Durante o almoço falou-se do meu avô Zeca. Passara um ano da sua morte e as memórias de África, as vivências em Angola, tudo o que ali haviam construído e que foram obrigados a deixar sentou-se à mesa connosco.
O meu tio Pedro e toda a sua família eram retornados. Para fugirem à pobreza extrema das nossas aldeias, juntamente com os restantes irmãos e com os pais, chamados pelo meu tio Firmino, foram para Angola.
O meu avô vendeu as poucas terras que lhe restavam para comprar as viagens para toda a família e para assegurar a sobrevivência dos primeiros tempos.
Os primeiros meses foram de sofrimento. O calor era insuportável. As condições que encontraram eram tão diferentes das que conheciam, que lhes passou pela cabeça regressarem à Metrópole. No entanto, há vontades realizáveis e outras que o não são. Outro remédio não tiveram do que lutar contra todas as adversidades e fazer-se parte daquele continente primevo.
Quando se está longe daquilo que se conhece, valorizamos muito o que tivemos e não damos valor ao que temos. Tudo o que está longe é melhor. No entanto, a habituação acontece naturalmente e assumimos os usos e costumes do lugar onde vivemos.
Com a família do meu avô, não foi diferente. Instalaram-se, adaptaram-se, trabalharam muito e tornaram-se pó e suor daquele chão.
Aos poucos foram fazendo uma pequena fortuna. As filhas casaram-se e formaram uma pequena comunidade. Nasceram-lhe os netos, morreu-lhe a filha mais nova...
Confortavelmente instalados, pensavam ali permanecer até ao fim dos seus dias. Tudo mudou quando um dos vizinhos, também natural da pequena aldeia que haviam deixado em Portugal, foi assassinado por um grupo rebelde que lutava pela independência. Cometeram-se muitas atrocidades, tanto do lado dos "colonizadores" como dos "colonizados".
De repente, despertaram para a dura realidade da guerra colonial. Até ali, perdidos numa remota aldeia angolana, afastados de Luanda, onde apenas iam para tratar de assuntos oficiais ou de trabalho, abstraíram-se da guerra... até àquele dia.
Como uma tempestade de areia, espalhou-se pelas redondezas uma urgência militante de voltar à Metrópole.
Sem nada mais que a roupa do corpo, aventuraram-se numa arriscada viagem até ao aeroporto de Luanda, onde milhares de portugueses se aglomeravam para conseguirem lugar num dos aviões que os trariam para casa.
Que casa? A sua casa, tinham-na abandonado, com todos os seus pertences, com todos os seus sonhos, àqueles que se reclamavam como únicos donos daquela terra mas, aquela terra que tinham amado, trabalhado, acariciado com as suas mãos, que tinham tornado próspera e produtiva, também lhes pertencia.
Não compreendiam o que estava a acontecer. Como se passara, de um momento para o outro, de um relacionamento cordial e carinhoso para este ódio desmesurado, para esta crueldade sem razão?
Foram tempos conturbados, aqueles. As mulheres e as crianças foram as primeiras a embarcar. Os homens ficaram para trás.
Chegadas a Lisboa, vinham desfiguradas, desenraizadas. No olhar, tristeza, dor, insegurança. O país que haviam deixado há tantos anos, não era o mesmo. Tudo mudara. Muitos dos regressados haviam nascido em África. Tudo o que conheciam ficara atrás.
Os homens, em Luanda, lutavam pela vida. Não se tratava já, de tentar trazer alguns bens, algum dinheiro. Não. Tratava-se de sair vivo daquele inferno insano.
Na capital portuguesa, as mulheres e as crianças, apinhadas em pensões, viviam da caridade do governo. Não sabiam dos pais, maridos e irmãos. Os corpos, há muito habituados ao calor africano, sofriam por causa do frio.
Os dias repetiam-se, iguais, por semanas e meses. Não havia esperança. Os olhares estavam mortos. Sentiam saudades das mangas doces e sumarentas, das bananas colhidas da bananeira, das laranjas, dos limões, das papaias, dos mamões... da terra vermelha, do calor inclemente do sol, dos cheiros, da chuva ao fim da tarde que mal caía se evaporava como se fosse mentira...
