É há séculos peça de vestuário transversal à vida das mulheres. Nos nascimentos, nos eventos públicos, no luto e na dor. O xaile terá chegado à Europa depois de uma viagem desde a Ásia. Portugal acolheu-o e, gradualmente, democratizou-o entre todas as classes. Encontramo-lo de Trás-os-Montes ao Algarve: de cercadura, xadrez, barra azul, seda, feltrado, chinês.
O texto aqui reproduzido é uma súmula da apresentação que Carlos Cardoso, autor do blogue Trajes de Portugal, fez nas XVII Jornadas Técnicas de Etno-folcore, organizadas em Novembro de 2011 pela Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego na Casa Municipal da Cultura, em Coimbra.
Os primeiros xailes que chegaram à Europa vieram de Caxemira, na Índia, «descobertos» por viajantes (principalmente ingleses) que os traziam como presentes para esposas, mães e filhas.
Diz-se que, em 1796, um persa cego chamado Yehyah Sayyid visitou Cachemira e o governador afegão ofereceu-lhe um xaile. Sayyid, por sua vez, ofereceu-o ao Quediva do Egipto, que o presenteou a Napoleão. Este deu-o à sua esposa, a Imperatriz Josefina de Beauharnais.
Em França o xaile causou inveja e em breve as mulheres elegantes procuraram por todo os meios obter o seu próprio xaile de Caxemira.
Os xailes tornaram-se o desejo de qualquer dama elegante da Europa e América. A raridade, elevado preço e muita procura fomentou o surgimento de imitações em França, Alemanha e Inglaterra, produzidas com lã de cabra, lã merina, de seda e de algodão.
Introdução em Portugal
O xaile terá chegado a Portugal sensivelmente na mesma altura que ao resto da Europa, diz-se que também trazido por marinheiros regressados do Oriente. Francisco Ribeiro da Silva detectou a presença de um xaile entre o rol das mercadorias confiscadas na Alfandega do Porto entre 1789 e 1791.
Como é óbvio, sendo um artigo contrabandeado significa que existia uma procura, um mercado. Seria um produto apenas ao alcance de alguns privilegiados. Por via do contrabando os ricos não privilegiados conseguiam obter produtos que os colocavam a par dos privilegiados e, aparentemente, o xaile seria um excelente sinal exterior de riqueza.
O Dicionário de António Morais Silva (2ª edição de 1813) define «Chalé, s.m. (do Hespanhol) – lenço pintado de marca mayor, que as mulheres trazem pelos ombros, dobrado de sorte que fique em três pontas, sendo o lenço quadrado. Os ingleses chamão chales a uma porção de certo longor, e largura de tecido mui fino de lã de camello, de comum amarela, que as mulheres lançavão ao pescoço, e as pontas enrolavão em redor do corpo até à cintura, e são assás caros; vêi da Índia Oriental (a Shale)».
A inscrição da palavra «Chalé» no dicionário de António Morais Silva significa que esta peça de vestuário era já conhecida e utilizada em Portugal no primeiro quartel do século XIX.
Por outro lado, a referência à origem espanhola estará directamente relacionada com o «Manton de Manila». Ao que se diz foi inventado pelas operárias das fábricas de tabaco em Sevilha. As folhas de tabaco vinham das Filipinas embrulhadas em panos chineses velhos, muito ornamentados e de forma quadrangular. As mulheres cortavam-nos e colocavam-nos em triângulo sobre os ombros deixavam os braços livres para trabalhar e simultaneamente protegiam do frio. Era prático, mesmo para uma saída rápida à rua.
António Morais Silva faz ainda referência à origem do xaile, situando-a na Índia Oriental e à sua difusão entre as mulheres da sociedade inglesa.
Como é do conhecimento geral, entre nós a moda foi sempre muito influenciada pelo estrangeiro e este terá sido o principal motor para a introdução do xaile em Portugal, sendo mais plausível que a palavra xaile provenha da denominação inglesa «shawl», do que da sua origem persa «Shãl» (shawl, chalé, xale, xaile).
