quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Câmaras com a corda na garganta

Estradas esburacadas. Parques de skate às moscas. Operações às cataratas em Cuba. Centro cultural com salas para centenas de pessoas em localidade de 7000 residentes. A vida dos municípios mais endividados de Portugal é feita de muita parra e pouca uva

O trator está estacionado à beira de uma estrada perto do bairro de Vale Geão em Vila Nova de Poiares, distrito de Coimbra. Cai agora uma chuva miudinha que hoje já caiu mais forte. A viatura tem um depósito atrelado do qual saem mangueiras que o funcionário da Câmara Municipal coloca num depósito de cimento enterrado no solo. "Todas as semanas temos de vir aqui despejar a fossa", conta. "Em menos de uma semana, fica cheia." Neste local, que concentra os despejos de prédios no limite da vila, ninguém é desassossegado pela operação. "Mas há casas, nas aldeias, onde é necessário retirar a janela [sic] para colocar as mangueiras, atravessar a sala de jantar e limpar a fossa", assegura o trabalhador que faz a extração. Aqui, apenas 20% do município está coberto por esgotos - a maioria da população, até mesmo na sede do concelho, depende do trator da Câmara para a cíclica limpeza das fossas. Os que as têm  chegam a pagar mais pelo serviço do que os cinco euros mensais cobrados na fatura da água aos que têm esgotos.


Um dos municípios mais desequilibrados do ponto de vista financeiro, com cerca de 20 milhões de euros em dívida, Vila Nova de Poiares é um local sui generis. Tem piscina municipal, centro cultural, parque de desportos radicais, uma imponente "Alameda" onde se realizam eventos ao ar livre, uma enorme cruz no centro da localidade, um jardim com estátuas que evocam profissões tradicionais da região e um sem número de outras coisas vistosas. Mas não tem saneamento básico. Em média, cada um dos 7200 habitantes deve 2776 euros mas a Câmara só recolhe receitas de 890 euros por munícipe. Por isso, quase todos os impostos locais e taxas estão no máximo. Para Alfredo Pinto, do PCP de Coimbra, falta apurar as responsabilidades da antiga gestão. "Porque no fundo, é o povo que paga o descontrolo das câmaras".


Face à situação, este é um dos primeiros municípios a recorrer ao Fundo de Apoio Municipal, o programa do Governo para acudir às autarquias falidas. "Não estamos a fazer qualquer tipo de investimento ou quaisquer obras. Só temos os trabalhadores necessários à manutenção dos serviços mínimos essenciais. Poupamos até na luz: a partir das cinco horas, cortamos a iluminação pública", nota o presidente da Câmara, João Henriques, eleito pelo PS em 2013, depois de 37 anos de gestão do social-democrata Jaime Marta Soares.

Preparados para 50 anos

Cerca das 10 da manhã de uma quarta-feira. Em frente a uma bica, Carla Pedroso de Lima, representante do PS na Assembleia Municipal, lembra que durante o último mandato de Jaime Marta Soares a sua bancada era tratada pelo então presidente da Câmara como "o infantário". "Durante as reuniões, tratava-nos por 'acéfalos', 'animais'. Um dia perguntou-se se eu estava a falar para um fardo de palha", relata a deputada municipal, professora do Instituto Politécnico de Bragança. Artur Santos, atual vice-presidente da autarquia, acrescenta: "Éramos das poucas autarquias em que nas reuniões da Assembleia Municipal estava presente um polícia municipal..."

Em  2011, os inspetores das Finanças notaram que a informação contabilística do município era insuficiente, subestimando o passivo e inflacionando os resultados. Segundo a auditoria, o município "violava todos os limites legais de endividamento". O documento notava ainda que o recurso ao Programa de Regularização Extraordinária de Dívidas do Estado, de 2009, ao abrigo do qual o município obtivera 4,6 milhões de euros, tinha resultado na "duplicação do endividamento em montante significativo". Entre 2007-09, sublinham os inspetores, "assistiu-se a uma prática sistemática de realização de despesas acima da efetiva capacidade financeira". Por isso, em 2010 o município teve de recorrer a um financiamento de longo prazo de 7,3 milhões de euros junto de um sindicato bancário. O spread da maior fatia, da CGD (4 milhões), foi estabelecido em 6%  ao ano. Esta semana, a autarquia deve receber uma resposta em relação ao seu pedido de uma verba urgente de 850 mil euros.

Em entrevista ao jornal i, Jaime Marta Soares, atual presidente da Assembleia-Geral do Sporting, não reconheceu qualquer responsabilidade embora tenha governado Poiares quase quatro décadas. "Soubemos fazer uma gestão com engenharia financeira para responder aos nossos compromissos", justificou-se. Nesse mesmo artigo, gabava-se: "Mesmo que duplique a população, todas as infraestruturas em Poiares estão preparadas para 40 ou 50 anos." 


