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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Um inverno - segundo ato


Depois do desfile de todas as pessoas da aldeia pela casa dos meus avós para ver a criatura estranha que tinha regressado a casa, finalmente, sosseguei. Tinha frio no corpo e na alma e uma vontade desmesurada de falar com os meus pais.
Não havia telefone, não tinha como falar com eles. Restava-me escrever. Nessa mesma noite iniciei um período de escrita laudatória que não tinha limite de páginas. Apenas pegava no papel, corriam as palavras a preencher os espaços delimitados pelas linhas da folha fina e pautada.
A noite estava fria e puseram-me a dormir num quarto existente na parte nova da casa que havia sido feita pelo meu pai, numa das suas vindas a Portugal. O quarto era espaçoso, ficava perto da casa de banho e os cobertores que tinha na cama pesavam como todas as minhas dores e angústias. 
Deitei-me, saquei do papel e da caneta e comecei  a escrever com uma ânsia, com uma avidez que quase parecia um alcoólico a correr para a última garrafa.
Gelei-me. Apaguei a vela e tentei dormir... tinha os pés tão frios que foi impossível conciliar o sono. O dia raiou e encontrou-me desperta, sem vestígios de cansaço apesar da noite mal dormida. Chovia desconsoladamente enquanto, triste, me vestia.
Cheguei à cozinha e encontrei a lareira acesa. Sentei-me num tripé muito perto do lume e esperei. Tudo era novo, único, quase irreal, quase medieval... parecia o cenário de um filme, dos muitos que eu havia visto, de princesas e príncipes onde tudo acaba bem porque sim.
Entrou o meu avô, vindo da rua, vestido com um impermeável a escorrer água. Nas mãos trazia alguns paus para o lume.
"Bom dia avô." "Bom dia filha. Já matabichaste?" "Já o quê?" O meu avô riu-se. "Já comeste?" "Não, levantei agora. Tinha frio. Não consegui esquentar."
Lentamente, comecei a aquecer e a sentir-me bem. O meu avô pôs um pequeno pote ao lume para fazer café e começou a partir um pão enorme com a sua faca palaçoulo e entregou-me uma fatia. Foi  à arca de madeira que estava junto ao louceiro e tirou queijo e um bocado de presunto. Partiu o presunto e deu-me um pedaço. "Come. Vais ver que bom é! Vai buscar uma faca para o partires. É mais fácil de comer." Sem saber muito bem onde poderia encontrar uma faca, dispus-me a procurá-la lá para os lados do armário onde o meu avô tinha ido buscar o presunto e o queijo. "Traz um bocado dessa chicha gorda que está na mosqueira. Vou assá-la." "O quê avô? O que é uma mosqueira? O que é chicha? Onde está isso?" 
"Estamos bem arranjados contigo rapariga..." Riu-se e veio, com a calma de um bom professor, mostrar-me o que era cada uma das coisas que me havia pedido.
Quem se ria agora era eu. Como era possível que a mesma língua fosse tão diferente de um país para outro?
Abriu-se a porta que dava acesso à sala e aos quartos e lá apareceu a minha tia, ensonada ainda, mal disposta pelo barulho que fazíamos.
"Que não se calam! Já uma pessoa não pode dormir descansada nas férias! Já há café? Tenho fome. A mãe?"
"Já vem. Foi dar alguma coisa à porca parida."
"Então? Dormiste? Tiveste frio?" Finalmente, olhou para mim com um sorriso e chegou-se ao lume. Viu que eu já tinha na mão um naco de pão com presunto, que ainda não tinha começado a comer pois estava a tentar compreender o que se passava à minha volta. Estava a assimilar todas as coisas que havia ouvido e a tentar compreender a última frase do meu avô. Devia ter uma expressão perplexa no rosto o que despoletou uma gargalhada da minha tia.
"Anda, come que isto vai aos poucos. Com o tempo entendes tudo."
Entrou a minha avó Elvira, muito magrinha, muito leve, muito risonha e doce. "Bom dia avó!" "Bom dia filha. Dormiste bem?"
Acenei que sim com a cabeça e levantei-me para que ela se chegasse ao lume. Vinha gelada e molhada. Sentou-se e olhou para mim como se fosse a primeira vez. O meu avô pôs uma grelha nas brasas e cortou um bocado generoso de carne gorda em cima da grelha. O silêncio reinava. O meu pensamento corria veloz.
"Ó de casa?" "Entre tia Maria" - disse ligeira a minha avó Elvira.
Uma figurinha pequena e magra, de cabelos brancos e sorriso pronto assomou à porta e entrou timidamente. Era a minha outra avó, mãe da minha mãe que, depois de dar os bons dias, me abraçou e beijou repetidamente. "Sente-se tia Maria, sente-se...vai matabichar connosco." Insistiu a minha tia, fazendo com que se sentasse junto ao lume.
Ali se encontrava o meu núcleo familiar de então. Estava prestes a começar o terceiro ato.

Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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