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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Biblioteca da Universidade de Coimbra faz anos no dia de uma zanga

A primeira edição de Os Lusíadas, de Luís de Camões,
 foi mostrada durante a visita guiada.
Na Caixa Forte estão guardadas preciosidades.
Livro feito à mão por um cartógrafo espanholBíblia
FOTOS: ADRIANO MIRANDA

Convencionou-se que a data de nascimento desta biblioteca seria a da mais antiga referência à sua existência.
Tem sido um corrupio de jornalistas. Desde que saíram as primeiras notas de imprensa com o anúncio das comemorações dos 500 anos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) que as visitas se sucedem. Seguidos por gente com câmaras de filmar e fotográficas, blocos de apontamentos, gravadores e microfones, o director e o director adjunto da biblioteca percorrem, pacientemente, espaços normalmente fechados ao público. Mostram estantes atafulhadas de livros, abrem caixas-fortes, folheiam manuscritos, expõem primeiras edições. No fim, agradecem - "É preciso sensibilizar os poderes para a necessidade de investir no livro", explicam.
José Augusto Bernardes, director da BGUC, perdeu a conta às cartas que escreveu e às reuniões que fez ou que solicitou a membros do Governo e a elementos das direcções de fundações, desde que tomou posse, há ano e meio. Pediu-lhes dinheiro - não recebeu nada em troca. "Não queria fazer uma festa - apenas digitalizar 500 documentos, recuperar algumas obras, adquirir uns poucos de livros, lançar outro, promover um congresso sobre o futuro das bibliotecas. Coisas assim...", enumera, enquanto empurra a porta do acanhado elevador.
Dirige-se à sala "dos reservados", onde podem ser lidos manuscritos e outros documentos raros. "Será que, com tantas notícias e reportagens, alguém que não respondeu, que respondeu "não" ou que disse "nim" percebe o que está em causa e se associa às comemorações? Quero acreditar que sim", afirma José Augusto Bernardes. Observa Maia do Amaral, director adjunto da biblioteca, que já colocou as luvas de algodão branco para folhear o primeiro rascunho de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. Chama a atenção para a última página, que termina assim: "De manhã, na cama, nesta casa da rua do Alecrim, parece-me que não fiz uma coisa de teatro; não sei, mas o teatro trágico moderno ou há-de ser isto ou não é nada." "Data: 8 de Abril de 1843", aponta o director.
José Augusto Bernardes dirige aquela que é considerada a maior e mas rica biblioteca universitária do mundo lusófono, com dois milhões de documentos. Reparte-se, actualmente, por dois edifícios: a muito visitada Biblioteca Joanina, acabada de construir em 1728, a mando de D. João V, e o mais discreto edifício principal, do Estado Novo, que entrou em pleno funcionamento no ano de 1962. Sabe-se que a biblioteca terá nascido em Lisboa, antes da transferência definitiva da Universidade para Coimbra. Quando, não é certo.
Tão antiga quanto a zanga
À falta de qualquer documento que assinale o momento da fundação da BGUC, convencionou-se que a data do aniversário seria a mais antiga referência à sua existência. No caso, à existência da "livraria" da sede manuelina da universidade em Alfama, Lisboa, cujos problemas são abordados numa acta do conselho das "scolas geraes do studo", que se realizou precisamente "aos xij dias do mês de feuereiro de mjl bcxiij".
Maia do Amaral sorri, quando coloca sobre uma mesa o tomo I dos Livros da Universidade de Lisboa, de 1506 a 1526. Abre-o na página da acta rasurada que contém o relato vivo de uma forte discussão entre o reitor e o recebedor, a pessoa que cuidava da livraria.
Faz hoje, precisamente, 500 anos, ficamos a saber, o reitor mandou que se fizesse um cano para escoamento das águas da livraria e também cadeias para prender os livros. E o recebedor, sem imaginar que entrava para a História da BGUC, respondeu que se recusava a fazê-lo. Com veemência, como se depreende da acta, segundo a qual Fernão de Afonso, o recebedor, disse que "bem ho poderiam mandar penhorar e prender que ele não auja de fazer cousa alguma por maes penas que lhe posesem".
São peças assim que desfilam sob o olhar dos jornalistas e posam para as máquinas fotográficas e câmaras de filmar. Noutra mesa está, já, um dos primeiros livros impressos, a Bíblia de 48 linhas, feita pelos sócios de Gutenberg, em que se detectam os esforços colocados na imitação da letra desenhada à mão - um meio, adivinha-se, de vender ao preço das bíblias manuscritas as que se produziam com muito menos custos, através de uma técnica pouco divulgada.
