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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

"O HOMEM QUE COLHIA SILÊNCIOS"

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


Sentado sobre o banco de pedra, António observa o horizonte com olhos que mergulham nas distâncias infinitas onde lhe respiram as memórias. Olhos habitados por luas antigas, tão cheios de passado, que abraçam o tempo com a mesma saudade com que a terra descobre vida depois das grandes chuvas. 
E o rosto funde-se com a tarde quase morna, numa luz que parece ter em si a ternura das mãos da sua mãe. Era ela, sim, quem ali o fazia escutar silêncios carregados de vozes, em pensamentos sem pressa. Capítulos inteiros de uma existência longa. E ele sorria, num movimento leve, ao lembrar-se da voz cintilante dela, a mulher que fazia dos dias cinzentos um bordado de cores, apenas no mais puro ato de amar um filho.
Hoje, António traz na leveza dos ombros a infância onde foi um menino do vento a correr descalço pelos campos, a pulsarem-lhe no peito as emoções férteis, num misterioso paradoxo que só os que viveram com pouco podem compreender. 
Talvez por isso recorda, neste momento, o sopro de uma pobreza que tinha mais chão do que fome. Com a sua mãe, que desconhecia tanto da lonjura do universo, mas sabia ler a alma das coisas como ninguém, António aprendeu a medir a felicidade pelas simplicidades pequenas, ouvir o que morava nos gestos escondidos: o rumor das folhas, o respirar das águas, os sons recolhidos do amanhecer, as histórias sussurradas no final das tardes, o cheiro quente de um pão partilhado, o calor de mãos que nunca prometeram mais do que podiam dar. 
As suas primeiras certezas transformadas nos tesouros que carrega no coração. Todos os lugares onde a pobreza não se escrevia como ausência, mas como uma presença que cabia no espaço curto da imaginação, dentro dos limites perenes do amor.
Mais tarde, as estações foram feitas de pedras. Caminhos onde a terra branda endureceu debaixo dos pés sozinhos, pedaços de vazio a ditar uma fome que não era apenas de pão, mas de futuro. O trabalho árduo, a angústia de não encontrar o amanhã, o peso das noites frias que nenhum brilho de estrela podia preencher, encolhido numa dor que não sabia gritar, abraçado à fé que clamava por respostas. A força da resistência com que desaprendeu o conforto do que sonhava eterno, e aprendeu a ser chão para si mesmo e a plantar raízes duras sempre que o vento insistia em arrancar a esperança.
E um dia chegou ela. A menina dos olhos cor de mar. Sentiu, António, que o mundo se lhe tornara líquido! Ela, espírito que era porto e farol, a segurar os remos com mãos firmes e ternas, como se tivesse nascido para ser água no deserto da sua alma.
Destinados a uma dança que ele não hesita em chamar de bela. Não porque tenha sido isenta de passos difíceis, mas porque, de braços dados, construíram uma casa onde os dias tocavam texturas, os móveis eram apenas um poema colhido pelo orvalho das manhãs e o silêncio, tantas vezes, a linguagem mais doce. E quando o tempo lhes impunha marés, juntos faziam-se rio e margem pela correnteza do destino. A prova de que o amor não precisa de épicos, basta que seja constante, como o fluxo do céu que ela ainda pousa nos olhos.
E, depois, acima de tudo, a sua fé. Não uma fé ruidosa, mas aquela que se revela na quietude de um gesto, na perseverança de quem sabe que há um sentido para tudo, mesmo quando o porvir se oculta nas pregas da viagem. A fé que sempre foi a certeza. A sua forma de escrever o desconhecido sem precisar de mapas.
Eram estas as lembranças que lhe chegavam agora. Aves que regressam à árvore onde nasceram, reflexos de todas as paisagens que o habitam numa combinação de fragilidade e coragem, de beleza e compaixão, de finitude e eternidade. 
O homem que contempla o horizonte. Monumento vivo que parece mais do que humano. O homem que é tudo de uma só vez: o menino que corre, o jovem que ama, o ancião que sabe e acredita, numa oração serena de quem lê um livro invisível, escrito pelos dedos de um Criador, e transforma a solidão em algo sagrado.
O homem que contempla o horizonte como uma ponte entre muitas eras e que, nas noites passadas debaixo de constelações inquietas, encontra os traços de um Deus que não se revela em palavras, mas no silêncio do milagre.
Neste instante único, entre o mundo que passa e o mundo que fica, António, talvez uma semente plantada para ensinar aos outros a arte de florescer em qualquer terreno, lembra-me que a grandeza da vida não está na ausência de desafios, mas na forma como os enfrentamos e lhes damos o nome de poesia. 
E que isso é tudo o que verdadeiramente importa no espaço imenso de um coração que saiba amar.



Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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