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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Verão de 1984 / 4

 Nos últimos dias, o tempo tinha andado abafadiço, opressivo, a ameaçar trovoada. As gentes andavam de nariz no ar, adivinhando a borrasca. Sabia-se que aqui e ali, por esse país fora – Castelo Branco, Coimbra – se tinham abatido trovoadas destruidoras e que, fatal como o destino, por estes lados havia de cair uma também. E com efeito: oiço agora mesmo no telejornal que ontem, lá para os lados de Rabal, Bragança, uma violenta trovoada acompanhada de saraiva – pedra, diz-se por aqui – reduziu a cisco o que havia nas hortas e nas vinhas.
Pois hoje também andou por Grijó a trovoada. Felizmente sem as desastrosas consequências de Rabal e da Ereira. Mas trovejou, sim senhor, e granizou, e durante meia hora pareceu que ia tudo raso. É um espectáculo que mete respeito. O céu a enegrecer, a enegrecer, súbitos pés-de-vento a pôr tudo em polvorosa, e às duas por três aquelas terríveis foiçadas de lume que nos fazem arrepiar até ao mais íntimo de nós, logo seguidas do troar à uma de milhentas peças de artilharia, que aos poucos vai morrer longe, repercutido em todas as quebradas da Serra de Bornes. E a pedra a tamborilar em tudo quanto seja capaz de lhe servir de tambor e a fustigar as orelhas de quem foi apanhado de surpresa em campo aberto. Tem que se lhe diga, a senhora trovoada!
No fundo das casas, velhas avós chamam-se a Santa Bárbara: “Santa Bárbara bendita, que no céu estais escrita com papel e água benta, livrai-nos da tormenta...” Mas a coisa dura, quando muito, meia hora e o apaziguamento que se segue vale bem os temores e cuidados por que passámos. É como uma prisão-de-ventre cósmica que se tivesse resolvido e deixado, no seu lugar, uma sensação de bem-aventurança. O vento amaina, os rasgões de luz lá vão levados para cada vez mais longe, ainda rufa por lá o trovão, mas sentimo-nos agora seguros.
O tempo refrescou e convida a um passeio pelo prado.
Cheira a terra molhada. Mas, mais discretos embora, notam-se também os perfumes de todas as ervinhas, que o borrifo de água espevitou. A bicharada miúda anda numa freima. Um formigueiro abriu as portas de par em par e deixa sair revoadas de formigas-de-asa, que dir-se-ia esperarem apenas a bênção da chuva de Verão para irem cumprir algures o seu efémero destino. ‘Tem sorte o garoto que andava há dias a escarafunchar com o sacho no formigueiro,’ penso. ‘Desta vez enche o cabaço.’  
A estas formigas chama o povo trasmontano aludas, e a palavra tem um sabor arcaico que me delicia. ‘Aluda’ vem de ala, que diz o mesmo que asa. Quer dizer portanto ‘asada, provida de asas’. O sufixo é que me traz esse cheiro a Idade Média, em que foram forjadas palavras fortes como ‘teúda’ e ‘manteúda’, ainda hoje em uso jurídico. Usa-se também o elemento ‘–udo’ para fazer notar determinados aspectos morfológicos: orelhudo, pestanudo, narigudo, beiçudo, barrigudo… Mas em nenhum caso tem o mesmo sainete que em aluda.
Estas aludas, formigas avantajadas, com o seu centímetro, centímetro e meio de comprimento, negras e brilhantes, de asas sedentas de espaço, é que o rapazio usava já no meu tempo para cevar as pescoceiras ou costelos com que pelo fim do Verão dizimava tralhões, papa-moscas, rouxinóis, tanjasnos e outros ingénuos dentirrostros. Presas ao pingarelho da pescoceira por uma crina de burra, no seu movimento incessante e baldado para se libertarem, eram uma tentação para o passaredo, que caía às dezenas em cada manhã de caça, até que chegava o dia de São Mateus[21 de Setembro], e então, ‘pelo São Mateus deixa os pássaros que não são teus’, a mortandade acabava, porque os sobreviventes, temerosos do Inverno trasmontano, abalavam para climas mais clementes… e sem pescoceiras, imagino.
Hoje praticamente já ninguém vai aos pássaros. À uma, porque já os não há, ou quase. Depois, porque também já não há, ou quase, rapazes nas aldeias. O que vi há dias de sacho nas unhas é já avis rara. É, como os tralhões, uma espécie em vias de extinção. Como havia de haver rapazes nas aldeias, se tão-pouco há adultos? O espaço rural, que foi em tempos um autêntico alfobre formigando de vida, vai-se esvaziando e emudecendo…
E aí está como a trovoada, julgando eu que me distraía o espírito das inquietações dos tempos que correm, me pôs pelo contrário a cismar neles. Não valeu a pena, a trovoada.

(Conclui amanhã.)

A M Pires Cabral

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