de defesa pública em que há princípios indestrutíveis, por verdadeiros e justos, que nunca existiram no velho regímen. É uma das figuras científicas de maior destaque entre os homens de ciência do nosso País. Como homem de Estado, como cidadão prestante da República, como ministro da Guerra, vem sua exa. visitar uma das regiões onde os alquimistas da mais velha política fizeram maiores e mais profundos estragos”.
“Sua excelência vai ver o extraordinário grau de decadência das nossas coisas públicas, e decerto informará o Governo das necessidades mais urgentes e que por isso reclamam uma ação pronta e eficaz… Não se faz ressurgir num momento a atividade industrial de um povo, e devemos lembrar-nos que Bragança, outrora rica e próspera com a sua florescente indústria da sericicultura e veludos, está hoje pobre, debatendo-se na mais angustiosa das crises económicas. Miséria e baixeza moral, corrupção e pobreza, foi o que legou o regímen extinto.”
“A população escolar do nosso Distrito, tanto primária como secundária, aumenta gradualmente de ano para ano, por forma que podemos afirmar aos altos poderes do Estado que um povo que quer saber não quer morrer… A população escolar do liceu de Bragança é uma das primeiras dos liceus da República, excetuando os liceus centrais de Lisboa, Porto e Coimbra. Cerca de trezentos alunos frequentam o nosso liceu no corrente ano letivo… Essa circunstância, comparada com o depauperado estado económico em que se encontra a população do nosso Distrito, justifica inteiramente que pela nova reforma o nosso liceu possa fornecer aos seus alunos uma instrução secundária regular e completa. Do que mais carece, porém, o nosso Distrito é, sem dúvida, de educação profissional”.
“A agricultura está num estado verdadeiramente rudimentar.”
“O trabalho principal da região tem sido uma pseudoindústria… e que consiste no processo mais cómodo de viver à custa dos outros: a usura. O usurário é o verdadeiro industrial do nosso meio. Vicioso e corrupto ele ri-se dos que trabalham…”
“Todo este estado de coisas vai ser observado pelo ilustre homem de Estado, e confiamos em absoluto que o seu representante neste Distrito, sr. dr. João de Freitas, informará sua exa. com a imparcialidade e retidão de que tem dado subidas provas em todos os atos da sua pública administração”.
Na “sessão solene e extraordinária” que teve lugar na sala das sessões da Comissão Municipal Administrativa, “em nome da Cidade e do Concelho, foram dadas as boas-vindas ao ministro da Guerra”. Augusto Moreno procede às saudações oficiais. Da alocução proferida, há excertos que se nos afiguram significativos, quer pela denúncia das misérias destas terras, quer pelos méritos da República e pelas esperanças nela depositadas, quer pelos elogios feitos à ação do ministro e do Governo, quer ainda pelas promessas de fidelidade feitas ao novo regime…
Da intervenção que é feita pelo Governador Civil, há uma passagem que assume, como já sugerimos, um significado especial – que deve ser sublinhado –, porque permite avaliar o que teria sido a receção à República e o caminho percorrido até abril de 1911. O Governador “congratulou-se pela forma por que em Bragança era acolhido o ministro, “fazendo salientar a diferença que se observava entre o entusiasmo do povo neste momento e a frieza de há seis meses, quando ele viera nesta mesma sala fazer a proclamação da República”. Observou ainda, “com grande alegria, os progressos da ideia republicana no Distrito”.
Parece inegável, como se deduz e agora se reconhece, a “frieza” do povo aquando da proclamação da República, em Bragança, a 8 de outubro. Se assim não tivesse sido, o Governador Civil não o teria afirmado e reconhecido publicamente, ainda que se possa aceitar que o tenha dito para enfatizar o contraste com este momento “quente” que agora se vivia. Salienta ainda, sem que os possamos avaliar, os “progressos da ideia republicana” no Distrito, que parecem ter sido inequívocos. Progressos que são, aliás, comprovados por outros testemunhos e por outras fontes. As grandes desilusões viriam depois.
Se regressarmos à imprensa local ficamos a conhecer, ainda as mensagens das forças militares aquarteladas em Bragança. Fundamentalmente, e como denominadores comuns, sublinham a falência moral da Monarquia, identificam a Pátria com a República, prometem fidelidade a ambas e exaltam as faculdades e as virtudes do ministro.
Em A Pátria Nova de 16 de abril, o Governador Civil agradece (com data de 11) a receção e as celebrações “que a toda a população civil e militar da Cidade devem encher de legítimo orgulho e que constituíram uma verdadeira apoteose da República e da Pátria”.
Do relato da impressionante receção que traduz uma “consagração retumbante” da República, avançamos alguns apontamentos.
“Pelas 11 horas da manhã de sábado, começaram a afluir à Ponte do Loreto centenares de pessoas para assistir à chegada do exmo. ministro da Guerra, que devia dar entrada em Bragança ao meio-dia… Quando ali chegámos já se viam formados em alas, ao longo da estrada, os alunos de ambos os sexos da Escola Central de Bragança, acompanhados dos seus professores e professoras… De momento a momento iam chegando alunos da Escola Normal, estudantes do liceu, oficiais, funcionários e populares… Seriam 11 horas e meia quando chegou um batalhão do regimento de Infantaria 10 e um piquete de soldados de Cavalaria para fazerem a guarda de honra ao ilustre visitante… Depois chegaram os membros da Comissão Administrativa Municipal, conduzindo a bandeira o vereador sr. João Dias”.
