Arrancaram com celeridade ímpar as obras de adaptação do canal da linha do Tua, nos 76 quilómetros entre Carvalhais e Bragança, em mais uma ciclovia. A obra está orçada em três milhões de euros, sensivelmente 40 mil €/km, desconhecendo-se quantas estações e obras de arte serão beneficiadas no total dentro deste valor.
Surpreende-me que as autarquias de Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Bragança tenham resistido tantos anos ao assédio da extinta REFER em embarcar neste tipo de empreendimento “chapa 5”, para agora da noite para o dia o abraçarem em tamanha sintonia. O timing é ainda mais infeliz ao coincidir com o início da exploração privada dos 37 quilómetros ainda abertos, por um player turístico de peso que poderia estar interessado numa expansão para norte. Seguidamente, o valor do investimento é inusitadamente baixo, em comparação com outras ciclovias do género em Portugal. Para citar algumas, três milhões de euros custou igualmente a da Póvoa a Famalicão em apenas 28 quilómetros (107 mil €/km), e cinco milhões de euros a do Dão (49 quilómetros, 102 mil €/km); no Sabor, o rácio foi de 125 mil €/km, no Tâmega 167 mil €/km, e só a de Montemor-o-Novo se aproxima deste valor, ao custar 41 mil €/km, mas num percurso de 12 quilómetros em terra batida, com uma única ponte e sem recuperação de estações. Ora, de Carvalhais a Bragança existem 13 obras de arte e 20 estações, sem contar com a renda de 250 €/km a pagar ao Estado pelo canal (19 mil €/ano), mais o que for pedido pela utilização das estações.
Através de candidatura ao Programa Valorizar, as autarquias terão ainda de pagar pelo menos 2,6 milhões de euros pela ciclovia; numa reabertura ferroviária caber-lhes-ia pagar à volta de 5,7 milhões de euros, depois de candidatura a fundos comunitários. Sim, por mais 3,1 milhões de euros do que vão gastar numa ciclovia, estas autarquias podem trazer o comboio de volta a Bragança; é agora uma questão de escolher o que faz mais falta à região.
Depois, quem vai esta ciclovia servir? Estes três municípios têm índices de envelhecimento galopantes, entre os 200% e os 300%, agravados a cada novo censo, concentrando-se a maior percentagem de população idosa nas aldeias, algumas das quais sem transportes públicos fora do período escolar. Será portanto um convite à população para que se desloque aos centros urbanos a pé ou de bicicleta, no rigoroso clima trasmontano, em percursos com rampas como as do Quadraçal (sete quilómetros) ou do Vale da Porca ao cume ferroviário português (19 quilómetros), com inclinações médias de 2%? Por fim, se num centro urbano um corredor treinar dez quilómetros, ou um ciclista 20 quilómetros, estamos a deixar de fora 36 quilómetros de canal para uma utilização residual, mormente por visitantes – nas aldeias não faltam bons trilhos para corrida/BTT.
Em 2012, a Câmara Municipal de Bragança emitia uma nota contra o pedido de desclassificação da linha do Tua pela REFER, onde referia que não era uma decisão “sustentada numa política de coesão e de ordenamento para o território”, fundamentada num “somatório de episódios que levaram deliberadamente ao encerramento da linha do Tua”, arrastando “o nordeste Transmontano para uma situação de despovoamento acentuado e de empobrecimento” e de “eliminação ou redução (...) do serviço de transportes às populações”. Cinco anos volvidos, a autarquia dá uma volta de 180º, e põe a obra fácil e de lazer à frente da mobilidade de pessoas e bens no mais eficiente dos transportes terrestres: o comboio. À luz da discussão sobre a ligação entre a cidade e a estação de alta velocidade de Puebla de Sanábria, a qual se arrasta há quase uma década sem resultados práticos, esta ciclovia é a derradeira antítese dessa aspiração: negligencia o papel da ferrovia como artéria privilegiada entre o noroeste Peninsular e todo o nordeste Trasmontano até ao Douro Vinhateiro, passando por um renovado aeroporto de Bragança, e de movimentação de passageiros, matérias-primas e produtos de e para o território, a menor custo que pela rodovia.
Restam por fim duas questões: a primeira, é de que forma este projecto pretende salvaguardar o património e memória industriais ainda presentes in situ, por exemplo nas estações do Romeu, Cortiços, Macedo, Azibo e Sendas, bem como os marcos quilométricos ainda existentes no canal, tendo o Movimento Cívico pela Linha do Tua agido ao longo dos anos no sentido dessa mesma preservação, em acções como o “Entrar na Linha”; a segunda, é se a interessante e correcta opinião avançada pelo vereador socialista macedense Rui Vaz, de preservação do canal para a sua reactivação ferroviária, e construindo-se a ciclovia junto a este (o denominado rail-to-trail, tão utilizado por exemplo nos EUA), foi tida em linha de conta. Nada neste projecto faz qualquer sentido. O despesismo gratuito, o sentido de oportunidade, o virar de costas às necessidades das populações, a vista grossa a decisões estratégicas flagrantes no curto prazo, a comparação com o custo de reactivação da linha do Tua, mesmo depois dos constantes avisos sobre estes números, remetidos tanto a nível pessoal como por associações como o MCLT, são inqualificáveis.
Fazer esta ciclovia é um acto imediatista e de pequenez, com consequências graves, e que deveria ser melhor escrutinado, tanto pelas Assembleias Municipais, como pelos próprios munícipes.
por Daniel Conde
in:transportesemrevista.com
Nota: O autor optou por não escrever segundo as regras do Acordo Ortográfico
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