Nos últimos dias, o tempo tinha andado abafadiço, opressivo, a ameaçar trovoada. As gentes andavam de nariz no ar, adivinhando a borrasca. Sabia-se que aqui e ali, por esse país fora – Castelo Branco, Coimbra – se tinham abatido trovoadas destruidoras e que, fatal como o destino, por estes lados havia de cair uma também. E com efeito: oiço agora mesmo no telejornal que ontem, lá para os lados de Rabal, Bragança, uma violenta trovoada acompanhada de saraiva – pedra, diz-se por aqui – reduziu a cisco o que havia nas hortas e nas vinhas.
Pois hoje também andou por Grijó a trovoada. Felizmente sem as desastrosas consequências de Rabal e da Ereira. Mas trovejou, sim senhor, e granizou, e durante meia hora pareceu que ia tudo raso. É um espectáculo que mete respeito. O céu a enegrecer, a enegrecer, súbitos pés-de-vento a pôr tudo em polvorosa, e às duas por três aquelas terríveis foiçadas de lume que nos fazem arrepiar até ao mais íntimo de nós, logo seguidas do troar à uma de milhentas peças de artilharia, que aos poucos vai morrer longe, repercutido em todas as quebradas da Serra de Bornes. E a pedra a tamborilar em tudo quanto seja capaz de lhe servir de tambor e a fustigar as orelhas de quem foi apanhado de surpresa em campo aberto. Tem que se lhe diga, a senhora trovoada!
No fundo das casas, velhas avós chamam-se a Santa Bárbara: “Santa Bárbara bendita, que no céu estais escrita com papel e água benta, livrai-nos da tormenta...” Mas a coisa dura, quando muito, meia hora e o apaziguamento que se segue vale bem os temores e cuidados por que passámos. É como uma prisão-de-ventre cósmica que se tivesse resolvido e deixado, no seu lugar, uma sensação de bem-aventurança. O vento amaina, os rasgões de luz lá vão levados para cada vez mais longe, ainda rufa por lá o trovão, mas sentimo-nos agora seguros.
O tempo refrescou e convida a um passeio pelo prado.
Cheira a terra molhada. Mas, mais discretos embora, notam-se também os perfumes de todas as ervinhas, que o borrifo de água espevitou. A bicharada miúda anda numa freima. Um formigueiro abriu as portas de par em par e deixa sair revoadas de formigas-de-asa, que dir-se-ia esperarem apenas a bênção da chuva de Verão para irem cumprir algures o seu efémero destino. ‘Tem sorte o garoto que andava há dias a escarafunchar com o sacho no formigueiro,’ penso. ‘Desta vez enche o cabaço.’
A estas formigas chama o povo trasmontano aludas, e a palavra tem um sabor arcaico que me delicia. ‘Aluda’ vem de ala, que diz o mesmo que asa. Quer dizer portanto ‘asada, provida de asas’. O sufixo é que me traz esse cheiro a Idade Média, em que foram forjadas palavras fortes como ‘teúda’ e ‘manteúda’, ainda hoje em uso jurídico. Usa-se também o elemento ‘–udo’ para fazer notar determinados aspectos morfológicos: orelhudo, pestanudo, narigudo, beiçudo, barrigudo… Mas em nenhum caso tem o mesmo sainete que em aluda.
Estas aludas, formigas avantajadas, com o seu centímetro, centímetro e meio de comprimento, negras e brilhantes, de asas sedentas de espaço, é que o rapazio usava já no meu tempo para cevar as pescoceiras ou costelos com que pelo fim do Verão dizimava tralhões, papa-moscas, rouxinóis, tanjasnos e outros ingénuos dentirrostros. Presas ao pingarelho da pescoceira por uma crina de burra, no seu movimento incessante e baldado para se libertarem, eram uma tentação para o passaredo, que caía às dezenas em cada manhã de caça, até que chegava o dia de São Mateus[21 de Setembro], e então, ‘pelo São Mateus deixa os pássaros que não são teus’, a mortandade acabava, porque os sobreviventes, temerosos do Inverno trasmontano, abalavam para climas mais clementes… e sem pescoceiras, imagino.
Hoje praticamente já ninguém vai aos pássaros. À uma, porque já os não há, ou quase. Depois, porque também já não há, ou quase, rapazes nas aldeias. O que vi há dias de sacho nas unhas é já avis rara. É, como os tralhões, uma espécie em vias de extinção. Como havia de haver rapazes nas aldeias, se tão-pouco há adultos? O espaço rural, que foi em tempos um autêntico alfobre formigando de vida, vai-se esvaziando e emudecendo…
E aí está como a trovoada, julgando eu que me distraía o espírito das inquietações dos tempos que correm, me pôs pelo contrário a cismar neles. Não valeu a pena, a trovoada.