“A concorrência aumentava cada vez mais, a tal ponto que, ao meio-dia, via-se repleta toda a estrada desde a entrada da ponte até perto da quinta de Santa Apolónia… Passava já da uma hora da tarde quando a atenção de todos se volveu para o alto do Forte de S. João, onde algumas dúzias de soldados erguiam vivas que mal se distinguiam: acabavam de avistar ao longe os automóveis que conduziam o ilustre membro do Governo Provisório da República, os oficiais da sua comitiva, o Governador Civil de Bragança… e o velho republicano sr. Rodrigues de Paula, que haviam partido no dia anterior para Mirandela para esperar nessa vila os nossos ilustres hóspedes”.
“Mais uns momentos e os automóveis paravam em frente da força. O entusiasmo começou então, ouvindo-se frenéticos vivas soltados por inúmeras pessoas que de repente rodearam os automóveis. Ao mesmo tempo a força de Infantaria apresentou armas, a banda do regimento tocou o hino nacional, e subiram ao ar algumas girândolas de foguetes, cantando todas as crianças, em coro, a Portuguesa.”
“Os vivas continuavam incessantes e ininterruptos…, até que se organizou o longo cortejo que ficou assim constituído: à frente seguiam em alas primeiro as alunas da Escola Central, depois os alunos da mesma Escola, com os seus professores, as alunas e alunos da Escola Normal, os estudantes do liceu com a respetiva bandeira, o exmo. coronel Xavier Barreto rodeado de cidadãos do elemento oficial e civil, muito povo, e por último, a banda do regimento de Infantaria e a guarda de honra de Cavalaria.”
Há vivas e foguetes, “e assim entrou o cortejo na Rua Alexandre Herculano. As janelas de todas as casas, lindamente ornamentadas com bandeiras e balões venezianos e das quais pendiam as mais belas e mais ricas colgaduras de seda e damasco, viam-se apinhadíssimas de senhoras que acenavam com lenços para a multidão e soltavam vivas que eram delirantemente correspondidos… Ao entrar na Praça Almeida Garrett, o efeito dos ornamentos das habitações desta e da Rua Direita não era menos belo, nem menos surpreendente. O grande edifício do Centro Republicano Emídio Garcia, muito bem ornamentado, tinha à frente alguns balões que, cada um com a sua letra, formavam a palavra ‘Bem-vindo’”.
“As janelas das casas da Rua Direita regurgitavam de senhoras. Aquela onda enorme de povo cada vez engrossava mais… Chegou o cortejo à Câmara Municipal, em frente de cujo edifício se encontrava o batalhão do regimento de Infantaria 10, e logo começaram a ser lançados no ar muitos foguetes enquanto a banda do regimento tocava a Portuguesa. O edifício estava excelentemente ornamentado”.
“Desceu o exmo. ministro da Guerra ao primeiro andar do edifício, aparecendo então na sacada ao público… que lhe fez uma extraordinária ovação”. Falou o oficial ajudante em nome do Ministro, “frisando a satisfação do sr. coronel Xavier Barreto em face da receção que lhe fora feita, e dizendo que, tendo-se aproximado todos desta terra com certo receio, motivado pela errada impressão que lá fora se tem acerca deste bom povo trasmontano, impressão baseada no atraso da cultura intelectual de que só a Monarquia era culpada, esse receio, afirmou, desaparecera por completo para dar lugar à mais grata sensação a respeito da sinceridade e hospitalidade do povo do Concelho de Bragança”.
“Saindo todos da Câmara Municipal, acompanharam o exmo. ministro da Guerra pela Rua Direita, Rua Abílio Beça, Praça Almeida Garrett e Rua Almirante Reis, sempre no meio de grandes aclamações, ao Grande Hotel Virgínia, que se achava muito bem ornamentado com heras e camélias pela parede, interiormente, e com colgaduras de seda e balões, exteriormente. Apareceram à sacada os exmos. ministro e Governador Civil”.
Prossegue o relato dos festejos: “Depois do almoço o sr. coronel Barreto visitou o quartel de Cavalaria e à noite o Centro Republicano Emídio Garcia, acompanhado do sr. Governador Civil. Seriam 7 horas da noite quando, no quartel de Infantaria 10, começou a organizar-se a marcha aux-flambeaux, cujo efeito devia ser deslumbrante”.
