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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 16 de julho de 2022

AS COISAS [...] — AS ANDORINHAS

 Depois de uma crónica dedicada aos sapos — uma dedicada às andorinhas. Depois dum bicho rasteiro, um volátil. Era inevitável. 
 Pois é sobre as andorinhas que eu, aninhado no meu cesto da gávea, assesto hoje o binóculo vigilante. Tal como já cantei os sapos, também estas sociáveis aves me deram já matéria para um soneto, publicado no livro “Trirreme”. Nesse soneto exprimia o meu júbilo por as andorinhas fazerem, pela primeira vez, o ninho nas minhas varandas (no soneto não eram varandas, eram beirais, tanto por exigência da rima como por concessão ao cliché). Segue-se que o soneto era uma aleluia pegada. Se fosse hoje, não sei se as cantaria com o mesmo entusiasmo. É que cheguei à conclusão de que ter andorinhas na varanda pode ser muito poético, muito ecológico, mas pode também ser uma fonte de dissabores. Já lá vamos.
 As andorinhas estiveram recentemente no centro dum tufão que agitou Vila Real. Deu-se o caso que os proprietários dum prédio da Avenida Carvalho Araújo resolveram mandar pintar a fachada do dito, e, pelos vistos, os pintores não estiveram com meias medidas: derrubaram à vassourada os inúmeros ninhos de andorinha que havia nos beirais. Diz quem viu que metia cortação ver os filhotes ainda quase implumes a esvoaçar pateticamente, sem que o esforço lhes evitasse a morte esborrachada no solo. E, tanto como isso, metiam cortação os pios afligidos dos pais, impotentes para valer aos filhos.
 Mas não quero enveredar pelo melodrama. Até porque aquilo que mete cortação a uma pessoa sensível pode ser fonte de gáudio para um dos muitos cavernícolas que andam por aí, disfarçados de gente do século XX. 
 Segue-se que quem não gostou nada da graça foram os ecologistas, que se amotinam aguerridos — e ainda bem que assim é — contra tudo o que lhes cheire a crime de lesa-natureza. Houve artigos apaixonados e recriminatórios em jornais da terra. E, quando eu pensava que a fervura tinha acalmado, eis que volto a ouvir a notícia, desta feita numa estação de rádio, já não local mas nacional, com declarações dum ecologista e da proprietária do prédio. Quero crer que uma erupção vulcânica no Picoto da Relva, aqui ao lado, não teria provocado metade do estrondo que provocou este caso das andorinhas.
 Fiquei então a saber que a andorinha é uma espécie protegida e que quem lhes destruir os ninhos fica sujeito a pesadas sanções.
 Julguei que a classificação de espécie protegida só cabia àquelas cujo número de indivíduos fosse já muito diminuto. As baleias, por exemplo, e as cegonhas, e o rinoceronte branco — e o inevitável lince da Malcata. Mas as andorinhas, senhores! Chego à janela, em qualquer tarde de Verão, e vejo-as às dezenas, voando, acrobatas incansáveis, defronte de minha casa. Não creio que estejam assim tanto em risco de extinção. 
 Quando era garoto, ouvia os velhos contar, nas férias da aldeia, que tralhões e andorinhas se cruzavam, nas suas migrações de sentido inverso. E então as andorinhas, que vinham para cá, perguntavam aos tralhões, que de cá partiam, dizimados pelas pescoceiras:
 – Donde vindes, tralhões loucos, que fostes muitos e vindes poucos?
 Ao que os tralhões retorquiam, azedos:
 – Para onde ides, andorinhas putas, que ides poucas e vindes muitas?
 Este diálogo era, naturalmente, no tempo em que os animais falavam. Posso estar enganado, mas creio que ainda hoje, no tocante à esbelta Chelidon urbica Lin., a situação não se alterou tão drasticamente que se possa considerar em vias de extinção.
 E depois, quem pode obrigar-me a tolerar as andorinhas nas minhas varandas? Quem pode, em boa justiça, aplicar-me uma multa de duzentos contos se eu destruir à vassourada os ninhos das andorinhas — coisa aliás que nunca faria se suspeitasse que havia filhotes no ninho? Só mesmo quem não faça ideia nenhuma da prodigiosa quantidade de excrementos que uma simples família de andorinhas pode produzir. Excrementos esses que elas — aves escrupulosas em matéria de limpeza — não consentem no ninho e baldeiam diligentemente para fora, sujando a roupa lavada que está no estendedouro e corroendo tenazmente as grades de ferro da varanda. Foi isto tomado em consideração por quem fez semelhante lei? Que lei é essa afinal, que protege as andorinhas e me desprotege a mim?
 Perante tão molestos inconvenientes, creio que estaria no meu direito em me retractar do júbilo do tal soneto e recusar tão poluente vizinhança. Mas não recuso, descansem os ecologistas. Sobretudo quando comparo os danos causados pelas andorinhas com os causados por certas vizinhanças humanas que, quer queira quer não, a essas tenho mesmo de aguentar, e cara alegre.

(Repórter do Marão, 14 de Julho de 1991)

A. M. Pires Cabral

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