Apreciada aquela obra, surge o primeiro de três volumes manuscritos do Antigo Testamento, tão velho quanto seria hoje D. Afonso Henriques. Maia do Amaral corre as folhas e aponta as correcções feitas por alguém que apagou os erros, e reescreveu o texto com uma tinta que o tempo fez desmaiar. Antes, na Bíblia de 48 linhas, apontara os comentários ou a tradução que ao longo de muitas páginas acompanha a letra impressa. Segura os livros com delicadeza e percebe-se que tem expectativas sobre a emoção que provoca em terceiros. Ele próprio não as mostra.
Na Casa Forte
Há quem fale do toque, do peso e do cheiro do papel ou do pergaminho. O director adjunto da BGUC diz que os anos que já passou em bibliotecas e o pouco tempo que lhe resta para ali desfrutar dos livros o fazem ter uma perspectiva mais utilitarista das obras. Por exemplo: quando fala dos 500 documentos que serão digitalizados este ano (não se sabe ainda com que dinheiro), demora-se na referência à possibilidade de os investigadores tropeçarem, na Web, nos Códices de D. Flamínio, "um conjunto de imensa documentação memorialista, de uso pessoal, à mistura com papéis genealógicos e notícias da Carreira da Índia, onde se encontram, por exemplo, referências ao embarque de Luís Vaz de Camões".
O ex-director da BGUC que promoveu a digitalização de 8000 documentos do fundo antigo, Carlos Fiolhais, entusiasma-se, também, quando fala das possibilidades criadas pelas bibliotecas digitais. "Veja-se o fundo de Armando Cortesão, com 50 anos, que saiu directamente de um cofre para o mundo e que agora é de todos nós", comenta. José Augusto Bernardes elogia a tenacidade do antecessor e a própria biblioteca digital que ele lançou, mas suaviza o discurso, preocupado com quem "considera que a digitalização dos documentos dispensa que se invista na conservação, no tratamento e no restauro dos livros".
"Mesmo no meio académico, há quem me critique quando peço espaços alegando que o digital não ocupa as estantes", lamenta. Também Maia do Amaral faz questão de sublinhar que "nunca o digital poderá substituir o códice".
Dias mais tarde, no seu gabinete, o director adjunto há-de servir de guia numa visita virtual até uma das obras que mais curiosidade despertam a quem ouve falar na BGUC. "Vá à página do Google e escreva alma mater. Entre os primeiros resultados da pesquisa aparece a Biblioteca Digital de Fundo Antigo da Universidade de Coimbra, certo? Abra a página. À esquerda, escolha "índices gerais"; seleccione a opção "datas", depois clique sucessivamente em "começados por" 1500, "década de" "1570" e "1572". Ora aí está ela, a primeira edição d"Os Lusíadas", indica.
No monitor do computador vê-se a folha de rosto de um dos cerca de 30 exemplares que existem da primeira edição da obra de Luís de Camões. Em cima, o pelicano com a cabeça virada para a esquerda do leitor prova que não se trata da edição contrafeita; em baixo, no fim da página pode ler-se: "Impresso em Lisboa com licença da Santa Inquisição e do Ordinário, em casa de António Gonçalves, Impressor."
A visita virtual àquele exemplar de Os Lusíadas é o máximo a que a maior parte das pessoas pode aspirar. O livro está guardado no sítio mais seguro e inacessível da biblioteca, a Casa Forte, um espaço semicircular forrado a aço, com dois andares de prateleiras vulgares, metálicas, onde estão as obras mais valiosas. O director da biblioteca assegura que não conhece o segredo que permite abrir a porta.
Do lado de dentro, Maia do Amaral aponta os pormenores, com a mão enluvada. "Vê-se que foi uma obra muito estimada, muito lida e por isso várias vezes encadernada - de cada vez que isso aconteceu, as páginas foram aparadas", indica. As margens, desiguais, estreitaram-se de tempos a tempos, como se percebe pelas amputadas notas escritas à mão, algumas delas "canceladas" (ou, em linguagem mais perceptível, riscadas) pelo proprietário do livro que sucedeu ao seu autor.
É raro alguém ter oportunidade de olhar para o livro. "Acontece apenas em circunstâncias excepcionais", esclarece Maia do Amaral. Refere o caso de investigadores que querem observar e analisar o papel, para datação. E noutros.
Depois de alguma hesitação, o bibliotecário, que está na casa desde os anos 1980, conta que, num dia quente de Verão, apareceram um rapaz e uma rapariga na biblioteca deserta de estudantes, a pedir para verem Os Lusíadas. Não estando excessivamente ocupado, o director adjunto, curioso, ouviu os jovens explicarem que eram luso-descentes e que tinham viajado do Canadá a Portugal à procura das suas raízes. Num impulso, foi ao cofre e regressou com o livro.
Não vale a pena alguém tentar imitar a graça, Maia do Amaral nunca mais fará, muito provavelmente, o mesmo gesto. Mas não se arrepende. Recorda a emoção dos jovens, que não chegaram a tocar no livro, mas puderam observá-lo. Ele, Maia do Amaral, não é homem para cenas de entusiasmo. Diz apenas que nunca se arrependeu do que fez. "Foi uma situação excepcional", confirma.

GRAÇA BARBOSA RIBEIRO
in:publico.pt

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