Na verdade, nas próximas cinco décadas grande parte delas não vão ser usadas: os três centros educativos do concelho custaram 4,8 milhões de euros e só têm 15 das 25 salas em utilização. A piscina municipal coberta, construída em leito de cheia e cuja cave, no inverno, inunda, está fechada e o tanque principal rachou. A "Alameda" de três hectares onde se realizam eventos ao ar livre fica às moscas. O parque radical (skating) é usado aos fins de semana. As terraplanagens na serra do Bidoeiro, onde o anterior presidente pretendia construir um aeródromo, não passam de uma carecada num monte deixado ao abandono. E as quatro grandes salas do centro cultural têm neste momento uma exposição de um pintor francês, Noel Fignier, que vive no concelho, e ocupa apenas o hall de entrada.

Sem dinheiro para salários

António Leitão Amaro, secretário de Estado da Administração Local, é o responsável pela troika dos municípios. O Fundo de Apoio Municipal (FAM) é o instrumento criado para fazer face aos 1,8 mil milhões de euros de dívida das 43 câmaras mais endividadas do País - destas, 20 estão no grupo das superendividadas (ver mapa). O Fundo, com 650 milhões de euros, foi subscrito a meias pelos municípios e pelo Estado central.
"Ao criarmos este programa, acabamos por criar uma rede de segurança para todos os municípios. Será vantajoso também para os que não precisem do dinheiro, pois com esta rede os juros dos empréstimos têm tendência para diminuir. É uma espécie de seguro de crédito", realça o governante. 

A grande diferença para o programa de ajustamento da República é que o FAM prevê a negociação com os credores. Este primeiro passo é essencial para um município assegurar o acesso ao dinheiro do "resgate", que terá juros próximos dos que o Estado português paga nos mercados internacionais. "Os credores podem alongar os prazos de pagamento, perdoar juros de mora, baixar as taxas ou perdoar capital em dívida", nota o secretário de Estado. "Se os contribuintes fazem este esforço, é natural que os credores também o façam e, se calhar, é melhor receber 70% agora do que 100% daqui a três anos", sublinha.

"Sem o FAM, os municípios perdem a autonomia - alguns não teriam sequer dinheiro para pagar salários", defende António Leitão Amaro. O município de Aveiro foi dos primeiros a assegurar um financiamento de urgência ao abrigo do FAM, precisamente para pagar os ordenados dos 760 funcionários. "Sem a ajuda de emergência [de cerca de 11 milhões de euros], não poderíamos pagar aos funcionários em novembro e dezembro", testemunha Ribau Esteves, presidente da câmara de Aveiro, eleito em 2013 por uma coligação PSD-CDS.

Com 70 mil habitantes, Aveiro é a única capital de distrito entre os 20 municípios mais endividados. A autarquia deve cerca de 150 milhões de euros, a maioria à banca. Anualmente, tem receitas na ordem dos 40 milhões. Algumas dívidas a fornecedores têm mais de 10 anos. "Para nos pormos em ordem, vamos precisar que o FAM nos empreste entre 70 a 90 milhões de euros", estima Ribau Esteves. Parte desse dinheiro, defende o presidente, deve ser canalizado para o programa de rescisões amigáveis com trabalhadores do município, pois a autarquia "precisa de metade do atual número de trabalhadores".

Os turistas que no final de setembro contemplam os moliceiros a flanar nos canais poucas queixas terão da embaraçosa situação financeira do município. Mas basta sair das ruas mais turísticas para os problemas surgirem. Na zona sul do polo universitário, a Rua do Crasto parece ter sido bombardeada, tantos são os buracos desta via que circunda a universidade. André Reis, presidente da Associação Académica, junta ao mau estado das estradas a falta de apoio para a realização da semana académica: "Deixámos de receber os quase 20 mil euros que a Câmara nos atribuía", nota o estudante.

Entalados no autocarro

Faltam cinco minutos para as oito da manhã. No centro de Eirol, em frente do adro da igreja, há um saco de pão pendurado à porta. Nesta freguesia (agora fundida com a do Eixo), a 13 quilómetros do centro de Aveiro, ainda há uma ambiência rural. As árvores em redor do cemitério estão cheias de pássaros chilreantes. À porta do único café aberto, um magote de homens que trabalham na construção civil tomam um copo. ?E agora, começam a chegar as crianças. 

Vitor Marques traz a filha numa carrinha. "Até ao ano passado, tínhamos um transporte apenas dedicado às crianças que vão para a escola", nota. Este ano, devido à situação financeira da Câmara, o transporte passou a ser feito numa carreira regular. "Despediram os motoristas. Hoje, não há uma rede de transportes que sirva o concelho", acusa o pai de Marta, 8 anos, que frequenta a escola na vizinha localidade do Eixo. 

O autocarro já vem cheio. Dentro da viatura, os garotos seguem como farinha num saco. À saída do autocarro, já em frente da escola básica integrada do Eixo (do 1.º ao 3.º ciclos), os alunos são por fim desempacotados. Uma funcionária aguarda com uma cadeira de rodas um rapaz deficiente que  veio no autocarro. "Hoje, muitos dos pais têm medo de enviar os filhos no transporte público e preferem trazê-los de carro", sublinha, furioso, Vítor Marques, que contou 72 crianças no autocarro, à chegada à escola. Ele é o promotor de um abaixo-assinado que recolheu a maioria das assinaturas dos pais de 15 crianças de Eirol, que exigem a reposição do transporte escolar.  Eduardo Feio, vereador do PS em Aveiro, responsabiliza "o sistemático desinvestimento nos transportes, a redução de carreiras e a passagem para uma empresa privada de parte dos circuitos" pela situação.


