Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Ao longo do vale, banhado por traços cálidos de uma natureza viva, a estrada dobrava-se sobre si mesma como um rio que aprendia o percurso para o mar. A viajante caminhava vagarosa, com pés distraídos, solícita às preciosidades escondidas em cada detalhe do caminho.
Subitamente, surpresa, olhou a árvore. A árvore que não era apenas uma árvore. A árvore colossal feita de tempo, esculpida por poeiras antigas e chuvas esquecidas. A árvore, majestosa, que era um mundo inteiro de pé, a tocar o céu com dedos enrugados de tanto abraçarem vazios e as raízes, que nunca desistiram de nascer, afundadas na terra como promessas que convidam segredos.
A viajante percebeu que a árvore estava ali desde que a idade se vestia de infância. Olhos entrelaçados, quais artérias de um coração ancião, a contemplar com brandura a fugacidade do mundo humano. Uma testemunha imóvel de eras esquecidas.
Ao aproximar-se, a viajante sentiu em si uma ressonância, quase impercetível, que parecia emergir não de um qualquer som, mas de uma tessitura de memórias veladas, como se a árvore lhe concedesse o privilégio da sua voz. Encostou-se ao tronco e fechou os olhos para melhor se entregar àquele estranho enlevo. E o silêncio ao redor metamorfoseou-se numa espécie de murmúrio que só o coração é capaz de sentir.
- Bem-vinda ao abrigo da minha eternidade! Aproxima-te, sem receio. Quero confiar-te uma missão.
A árvore pareceu sorrir com aquele sorriso de quem tem em si toda a sensatez que os sábios guardam nas rugas cavadas das mãos. E continuou:
- Sabes, menina, deveras fui um dia pequena, uma ervinha sem nome, um pedacinho de verde que mal conseguia sonhar alturas. Tive tanto medo dos ventos que hoje me enlaçam! Chorei pelas flores que eram o meu único agasalho… Assisti ao desfile de muitas estações que trocavam de roupa como quem troca de ilusão. E cada primavera me trazia sempre a fantasia do que julgava absoluto.
Depois, vi caminhantes aproximarem-se com olhos salgados e corações aflitos. Alguns deixaram sementes junto às minhas raízes com esperança de que algo feliz neles florescesse. Outros reclinaram-se no meu corpo à procura de alívio para as dores da alma. Vi-os enganados, carregados de pedras para plantarem. Guardo ainda os seus vestígios, as lágrimas, as tristezas que nunca se fizeram gritos, o peso dos seus fracassos escritos numa história que não desejavam, com medo de lerem o que ficou para trás. Solidões que não conseguiam compreender.
E nada passou verdadeiramente, tudo permaneceu no meu íntimo.
Por isso, hoje mais velha do que os teus sonhos, posso dizer-te que aprendi muito com os erros dos homens. E assim me fiz de silêncios que nenhum vendaval ousa romper, guardiã de muitas estrelas extintas que ainda iluminam a noite.
Escuta, pois, os mistérios que te vou contar…
A vida é uma lição de entrega. Crescer não é apenas ergueres-te ao alto. É igualmente enraizares-te profundamente no invisível, onde o alimento mais precioso é a paciência. Abraçar tanto o frio cruel como o calor ardente, resistir às tempestades ao dançar em harmonia com as ventanias incansáveis. E, com o passar das estações, aprender que, mesmo com os braços estendidos em direção ao infinito, é em cada aqui e agora que reside a tua força.
Um dia virá o outono e, com ele, a sabedoria do desapego e descobrirás que o passado é apenas raiz. Uma raiz que não prende. Alimenta.
E enquanto a árvore continuava a sua confissão, a viajante atentava naquela melodia que ecoava, feita de luz a mover-se por entre os ramos.
- Neste desabrochar de um novo ano, peço-te que olhes para os teus passos com a ternura de quem observa o alvorecer de uma pétala. Não julgues a terra que atravessaste, foi ela quem desenhou as pegadas que te trouxeram até aqui. E cada marca na passagem é a assinatura da tua coragem em continuar, mesmo quando o horizonte parecia desvanecer-se. Também não temas o desconhecido. Afinal, são as águas que caem sem aviso que trazem sempre consigo um pacto de renovação.
Aquela lição chegou como uma brisa amena à alma da viajante.
E ela ousou perguntar:
- Diz-me… Como encontrar a primavera se o meu coração está tão preso ao frio?
A árvore demorou, não respondeu de imediato. Deixou que o eco da pergunta terminasse de se ouvir. Depois, com a calma de quem sabe que todas as palavras se escutam a si próprias, respondeu:
- A primavera não é uma estação. Acontece, menina, no momento em que decides ser semente, mesmo sem veres o chão e sem avistares o céu. No instante em que aceitas que a chuva não te molha, mas te reinventa. Não corras atrás das flores; faz-te nutriente e elas virão.
A viajante sorriu. O sorriso de quem aperta a mão de um velho amigo antes de partir.
A estrada soava-lhe agora como uma delicada e perfeita canção. A distância que o olhar alcançava não se transformara, mas a viajante caminhava de forma diferente. Caminhava como quem sustém a alvorada no corpo. Como quem guarda o encanto no peito e um pedaço de firmamento dentro do olhar. Decidida a não permitir que a beleza voltasse a ser apenas um instante, mas um lume doce que lhe cabe guardar, a viajante caminhava como quem leva consigo um fruto que é futuro.
Atrás de si a árvore ficou, mais uma vez, silenciosa.
Nessa mudez eterna, a revelação de uma simplicidade sublime, mas tão presente como a nitidez de um sonho inesquecível, a refletir-se no coração de quem ousasse escutá-la: recomeçar não é apagar tudo o que fomos; é deixar que as folhas caídas sejam alimento para o que se aventure nascer e perceber que o belo, uma vez sentido, nunca se vai. Habita onde a alma escolhe fazer morada.
- Paula Freire -
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.
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