Um ciclo de ritos ligados ao Solstício de Inverno transforma Aveleda, em Bragança, numa algazarra sacro-profana que se estende até dia 6 de Janeiro.
Yoko Fujiwara - Aveleda, a nossa Aldeia do Mês, tem como ponto alto do ano a Festa dos Rapazes. |
Para quem não conhece, a nossa Aldeia do Mês fica no concelho de Bragança, faz fronteira com Rio de Onor, e com esta aldeia raiana forma uma unidade administrativa: a União de Freguesias de Aveleda e Rio de Onor. Para além disso, por oposição à “Terra Quente”, integra a “Terra Fria”, aquela zona de Trás-os-Montes que caminha para as altas montanhas do Gerês, a um passo de Espanha.
Em Dezembro, a nossa rubrica dedicada ao Portugal rural menos desbravado obriga-nos à escolha de uma única aldeia, mas na verdade o motivo de festejo é transversal a um grupo de aldeias vizinhas que celebra uma tradição dobrada, alterada e misturada com os tempos imemoriais: os ritos do Solstício de Inverno. Neste artigo, tentamos explicar como estas celebrações se manifestam em Aveleda e arredores e de que forma transformam o período de Natal e o Dia de Reis em algo inimitável no país.
UMA VIAGEM NO TEMPO
Terras de antanho como estas conservam tradições muito mais antigas do que a nacionalidade, de tempos em que fronteiras e estados nem sequer eram uma realidade. O calendário dos povos antigos peninsulares, aqueles que aqui habitavam anteriormente à chegada dos romanos, era governado por eventos astronómicos e por uma relação umbilical e permanente com a natureza.
É hoje sabido que os nossos antepassados pré-históricos voltaram o seu esforço para o acompanhamento dos astros e a sua devoção. Numa relação simples e básica que provavelmente, de acordo com o historiador e filósofo Yuval Harari, terá dado origem ao pensamento religioso, numa negociação com o Sol e a Lua. O Sol brilharia, a Lua exerceria a sua força, mas com equilíbrio. Pedia-se chuva, produtividade das terras, fertilidade na produção; e então, a organização de um conjunto de rituais, destinados a estabelecer essa troca comercial de devoções, instituiu-se.
É impossível desenvolver aqui todo o processo que levou a que os ritos assumissem a forma que têm hoje, e que encontramos nestas Festas de Inverno de Bragança, das quais as de Aveleda fazem parte. Mas tal só é prova dos vários formatos que assumiram nos períodos diversos em que a Península foi dominada por culturas diferentes.
Não deixa de ser curioso, contudo, que os antigos adorassem Mitra, divindade solar chegada do Médio Oriente à Europa e adaptada e ajustada a culturas tão diferentes como a indiana ou a grega clássica, que nasceu numa caverna sob uma luz divina e foi visitada, em adoração, por três reis estrangeiros, de acordo com o mito. Se a história vos parecer familiar... não é um acaso.
NA TERRA FRIA, O PAGANISMO AINDA NÃO MORREU
Em Aveleda, e na verdade em todo o concelho de Bragança, o período dos ritos do Solstício estende-se de 25 de Dezembro até 6 de Janeiro. Para os cristãos, é o auge da celebração de todos os eventos que rodeam o nascimento de Cristo; mas como vimos, nos tempos pagãos das tribos ibéricas e dos celtas, tratava-se de pedir boas condições para a agricultura. Como tal, cristianismo e paganismo misturam-se nas celebrações; e o primeiro grande evento, logo no dia de Natal, é a Festa dos Rapazes.
Os preparativos começam em Novembro com a recolha de lenha para fogueiras, que se acendem nos festejos. Mas a 25 e 26 de Dezembro, jovens de 16 anos ou menores saem à rua, vestidos de forma colorida e exótica, com fatos que recordam imediatamente os famosos Caretos de Podence. Tal como se aproxima a mudança de ano solar, aqui celebra-se a passagem para a idade adulta destes rapazes. Celebração é uma palavra justa, pois há cortejos, festas, danças e gritos. Os rapazes percorrem as ruas das aldeias com a energia e irreverência próprias da idade, num último fôlego da imaturidade que querem abandonar antes de assumir a responsabilidade da vida adulta. As tradições da festa, como se nota, têm pouco a ver com o Natal e recordam mais as Saturnálias romanas, momentos de grande êxtase e folia que ocorriam por esta altura do ano.