Ribau Esteves considera que "um autocarro cheio é sinal de boa gestão" e nota que a Moveaveiro, a empresa municipal responsável pelo transporte público, "deu o ano passado 2,2 milhões de euros de prejuízo", sendo necessário racionalizar a rede. Também tem uma resposta para os problemas nas estradas: "São necessários 15 milhões para as requalificar. As obras na Rua do Crasto deverão começar muito em breve, a obra está adjudicada." E ainda tem uma justificação para a queda das placas exteriores do estádio Municipal, uma obra de 80 milhões de euros de que a autarquia ainda deve 25 milhões de euros. "Uma caiu e retirámos as outras porque não ofereciam condições de segurança", explica. "O estádio tem um conjunto grave de problemas, houve falta de qualidade no trabalho."

Casa do avô grátis

O sol brilha na Praça Marquês de Pombal, este quadrilátero mandado edificar depois do terramoto de 1755, em Vila Real de Santo António. Na face nascente fica o hoje moderno edifício da Câmara Municipal, de onde o social-democrata Luís Gomes há três mandatos governa a autarquia, também uma das mais endividadas do País (ver mapa). Nas esplanadas, turistas ávidos pelo sol (agora ameno) do Algarve espreguiçam--se nas cadeiras antes da hora do almoço. 

"Grandes festas, projetos megalómanos e uma gestão que beneficia os privados estão na base do elevado endividamento da Câmara Municipal", acusa José Cruz, vereador eleito pela CDU em Vila Real de Santo António. "O presidente da Câmara trata a cidade como se tivesse 200 mil pessoas [o concelho tem 19 mil habitantes]", critica o eleito comunista. Segundo José Cruz, a dívida do município será atualmente de 79 milhões de euros, à qual se deve juntar a da Sociedade de Gestão Urbana, no valor de 48 milhões de euros. Para estes níveis de endividamento, nota José Cruz, foram gastos "milhões em festas, com artistas como David Brisbal e Rita Pereira". David Murta, do PS, garante "que a dívida não cresceu por causa de investimento em insfraestruturas: a requalificação da frente ribeirinha ficou por fazer e o parque empresarial não saiu do papel".


Mas Luís Gomes, ouvido pela VISÃO, contraria estes dados. "A dívida da Câmara é de 58 milhões de euros e a da Sociedade de Gestão Urbana é de 28 milhões de euros", assegura o edil. Qualquer que seja o valor certo, o município está incluído no grupo dos superendividados. Mas como foi  beneficiário do Programa de Apoio à Economia Local, não será forçado a recorrer ao FAM. "Só o faremos se as taxas de juro nos forem favoráveis", garante Luís Gomes. "Baixámos a nossa despesa em 40%, agora temos uns tostões e até queremos antecipar o pagamento de algumas dívidas", nota Luís Gomes. "Mas nunca desistiremos das nossas políticas sociais abrangentes", acrescenta o presidente.

Uma dessas políticas consistiu no envio de idosos para tratamentos às cataratas em Cuba. Segundo o Tribunal de Contas, entre 2007 e 2009 a autarquia gastou 640 mil euros com 220 pacientes. Num relatório de 2009, o Tribunal considerou o programa "ilegal" e notou que as operações em Portugal custariam 1900 euros enquanto foram pagos 2900 euros por paciente em Havana. "As pessoas esperavam quatro anos por uma consulta e seis por uma operação", contrapõe, hoje, o presidente da Câmara. ?O envio de pacientes para Cuba foi entretanto cancelado, mas um programa semelhante foi criado com uma unidade de saúde privada, que hoje gere uma clínica instalada no pavilhão desportivo municipal.

No município algarvio existem outros programas sociais. As famílias carenciadas recebem um cesto de alimentos mensal. Os que não podem pagar a renda recebem um cheque da câmara. A alguns são também pagos medicamentos e reduzidas as tarifas da água. E os idosos têm dois centros de dia, as Casas do Avô, nas quais podem fazer fisioterapia, aprender informática ou encenar peças de teatro. Por estranho que pareça, isso criou um problema à Misericórdia local. "Ficámos com metade das pessoas que costumávamos ter porque os centros de dia da Câmara são grátis", diz o provedor, Joaquim Aguiã, que assegura que as dívidas que a autarquia tinha para com a instituição estão a ser pagas.


"Antes os municípios não cuidavam das contas porque havia sempre um novo programa para os sanear. Agora, não será assim - o FAM e as suas regras vieram para ficar", garante o secretário de Estado António ?Leitão Amaro. Será?

Paulo Chitas (Reportagem publicada na VISÃO 1127, de 9 de outubro)

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