Certo é que os primeiros xailes foram importados e simbolizavam estatuto social e poder económico só ao alcance de alguns.
A conjuntura socioeconómica e a popularização do xaile:
O xaile só chega às camadas populares no início do século XX, em resultado de um conjunto de circunstâncias socioeconómicas favoráveis, nomeadamente: o fim das convulsões sociais e políticas da primeira metade século XIX (Invasões Francesas /Guerra Civil);incremento de uma revolução industrial tardia, iniciada com o Fontismo (1868-1889); evolução tecnológica (mecanização); melhoria das vias de comunicação e do escoamento da produção (aumento da rede ferroviária e rodoviária); Matérias-primas abundantes e baratas. Como exemplos deste desenvolvimento, a expansão da rede rodoviária cresce de 476 quilómetros, em 1850, para 11.754 quilómetros, em 1907. A rede ferroviária cresce de 69 quilómetros, em 1856, para 2.898 quilómetros, em 1910.
A indústria têxtil assume-se como a principal empregadora entre 1850 e 1913 (61% em 1852 e 37% em 1911).
Em 1890 os salários dos tecelões variavam entre os 280 réis/dia e os 800 réis/dia (Covilhã). Na indústria entre os 360 réis/dia e os 500 réis/dia para os homens e os 160 réis/dia e os para as 220 réis/dia mulheres.
Já o salário médio na poda em Vila Real situava-se entre os 139 réis/dia e os 185 réis/dia.
Em 1913/1914 o preço de um xaile dos Pirenéus, vendido nos Armazéns do Grandela (Lisboa) variava entre os 3.600 e 5.500 réis. Por comparação, uma operária fabril ganhava entre 4.160 e 5.720 réis/mês
De artigo de luxo a peça de indumentária popular feminina:
A mulher camponesa sempre usou pelas costas uma espécie de agasalho, uma saia dobrada, capa, capucha, capoteira ou mantéu e finalmente apareceu o xaile. O xaile, beneficiando da nova conjuntura torna-se mais acessível às bolsas populares e contribui também imenso para o desenvolvimento da indústria.
Por outro lado a preferência popular pelo xaile decorre do facto de ser prático no uso diário (permitia maior amplitude e liberdade de movimentos); possui durabilidade (grande resistência, o que os tornava mais duráveis); facilidade de manter e acondicionar (não necessitava de grandes cuidados com limpeza e ocupa pouco espaço quando arrecadado); a função de compor a figura (uma mulher envolta num xaile escondia a pobreza do seu trajar, dando-lhe dignidade).
O xaile está assim presente em todas as ocasiões da vida da mulher-mãe: como aconchego para o recém-nascido, aos domingos e dias de festa é um complemento do melhor fato (o xaile como «tapa misérias»). Servia de peça de enxoval e complemento do trajo de noiva. Funcionava como resguardo do frio e da chuva.
Nos momentos de tristeza embiocava a cara e escondia a sofrimento. No luto cobria o corpo. É a peça que melhor passava de mãe para filha, uma vez que na maioria das vezes nada mais havia para herdar.
Embora possamos encontrar xailes em todas as regiões do país, o gosto, os costumes locais e a riqueza da região ditaram preferências por determinados tipos de xaile.
Em Trás-os-Montes e nas Beiras o xaile é negro, seja domingueiro ou de uso diário. No Alentejo, Ribatejo e Algarve além do negro, surgem outras cores, como o castanho ou o cinzento, lisos ou com padrões sóbrios.
O xaile adquire expressão máxima na região da Beira Litoral, sobretudo nos distritos de Aveiro e Coimbra, que considero a «Capital do Xaile». Nesta região, o gosto popular pelo uso do xaile enquanto complemento e adorno do traje, levou ao uso de uma multiplicidade de tecidos de materiais diversos, de padrões, de estampados e de cores inaudito e singular, fomentando uma indústria e um conjunto de artes e ofícios intimamente relacionado com esta peça de vestuário.
Carlos Cardoso - Trajes de Portugal
in:cafeportugal.net
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