(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Foto: José Manuel D. F. Santos |
Vamos acender lume que aqueceu mil invernos para esquecermos a geada e a neve buraqueira que cobre as telhas velhas que abrigaram muitas gerações.
Já matamos o porco, fizemos as alheiras, os chouriços, os salpicões e os butelos. Salgamos os presuntos e gastamos as noites à espera que o calor da lareira seque o fumeiro que será o aconchego de muitos dias.
Esta noite não veio ninguém para a nossa velada e ainda sobrou meia alheira que assamos em lume brando. Por isso, aqui estamos às voltas com os nossos pensamentos, pensando esta terra brava onde os homens obrigam as fragas a dar trigo, azeite, vinho, como quem troca suor pelos melhores produtos da natureza.
O Nordeste transmontano é sem dúvida esta rusticidade de têmpera velha, onde o tempo parou avaro duma cultura ímpar, cheia de mitos, de lendas, dum saber fazer ancestral onde o milagre da mão tece o linho, fia a lã, molda o barro, coze o pão.
Ligamos a televisão e o mundo é grande e orgulha-se do conhecimento científico, das novas tecnologias, do poder da engenharia genética. Os ricos combatem outros ricos e os pobres continuam a ser cada vez mais pobres. Contemplamos o Planeta sentados no escano da nossa casa, onde o nosso avô dormiu regalado no aconchego da manta velha, e sem saber porquê temos saudades de nós, temos saudades desta Terra a Nordeste que tem que preservar o passado e ao mesmo tempo conquistar o futuro.
Fala-se muito em desenvolvimento sustentado e ainda bem, pois temos que travar um certo crescimento saloio que nos envergonha, que transforma o nosso espaço urbano, cheio de riquezas arquitetónicas, numa amálgama de cimento, de prédios sem alma na ausência do vagar do pedreiro que morreu e levou consigo a delicadeza de afagar as pedras.
Contudo, este relicário transmontano não pode ser o último reduto para estudo duma antropologia que tragicamente vem participar na morte anunciada duma cultura que resiste, dolorosamente, à avassaladora cultura de massas. O Nordeste tem que renascer das cinzas e não podemos assistir serenamente à morte de tantas aldeias, onde há casas, fontanários, caminhos, mas onde o último habitante partiu há muito e para sempre.
O Distrito de Bragança está a atravessar uma profunda crise de sobrevivência e contudo quando lemos determinadas teorias ficamos com a impressão que ainda é aqui que encontramos a dignidade perdida da humanidade, porque existem sinais de esperança, de que ainda é possível encontrar o homem ético capaz de viver em sociedade.
Pela constatação de alguns paradigmas sociais, parece-nos que a nostalgia dum paraíso perdido regressa aos horizontes das nossas vidas. Sonhamos de novo com o homem comunitário, que não se reduz ao sonho perdido das aldeias de Rio de Onor, ou Guadramil, mas que finalmente tem a dimensão da permanência no nosso quotidiano. Para este homem comunitário o bem-estar da sua comunidade está em primeiro lugar e o seu próprio bem-estar é relegado para segundo plano.
Remexemos memórias e de novo encontramos o homem solidário, respeitador dos valores, das crenças, dos mitos, que em comunidade administra a sua propriedade e em comunidade define regras de comportamento e perspetivava o desenvolvimento em função de padrões comunitários.
Contudo, quando olhamos para a sociedade contemporânea onde impera um capitalismo liberal, no pior sentido do conceito, onde o dinheiro se sobrepõe ao homem, onde há cada vez maior pobreza e maiores riquezas, onde existe a exploração do homem e o apelo ao consumismo é constante, ficamos com dúvidas se o homem comunitário das nossas memórias transmontanas não será um paradigma perdido.
Mas, acreditamos que, é necessário agarrar a esperança, nem que seja a última esperança para que o homem transmontano ainda possa viver numa região de velhos comunitarismos, com dignidade e com moralidade.
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.
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