MÁSCARAS, COMÉDIAS E UM SALVO-CONDUTO PARA O ATREVIMENTO
Os mascarados são personagens principais e, quando saem à rua, não têm piedade. É-lhes permitida, com bastante latitude, uma série de acções que num dia normal não seriam toleradas em sociedade. Gozam alarvemente com os factos ridículos da aldeia, as suas pessoas, os seus pecados e pecadilhos. Por isso, se mantêm anónimos, agindo como a voz popular que cala durante o resto do ano as ofensas e as queixas – são as chamadas Comédias.
Enquanto expiam estes males públicos percorrem as casas porta a porta, fazendo peditórios em benefício de Santo Estêvão, primeiro mártir cristão e entidade religiosa que apadrinha todos estes rituais. É curioso que, entre outras coisas, Santo Estêvão seja padroeiro das dores de cabeça, pois estes moços de máscara vão causar muitas na aldeia. Munidos de um cajoto, um pau grosso que funciona como bengala, os rapazes andam à bulha uns com os outros, procurando revelar qual deles é o fisicamente mais apto, ou forte, se preferirem.
A aldeia e os seus habitantes são chamados a participar na ronda, um grupo de músicos – habitualmente um gaiteiro, um tocador de bombo e um homem da caixa – que podem surgir a qualquer momento do dia. Durante os dias 25 e 26, o lado comunitário é celebrado em dois momentos, um solene e um profano. O solene é a missa, na qual os caretos têm um lugar de destaque, junto ao padre. Esta celebração costuma ocorrer antes das Comédias e é como uma metamorfose: nela, estes jovens beijam o Menino antes de todos os outros e, em seguida, vestidos de caretos, virarão demónios que sobressaltam as moças, nelas se roçando, e que não poupam ninguém a críticas. Já o momento profano é a refeição comunitária, preparada pelos rapazes ou pelas suas mães. Podem ocorrer nas casas dos diabos à solta, mas nalgumas aldeias é uma única refeição partilhada na praça central da aldeia. As mulheres estão proibidas de participar, excepto no final.
David Miguel Vaz - À procura de uma experiência genuína na chamada “Terra Fria Transmontana”? Aveleda é uma possibilidade, a 15 quilómetros de Bragança. |
DO SOLSTÍCIO DE INVERNO À QUARESMA
Actualmente, a Festa dos Rapazes, tal como outras Festas de Inverno, ocorre em várias aldeias do concelho de Bragança, iniciando um ciclo festivo que vai até para lá do Dias de Reis. Em Janeiro, por exemplo, a aldeia de Salsas traz de volta os caretos que, descansando depois de Natal, estão com energia suficiente para entrar em casa de quem quiserem, importunando os habitantes como queiram.
O pesadelo (ou o sonho divertido, depende da perspectiva) acaba apenas na Quarta-Feira de Cinzas, quando os demónios de máscara invadem a cidade de Bragança, espalhando o terror nos seus bairros mais antigos. Procuram, claro, moças, que perseguem nas casas e varandas, aproveitando os últimos fôlegos de festa que se segue ao Carnaval antes de regressarem ao seu sono: anuncia-se a Quaresma e, com ela, a penitência, a solenidade e o decoro. Até lá, se andar pela Terra Fria de Trás-os-Montes, tenha cuidado: eles andam aí e não poupam ninguém.
A ALDEIA DO LADO
Convém recordar, antes de partir para a Terra Fria, que Aveleda é uma freguesia que se juntou à de Rio de Onor para formar uma união de freguesias. O segundo lugar é bem mais conhecido do que o primeiro, em virtude do seu simbolismo como aldeia fronteiriça.
A rara distinção de ser atravessada a meio pela fronteira entre Portugal e Espanha dá a Rio de Onor múltiplas identidades: do lado castelhano, chamam-lhe Rihonor de Castilla – ainda que pertença, historicamente, à herança da cultura do reino de Leão. É também por isso que aqui ouvirá, num caso quase único na península, um dialecto quase extinto que pertence ao grupo do asturo-leonês – ao qual pertence também o mirandês, a nossa segunda língua oficial –, que nesta região antecedeu a língua castelhana como idioma oficial do mesmo reino ibérico um dia liderado pela família de Dom Afonso Henriques.
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