“Momentos antes, chegara a música de Izeda, que atravessara a Cidade tocando A Portuguesa, em direção ao quartel, a fim de se incorporar na marcha aux-flambeaux. As ruas, completamente iluminadas com balões venezianos que enchiam as fachadas das casas, produziam um efeito esplêndido, que em breve ia ser realçado com a passagem da marcha. Ainda não eram 7 horas e meia quando esta saiu do quartel, assim organizada: à frente um piquete de Cavalaria; em alas os soldados do regimento, conduzindo cada um na extremidade de uma pequena vara um farol; depois a música de Izeda e em seguida outros soldados com faróis, indo por entre essas alas de soldados alguns oficiais do regimento; logo após, via-se a corporação dos bombeiros conduzindo um carro lindamente ornamentado com bandeiras, ramos e balões; por último, a corporação dos sargentos em grupo, mais soldados ainda em ala, com faróis e a banda do regimento.O povo, em grande quantidade, acompanhava o cortejo, cuja disposição e efeito eram deveras surpreendentes.
As duas bandas de música tocavam A Portuguesa e os militares e o povo davam vivas calorosas com uma alegria sincera e comunicativa.”
“Em frente do Centro Republicano Emídio Garcia, foi feita ao ilustre ministro da Guerra, que apareceu com o sr. Governador Civil numa das janelas do edifício, uma ovação estrondosa que tocou as raias do delírio…
Continuou a marcha pelas ruas Almirante Reis, Cinco de Outubro e Alexandre Herculano, voltando novamente a passar em frente do Centro Republicano Emídio Garcia, onde outra manifestação louca, indescritível, se repetiu na presença do exmo. ministro da Guerra. Passou depois pelas ruas Direita e Costa Pequena, no meio de uma satisfação sempre crescente, recolhendo finalmente ao quartel. Entretanto, no Centro Republicano Emídio Garcia, o diretor desta casa, sr. dr. Alfredo Rodrigues, falava em nome de todos os sócios e na presença de muitos cavalheiros e senhoras, ao ilustre ministro da Guerra, que falou também em seguida, e depois o sr. dr. João de Freitas.
No domingo, ao meio-dia, realizou-se na parada do quartel de Infantaria 10 o Juramento de bandeiras, a que assistiu o ministro da Guerra. A parada achava-se repleta de povo e de senhoras, vendo-se também crianças do sexo masculino da Escola Central de Bragança com os seus professores. “Seguidamente, sua exa. dirigiu-se para a biblioteca do regimento onde, pelo sr. coronel Chedas Santana, lhe foi feita a apresentação dos oficiais… Ao fundo da sala e ao centro da parede estava oculto por duas colgaduras de seda o retrato do exmo. ministro da Guerra. O sr. Governador Civil descerrou aquelas colgaduras… Uma prolongada salva de palmas se ouviu, cantando todos os sargentos em coro A Portuguesa”.
“O sr. Coronel Xavier Barreto visitou todo o quartel… Subiu depois até ao alto do castelo, esse monumento nacional que constitui uma antiquíssima e admirável obra de não menos valor e sempre injustamente desprezada.
Sua exa. gostou de ver estes monumentos. Eram três horas da tarde quando retirou do quartel, indo visitar o hospital militar, o Governo Civil, a Associação Artística, onde foi recebido pelo presidente da assembleia-geral, o sr. dr. Faria, e por último, a carreira de tiro, que é uma das melhores do País”.
Vamos ao banquete. “O vasto salão do Grémio de Bragança, profusamente iluminado, era ocupado por uma grade mesa em forma de m, na qual a disposição dos centros, cheios de flores, dos cristais, dos talheres, etc. fora feita com apurado gosto. Às 7 e meia foram abertas as portas do salão, entrando todos os convivas. Sentou-se no lugar de presidência o sr. dr. Francisco Martins Morgado, ilustre presidente da Comissão Republicana partidária, tendo à sua direita o exmo. ministro da Guerra e à esquerda o exmo. Governador Civil.No palco viam-se muitas senhoras para assistirem a esta festa.”
Começou o banquete. Cada conviva tinha diante si o menu, que constava do seguinte: “Canja de galinha – Lampreia à duriense – Costeletas de vitela à portuguesa – Galinha à Mirandesa – Lombo de porco à Trasmontana – Mayonnaise de lagosta à Nacional – Perú, leitão e cordeiro à Brigantina. Sobremesas – Pudins à nacional, ovos de fio, pastéis e bombons – Queijos e frutas diversas. Vinhos – Tinto da região (Sabor), branco do Vaso de Ouro, Colares, Xerez, Porto (1870), Madeira e Champagne – Café e licores”.
Numa sala ao lado, a banda de Infantaria executava varias peças de música. “Às 10 horas levantou-se o sr. dr. Francisco Morgado para brindar, como presidente da Comissão Republicana partidária de Bragança. Brindaram depois os srs. Augusto Moreno, na qualidade de Presidente da Comissão Municipal Administrativa, dr. João de Freitas, Governador Civil, coronel de Artilharia Greenfield de Mello… Era meia-noite quando acabaram os brindes, terminando então o banquete, que decorreu com muito entusiasmo, tendo tomado parte nele 130 convivas.”
Segue-se a notícia de “A Partida”, que termina com esta nota: “Bragança esteve em festa durante dois dias.
Festa grandiosa, imponentíssima, que não teve a ofuscar-lhe o brilho nem a mais ligeira nota discordante”.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
Sem comentários:
Enviar um comentário