Um escritor transmontano-duriense
António Manuel Pires Cabral nasceu em Chacim, antiga vila do concelho de Macedo de Cavaleiros, em 13 de Agosto de 1941.
Fez em Macedo de Cavaleiros a instrução primária e o curso geral dos liceus, este no já desaparecido Externato Trindade Coelho. O curso complementar dos liceus foi já feito em Coimbra, em cuja Faculdade de Letras se licenciou em Filologia Germânica, em 1965.
Recebeu, para além de outras distinções literárias menores, o Prémio Círculo de Leitores 1983 (com o romance Sancirilo) e o Prémio D. Dinis 2005 (com os livros de poemas Douro: Pizzicato e chula e Que comboio é este).
Como distinções fora do âmbito da literatura, em 1982 recebeu da Região de Turismo da Serra do Marão a medalha de Protecção do Património do Concelho de Vila Real. A Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros atribuiu-lhe a Medalha de Prata do Concelho em 1984. A Câmara Municipal de Vila Real concedeu-lhe a Medalha de Prata de Mérito Municipal em 1989 e a Medalha de Ouro da Cidade em 2006. Recebeu também a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura em 2003.
A obra de A. M. Pires Cabral é muito vasta (cerca de 40 títulos, sem contar as sete selectas escolares que co-organizou com Hirondino Fernandes). Nela é possível encontrar poesia, romances, livros de contos, peças de teatro, textos de viagens, crónicas e antologias temáticas. Uma boa percentagem destes livros é dedicada à realidade campesina trasmontana, já que o autor se assume como um homem de fundas raízes rurais e, segundo tem referido com frequência, procura pagar com a moeda da escrita a dívida que tem para com as terras e as gentes trasmontanas.
Dois livros de contos merecem especial atenção deste ponto de vista: são eles O diabo veio ao enterro (1985; 2.ª edição aumentada e reformulada, 1993) e Três histórias trasmontanas (1998). O primeiro deles é uma obra compósita, cujos textos reúnem em si características de conto, de crónica e de recolha da tradição oral trasmontana.
ENTREVISTA
Tribuna Douro (TD) - Sendo um autor multifacetado com obra publicada em praticamente todos os géneros literários, como gosta mais de ser tido? Como um romancista, como um poeta, ou como um contista?
Pires Cabral (PC) - Não enjeito nenhuma das condições. Todas me dão prazer por igual no momento da escrita. Bem sei que há um preconceito de que o romancista é o ‘topo-de-gama’ dos escritores, mas eu não alinho nisso. Todas as disciplinas literárias são difíceis e todo o escritor que leve a sério a sua tarefa, seja lá em que género for, é credor de respeito e admiração.
TD - Começou a publicar tarde, aos 33 anos, mas já vai longe o ano em que recebeu o primeiro de muitos prémios literários. Alguma vez se sentiu tentado a ir viver para mais próximo das “luzes da ribalta”, quiçá em busca de oportunidades de divulgação?
PC - Vou responder com absoluta sinceridade: não. Reconheço que a proximidade dos grandes centros pode trazer um acréscimo de visibilidade, mas eu sou transmontano de gema e jamais seria capaz de viver longe destas terras. Posso ocasionalmente lamentar-me de alguma perda por viver aqui, mas dou-a por bem empregue — porque três dias longe de Trás-os-Montes é talvez o máximo que posso suportar (salvo em tempo de férias, claro).
TD - O cariz assumidamente regionalista na escrita nem sempre ajuda nesse sentido. Por exemplo, há quem diga que Aquilino Ribeiro só não é mais universal por causa disso, e que também por exemplo, João de Araújo Correia por esse motivo não tem outra dimensão. No seu caso, foi um risco que valeu a pena?
PC - O futuro o dirá. Eu digo simplesmente que não estou arrependido de seguir este caminho, mesmo que seja à custa de perda de visibilidade e de reconhecimento. É nesta pele que me sinto bem, e não tenciono despi-la. Mas cuidado: nem tudo o que escrevo é ‘assumidamente regionalista’. Nem gosto de ser catalogado como escritor regionalista. Sou, quando muito um escritor que vive na proximidade da ruralidade. Mas que se sabe demarcar do folclorismo barato que para muitos escritores é uma armadilha. A variedade de temas da minha obra está aí que não me deixa mentir. E já agora: desde quando é que uma história de amor, por exemplo, é menos universal em Trás-os-Montes do que em Nova Iorque? O sentimento não é o mesmo? Ou são os arranha-céus que conferem a universalidade a uma obra?
TD - Na pergunta anterior, obviamente que está subjacente a ideia do seu potencial, expresso hoje em dia nos inúmeros e importantes prémios que tem alcançado. Tarde ou não, a dimensão nacional foi atingida.
PC - As coisas acontecem a seu tempo. Não foi tarde nem cedo: aconteceram na altura em que tinham de acontecer. Mas cuidado: tenho efectivamente recebido alguns prémios literários, alguns de prestígio inegável, mas não se esqueça que por trás de cada prémio está um júri. Júris diferentes talvez tivessem ditado premiados diferentes. É pois com humildade que encaro esses galardões e que proclamo que o verdadeiro juízo sobre uma obra literária está sempre na posteridade, nunca no presente. Ou seja: compete à história, não a júris, confirmar ou infirmar a qualidade de uma escrita. Não nos esqueçamos de Bulhão Pato, que no seu tempo foi contado entre os grandes poetas nacionais e cujo nome serve hoje apenas, ou quase, para baptizar um modo de cozinhar amêijoas.