O meu tio Pedro e toda a sua família eram retornados. Para fugirem à pobreza extrema das nossas aldeias, juntamente com os restantes irmãos e com os pais, chamados pelo meu tio Firmino, foram para Angola.
O meu avô vendeu as poucas terras que lhe restavam para comprar as viagens para toda a família e para assegurar a sobrevivência dos primeiros tempos.
Os primeiros meses foram de sofrimento. O calor era insuportável. As condições que encontraram eram tão diferentes das que conheciam, que lhes passou pela cabeça regressarem à Metrópole. No entanto, há vontades realizáveis e outras que o não são. Outro remédio não tiveram do que lutar contra todas as adversidades e fazer-se parte daquele continente primevo.
Quando se está longe daquilo que se conhece, valorizamos muito o que tivemos e não damos valor ao que temos. Tudo o que está longe é melhor. No entanto, a habituação acontece naturalmente e assumimos os usos e costumes do lugar onde vivemos.
Com a família do meu avô, não foi diferente. Instalaram-se, adaptaram-se, trabalharam muito e tornaram-se pó e suor daquele chão.
Aos poucos foram fazendo uma pequena fortuna. As filhas casaram-se e formaram uma pequena comunidade. Nasceram-lhe os netos, morreu-lhe a filha mais nova...
Confortavelmente instalados, pensavam ali permanecer até ao fim dos seus dias. Tudo mudou quando um dos vizinhos, também natural da pequena aldeia que haviam deixado em Portugal, foi assassinado por um grupo rebelde que lutava pela independência. Cometeram-se muitas atrocidades, tanto do lado dos "colonizadores" como dos "colonizados".
De repente, despertaram para a dura realidade da guerra colonial. Até ali, perdidos numa remota aldeia angolana, afastados de Luanda, onde apenas iam para tratar de assuntos oficiais ou de trabalho, abstraíram-se da guerra... até àquele dia.
Como uma tempestade de areia, espalhou-se pelas redondezas uma urgência militante de voltar à Metrópole.
Sem nada mais que a roupa do corpo, aventuraram-se numa arriscada viagem até ao aeroporto de Luanda, onde milhares de portugueses se aglomeravam para conseguirem lugar num dos aviões que os trariam para casa.
Que casa? A sua casa, tinham-na abandonado, com todos os seus pertences, com todos os seus sonhos, àqueles que se reclamavam como únicos donos daquela terra mas, aquela terra que tinham amado, trabalhado, acariciado com as suas mãos, que tinham tornado próspera e produtiva, também lhes pertencia.
Não compreendiam o que estava a acontecer. Como se passara, de um momento para o outro, de um relacionamento cordial e carinhoso para este ódio desmesurado, para esta crueldade sem razão?
Foram tempos conturbados, aqueles. As mulheres e as crianças foram as primeiras a embarcar. Os homens ficaram para trás.
Chegadas a Lisboa, vinham desfiguradas, desenraizadas. No olhar, tristeza, dor, insegurança. O país que haviam deixado há tantos anos, não era o mesmo. Tudo mudara. Muitos dos regressados haviam nascido em África. Tudo o que conheciam ficara atrás.
Os homens, em Luanda, lutavam pela vida. Não se tratava já, de tentar trazer alguns bens, algum dinheiro. Não. Tratava-se de sair vivo daquele inferno insano.
Na capital portuguesa, as mulheres e as crianças, apinhadas em pensões, viviam da caridade do governo. Não sabiam dos pais, maridos e irmãos. Os corpos, há muito habituados ao calor africano, sofriam por causa do frio.
Os dias repetiam-se, iguais, por semanas e meses. Não havia esperança. Os olhares estavam mortos. Sentiam saudades das mangas doces e sumarentas, das bananas colhidas da bananeira, das laranjas, dos limões, das papaias, dos mamões... da terra vermelha, do calor inclemente do sol, dos cheiros, da chuva ao fim da tarde que mal caía se evaporava como se fosse mentira...
