A minha avó Maria, muito tímida, não queria comer, não queria dar trabalho, não queria pesar a ninguém. Habituada desde tenra idade a bastar-se a si própria e a suprir o sustento de cinco sobrinhos e, mais tarde, uma filha, era independente como as águas que corriam no Tuela de então.
Vivia só, absolutamente só, na sua humilde casa, com menos que o mínimo indispensável à sua sobrevivência como vim a descobrir.
Não quis ir connosco para o Brasil por ter pena de deixar os sobrinhos. A filha, já com dois filhos pequenos, tentou tudo para a convencer a ir consigo mas, não foi capaz de a demover. Ficou. Muitas vezes, ao chegar da escola, encontrava a minha mãe debulhada em lágrimas por "ter abandonado a minha mãe" e lá me contava que ainda tinha, frente aos olhos, a imagem da despedida, em que nós os três, ela, meu pai e eu, pois o meu irmão ainda era um bebé, dentro do táxi mergulhado na poeira do caminho, era verão, olhávamos a sua figurinha a acenar-nos, lenço na mão, a enxugar os olhos cheios de lágrimas de saudades, talvez de arrependimento...
Nessa manhã, quando bateu à porta da casa dos meus avós paternos, vinha tão feliz que quase parecia um passarinho novo a saltaricar por aqui e por ali. Olhava para mim como se eu fosse a coisa mais bela que houvera visto em toda a sua já longa vida.
Tinha quase oitenta anos a minha avozinha. Ouvia muito mal e via mal também, no entanto, ainda ia a todas as feiras a Vinhais, a pé, carregada de cestas para vender. Regressava da mesma maneira, carregada de coisas que havia comprado ou que lhe havia dado em troca das cestas.
Sozinha, fazia as suas hortas quando era tempo de as fazer e tinha sempre coisas para dar. Pouco comia e tudo ou quase tudo o que produzia era para dar a quem precisasse. Apanhava as castanhas dos seus castanheiros e as azeitonas das suas oliveiras. Era ajudada pelo seu sobrinho, quase filho que também ficava com o rendimento que porventura se apurasse. A minha avó Maria não era deste mundo. O seu mundo, único e raro, só conhecia o verbo dar ou dar-se aos outros que dela necessitassem. A sua vida simples e frugal só admitia uma mágoa que timidamente repetia: "O malandro do teu pai levou-vos para tão longe! Malandro!" Dizia-o com imensa amargura, incapaz de perdoar, ela que perdoava tudo a todos e que pedia desculpas a uma erva daninha quando tinha de a arrancar...
Trazia no bolso do avental uma barra de chocolate grande e grosso, daquelas usadas para fazer chocolate quente. Saca do chocolate e dá-o à minha avó Elvira, juntamente com um pacote de bolachas maria que ainda agora não sei de onde as terá tirado.
Obrigada a sentar-se junto do lume, viu que a minha tia lhe preparava um bom naco de pão com queijo e uma caneca de café quentinho. Relutou muito para a aceitar e só aceitou porque eu lho pus nas mãos. A mim, não sabia dizer não. Sorriu: "Ó filha, eu não tenho fome! Isto é muito!" "Coma avó, coma..."
Continuava a chover incessantemente. Com os acontecimentos ali desenrolados, havia-me esquecido da chuva e da pouca claridade da cozinha. Como era possível ainda não haver luz ali, nem água nas torneiras? Como poderia eu tomar banho? Como faziam aquelas pessoas para viver?
Comi, sentindo estranhos sabores na minha boca. O pão era diferente, o presunto, apesar da gordura, que deixei, tinha um sabor especial. O café, feito daquela forma estranha, era bom, forte e aromático... Sentia-me confortada, quase feliz, algo melancólica e assustada.
"Vou embora filha, tenho que ajudar o Graciano. Ele matou um porquinho..." "Não vá avó. Não vê quanto chove agora? Vai se molhar toda!" "Depois eu volto... Até loguinho." Disse, falando para todos. Deu-me muitos beijinhos sem dentes, que poucos tinha. Ao vê-la sair apercebi-me que as suas roupas escondiam muitos mistérios. Trazia com ela muitos bolsos e dentro dos bolsos muitas coisas para dar. Saiu ligeira e leve como uma borboleta. Puxou o xaile para a cabeça, embrulhou-se o melhor que pode e enfrentou a chuva. Fiquei a vê-la afastar-se, rua acima, até desaparecer. "Sai daí que está frio e ainda te constipas. Fecha a porta." Aqui estava outra palavra estranha. No Brasil a gente apanhava um resfriado, não uma constipação.
"Avó, eu queria tomar banho... como é que eu faço?" "Deves estar muito suja, filha... e ainda por cima está frio..." "Eu sei, mas..." "Está bem, vou aquecer-te água no lato e depois podes lavar-te na banheira da casa de banho."
Fiquei a pensar no que seria "um lato" mas, dispus-me a esperar que as coisas acontecessem. Estava cumprido o terceiro ato.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com
Sem comentários:
Enviar um comentário