TD - Como escritor que retrata a alma de toda uma região, no caso uma das mais pobres e sofridas de Portugal, sente que por essa via se faz um pouco da justiça que falta? No fundo, a sua obra é também uma forma de homenagem e de afirmação identitária?
PC - Não tenho espírito de justiceiro nem de paladino, nem sequer pretensões a isso. Quero dizer que ao escrever o que escrevo não estou propriamente a travar nenhum combate. Mas fico feliz por saber que as gentes de Trás-os-Montes se sentem de algum modo retratadas nas minhas histórias e até nalguns dos meus versos. E aí, sim, o que escrevo (ou grande parte do que escrevo) pode e deve ser entendido como uma ‘forma de homenagem e de afirmação identitária’.
TD - A ruralidade perde a olhos vistos os seus contornos. Para o bem e para o mal, a cidade invadiu o campo em termos de hábitos e de modos de vida. Daqui a uns anos, não mais haverá quem siga as pisadas de Camilo, Torga, Aquilino, J. Araújo Correia, Pires Cabral, e outros. Estaremos perante um mundo condenado a ser unicamente uma memória?
PC - Receio bem que sim. É desse quadrante que sopram os ventos da história. E os ventos da história são implacáveis e incoercíveis. O mundo tenderá cada vez mais a ser cinzento — no sentido de uniforme, um mundo onde as diferenças nacionais e regionais serão progressivamente esbatidas ou mesmo aniquiladas. O que acho que é pena. Porque ao perderem-se as idiossincrasias nacionais e regionais, perde-se muito em termos de humanidade.
TD - Posso estar errado, mas vejo no mundo rural contemporâneo algo como uma fuga das lembranças. As pessoas esforçam-se por parecer “gente da cidade”. Digo bem?
PC - Infelizmente creio que não está errado. Hoje, na aldeia, as mulheres já falam como vêem falar as heroínas das telenovelas. Já se ouve falar de ‘pais biológicos’ e dizer ‘eu errei’ em vez de ‘eu fiz mal’. Este remoque é para a televisão, evidentemente. Mas a rádio e a imprensa tablóide e a cor-de-rosa têm igualmente culpas no cartório. Estão a apagar metodicamente as marcas que nos distinguiam e a transformar cada português num belga. Ora, não nos podemos opor aos ventos que tão bravamente sopram. Mas talvez fosse possível assimilarmos novos hábitos e linguagens sem que isso implicasse o sacrifício da nossa identidade.
TD - A par da sua actividade literária, o senhor tem uma alargada actividade no campo da acção cultural. Em termos regionais, diria que se tem feito o possível, ou poderia ter-se ido mais longe com os mesmos recursos?
PC - Fica-se sempre aquém daquilo que se pode. Mas não devemos ignorar o grande esforço feito designadamente pelas autarquias e outras instâncias oficiais, e também (e se calhar principalmente) pelas associações culturais de base no sentido de contribuir para o progresso cultural das populações. Um exemplo: hoje praticamente todas as sedes de concelho (e até algumas de freguesia) dispõem de auditórios razoavelmente equipados. E qual era a situação apenas há dez, quinze anos? Geralmente de penúria. Agora se os recursos são ou não racionalmente e integralmente aproveitados, haverá casos e casos. Não podemos generalizar. Penso é que se deu um grande e inegável salto cultural.
TD - Caso um jovem que deseje dedicar-se às letras, se lhe dirigisse a pedir conselhos, o que lhe diria?
PC - Recordo-me de ter lido há muito tempo um texto de Rainer Maria Rilke (salvo erro nos Cadernos de Malte Laurids Brigge) em que o autor dá os seus conselhos a um aspirante a poeta. Os conselhos são muitos e diversos. Mas retive um: é necessário ler, ler muito, ler sempre, até sermos capazes de produzir um só verso que talvez valha a pena. Rilke é, como se está vendo, muito severo. Mas no fundo tem razão. Não se pode escrever sem primeiro ter lido — muito e sempre. Quando um jovem me faz a pergunta, é a resposta que lhe dou. E dou ainda outra resposta, também muito popular nestes casos: não há melhor conselheiro literário do que a gaveta. Se achamos que temos o grãozinho de talento necessário para ser escritores, antes de nos dirigirmos ao público, dirijamo-nos à gaveta. Isto é: deixemos os textos estagiar nela durante um ou dois anos. Se passado esse tempo os textos ainda resistirem à leitura, então talvez possamos vir a ser escritores. Caso contrário, é melhor desistir da ideia e optar por outra qualquer via. E faço ainda uma terceira consideração: há por vezes a ideia de que bastam facilidade e fluência de escrita para fazer uma obra literária. Errado: uma obra literária tem de ser carregada de sentido, ter densidade. Caso contrário, nada feito. Decididamente, escrever não é só gostar de escrever nem escrever com facilidade.
Manuel Igreja,
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