Aos poucos foram chegando os homens. Felizmente, todos. Que fazer agora? Para onde ir?
"Vamos para Vinhais, para a nossa aldeia." Derrotados, secos, com o olhar embotado por imagens impensáveis, assentiram. O cansaço era tal que tanto fazia. Nada tinham. Não contavam com nada.
De comboio, bilhetes pagos pelo governo, arrastaram-se para um destino incerto. Que lhes aconteceria? Tantos anos depois, regressavam sem nada. Menos ainda do que tinham levado. Como é que os receberiam? Como pode alguém reaprender a viver depois de ter perdido a alma? Como seria possível regressar à Idade Média, depois de ter estado na imensidão livre de África?
"Vamos para Vinhais, para a nossa aldeia." Derrotados, secos, com o olhar embotado por imagens impensáveis, assentiram. O cansaço era tal que tanto fazia. Nada tinham. Não contavam com nada.
De comboio, bilhetes pagos pelo governo, arrastaram-se para um destino incerto. Que lhes aconteceria? Tantos anos depois, regressavam sem nada. Menos ainda do que tinham levado. Como é que os receberiam? Como pode alguém reaprender a viver depois de ter perdido a alma? Como seria possível regressar à Idade Média, depois de ter estado na imensidão livre de África?
Mortos de cansaço, chegaram ao Tua. Outra longa viagem os esperava até chegarem a Bragança. A locomotiva fumaçava sujando tudo e todos. As carruagens iam repletas de corpos cansados. Os cheiros nauseavam.
Fim de março, primavera. Fim de tarde, montes floridos de giestas brancas. Malmequeres, bem-me-quer, mal-me-quer em lameiros verdejantes...
Uma centelha de luz no olhar. Amanhã é outro dia.
Não sei o que comi. Talvez nada. Bebi as palavras do meu tio como se não bebesse há muito tempo e estivesse prestes a sucumbir à sede.
Fiz minhas, as suas emoções. Não questionei as opções tomadas. Não julguei. Sofri por todos, portugueses e angolanos, apanhados numa guerra fraticida sem sentido.
As primaveras não são todas iguais.
Fim de março, primavera. Fim de tarde, montes floridos de giestas brancas. Malmequeres, bem-me-quer, mal-me-quer em lameiros verdejantes...
Uma centelha de luz no olhar. Amanhã é outro dia.
Não sei o que comi. Talvez nada. Bebi as palavras do meu tio como se não bebesse há muito tempo e estivesse prestes a sucumbir à sede.
Fiz minhas, as suas emoções. Não questionei as opções tomadas. Não julguei. Sofri por todos, portugueses e angolanos, apanhados numa guerra fraticida sem sentido.
As primaveras não são todas iguais.
in:nordestecomcarinho.blogspot.pt
Mais uma descrição fabulosa de um período da nossa história que retrata toda a realidade passada por muitas famílias.
ResponderEliminarUm drama vivido e muito mal compreendido por muitos dos que por aqui ficaram.
É um assunto que conheço bem!!!!!, Angola minha!!!.
O meu muito obrigado por estas palavras e sobretudo pela objectividade, sem ser tentada a emitir opiniões e assumindo o sofrimento de quem iludido, pensou estar naquilo que era deles!!!!.
Obrigada, Daniel.
EliminarEsta é uma pequenina parte da história do meu avô materno.
Não a vivi. Não a conheço verdadeiramente. Apenas bebi as palavras dele e assumi-as como se me pertencessem.
Mara Cepeda
Parabens Mara pela sua contribuição com um texto simples e bem proximo da realidade vivida por nós todos naquele tempo... na vida tudo passa. Porém nós é que temos que burilar a obra que fica para os vindouros! Abraço Transmontano de Silvino Potencio - O Home de Caravelas de Mirandela.
ResponderEliminarEu é que agradeço.
ResponderEliminarForam tempos difíceis que marcaram indelevelmente todas as pessoas que tiveram a sorte ou o azar de os viver.
O meu avô e os meus tios nunca esquecerão e eu também não por ouvir tantas vezes as suas histórias.
Mara Cepeda