Pois hoje também andou por Grijó a trovoada. Felizmente sem as desastrosas consequências de Rabal e da Ereira. Mas trovejou, sim senhor, e granizou, e durante meia hora pareceu que ia tudo raso. É um espectáculo que mete respeito. O céu a enegrecer, a enegrecer, súbitos pés-de-vento a pôr tudo em polvorosa, e às duas por três aquelas terríveis foiçadas de lume que nos fazem arrepiar até ao mais íntimo de nós, logo seguidas do troar à uma de milhentas peças de artilharia, que aos poucos vai morrer longe, repercutido em todas as quebradas da Serra de Bornes. E a pedra a tamborilar em tudo quanto seja capaz de lhe servir de tambor e a fustigar as orelhas de quem foi apanhado de surpresa em campo aberto. Tem que se lhe diga, a senhora trovoada!
No fundo das casas, velhas avós chamam-se a Santa Bárbara: “Santa Bárbara bendita, que no céu estais escrita com papel e água benta, livrai-nos da tormenta...” Mas a coisa dura, quando muito, meia hora e o apaziguamento que se segue vale bem os temores e cuidados por que passámos. É como uma prisão-de-ventre cósmica que se tivesse resolvido e deixado, no seu lugar, uma sensação de bem-aventurança. O vento amaina, os rasgões de luz lá vão levados para cada vez mais longe, ainda rufa por lá o trovão, mas sentimo-nos agora seguros.
O tempo refrescou e convida a um passeio pelo prado.
Cheira a terra molhada. Mas, mais discretos embora, notam-se também os perfumes de todas as ervinhas, que o borrifo de água espevitou. A bicharada miúda anda numa freima. Um formigueiro abriu as portas de par em par e deixa sair revoadas de formigas-de-asa, que dir-se-ia esperarem apenas a bênção da chuva de Verão para irem cumprir algures o seu efémero destino. ‘Tem sorte o garoto que andava há dias a escarafunchar com o sacho no formigueiro,’ penso. ‘Desta vez enche o cabaço.’
A estas formigas chama o povo trasmontano aludas, e a palavra tem um sabor arcaico que me delicia. ‘Aluda’ vem de ala, que diz o mesmo que asa. Quer dizer portanto ‘asada, provida de asas’. O sufixo é que me traz esse cheiro a Idade Média, em que foram forjadas palavras fortes como ‘teúda’ e ‘manteúda’, ainda hoje em uso jurídico. Usa-se também o elemento ‘–udo’ para fazer notar determinados aspectos morfológicos: orelhudo, pestanudo, narigudo, beiçudo, barrigudo… Mas em nenhum caso tem o mesmo sainete que em aluda.
Estas aludas, formigas avantajadas, com o seu centímetro, centímetro e meio de comprimento, negras e brilhantes, de asas sedentas de espaço, é que o rapazio usava já no meu tempo para cevar as pescoceiras ou costelos com que pelo fim do Verão dizimava tralhões, papa-moscas, rouxinóis, tanjasnos e outros ingénuos dentirrostros. Presas ao pingarelho da pescoceira por uma crina de burra, no seu movimento incessante e baldado para se libertarem, eram uma tentação para o passaredo, que caía às dezenas em cada manhã de caça, até que chegava o dia de São Mateus[21 de Setembro], e então, ‘pelo São Mateus deixa os pássaros que não são teus’, a mortandade acabava, porque os sobreviventes, temerosos do Inverno trasmontano, abalavam para climas mais clementes… e sem pescoceiras, imagino.
Hoje praticamente já ninguém vai aos pássaros. À uma, porque já os não há, ou quase. Depois, porque também já não há, ou quase, rapazes nas aldeias. O que vi há dias de sacho nas unhas é já avis rara. É, como os tralhões, uma espécie em vias de extinção. Como havia de haver rapazes nas aldeias, se tão-pouco há adultos? O espaço rural, que foi em tempos um autêntico alfobre formigando de vida, vai-se esvaziando e emudecendo…
E aí está como a trovoada, julgando eu que me distraía o espírito das inquietações dos tempos que correm, me pôs pelo contrário a cismar neles. Não valeu a pena, a trovoada.
(Conclui amanhã.)
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