Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Numa qualquer cidade, que aqui não direi,
Viviam três almas, em atos sem lei.
Viviam três almas, em atos sem lei.
Floriana Tonta:
Num corpo de dama, mas alma d’infante,
Feita de sonhos e um só Diamante,
Morava Floriana, mais Tonta que tudo,
Dedicada ao amor num castelo iludido.
Apaixonada por Come Tudo, el rei Sebastião,
Num brado alvoraçado e tão falastrão!
Floriana Tonta, coitada, com belezas sonhava,
Mas em espinhos dançava e não desconfiava.
De olhos brilhantes e peito infantil,
Tornada brinquedo, peça de vinil.
Sebastião, o seu rei, seu tesouro ilustre,
Prometia-lhe o céu na cama do embuste.
Diante de todos, tão ridicularizada,
e Floriana Tonta só ria. Não se importava.
Para ela, o amor era prova genuína!
Se Sebastião a feria? Era só bênção divina!!!
Sebastião Come Tudo, seu anseio e desatino,
De prédica bonita e sorriso ladino,
Tece promessas, cheio de importância.
E Floriana, sábia(?), acredita. Santa ignorância!
Nas falas ocultas, a palavra ferina,
E ela, tão Tonta, sua própria assassina.
Sebastião Come Tudo:
Sebastião Come Tudo, sempre cheio de pose,
Adorava a pompa, o espetáculo em dose.
De nome tão próprio, figurão artolas,
Homem voraz, repleto de humor: que belo farsolas!
Comia olhares, palavras de branco caiadas,
Das mulheres do mundo, bocas desatinadas.
Em festas, em jantares, enfeitava-se inteiro,
Para ser o destaque, o grande fiteiro!
A alma vazia como oco tambor,
De tudo fazia um palco de amor
Para ser aplaudido com gestos de cena.
Dizia-se o sábio, o culto… tão digno de pena!
Por ali andava, ora o ardor, ora o desdém,
O triste enjeitado, precisa sempre d’alguém.
Descreve-se esperto, um génio profundo,
Porque é frágil demais no seu vazio sem fundo.
E Floriana adorava-o, tão cega atração!
Não via a verdade no ignorante coração.
Por Sebastião Come Tudo, seu maior afeto,
Come ela ilusões num prato abjeto.
Aurélia Desmiolada:
E se não há duas sem três nesta algaraviada
Eis que chega, imponente, Aurélia Desmiolada!
Ornada d’alma bendita de luz, tão cobiçada,
e corpinho perfeito de natureza abençoada.
Julgando-se astuta e em postura exagerada,
Destila ciúme, inveja enraizada.
Com seu ar de conselho, de juíza certeira,
Língua feroz oculta em manha sorrateira.
Das outras mulheres fala com insinuações,
Que suas bocas e modos são más inclinações.
Um exemplo de honra, mulher iluminada,
Dos outros vislumbra cenários na cabeça perturbada.
Sussurra a todos seus alvitres ufanos,
Fala em virtudes… mas só vive desenganos!
Dona de muitas retidões, sabedorias mil,
Porém mais perdida que bicho sem quadril.
Com seu verborreico opinar e de moral enfeitada,
Sempre com ares d’afetada, esta é Aurélia Desmiolada.
Mas como falsa, manhosa, atriz vigarista,
Já assim ela por muitos é vista.
E que a almejam os homens! Ah! Mas só pelo corpo.
Será triste seu destino, sem laço nem porto?
Entende-se musa, de colo encantado,
E gira que gira, o cata-vento desaustinado…
O Encontro:
… Por isso, em Floriana, procurou a melhor confidente.
Por ela se infla, se acha influente.
Conversas desenhadas com tinta de maldizer…
E que os outros são tolos que não sabem agradecer
Magistrais surpresas deste universo, mesmo aqui.
E é amor saltitante, abracinhos para lá, beijinhos para ali.
Não intui a de nome Tonta: da boca escapa o segredo.
É que Aurélia é mestra da trama e do enredo:
“Se hoje és querida amiga, amanhã serás degredo,
Visses as tuas costas, saberias o brilho que te concedo.”
E agora Sebastião, brinca que brinca,
na laracha de quem com a verdade m’enganas,
Já pode partilhar sua graça com tonta Floriana
E olho guloso posto em Aurélia sem caco.
Olhares de soslaio, língua sabida: mete tudo no papo!
Certo dia, os três se encontraram em nobre salão,
Para uma festa, uma dança… e certa confusão.
Floriana suspira… Aurélia incendeia!
E Sebastião, de si mesmo, faz grande odisseia.
Nesse dia, um banquete resolve ele armar
Com as suas damas de volta a bailar.
Para Aurélia, um brinde ao espírito nobre!
Para Floriana, o futuro, promessas ao pobre!
E então propõe, num golpe perfeito,
Que vivam os três em laço bem estreito!
Risonho, o artista sugere sem pudor,
Que as duas o venerem, o sigam com clamor.
Floriana sorri, ingénua em excesso,
Aurélia pisca-lhe: "Ele é um sucesso!"
E o jantar alonga-se, vinho e euforia,
Enquanto Sebastião já só pensa em prazenteira folia…
O trio dançante, numa comédia assim,
Nos olhos dos outros, é risota sem fim.
O Desfecho:
No auge da festa, Sebastião proclama
Que o seu amor por Floriana é fogo que o chama…
E Aurélia, desfaçada, com sorriso cerrado,
Declara-lhe: "Tu és vaidoso e safado,
A nós nos encantas com voz disfarçada
Mas és só um vazio de alma estragada."
E é então que Aurélia, a verdade dispara
Sobre os deslizes do rei, na sua cara,
E o vinho revela o que ele escondia,
A sua outra dama… a que ninguém mais sabia!
Naqueles outros tempos em que foi tão feliz
Com Ursulina Matreira, seu príncipe aprendiz.
Faltou-lhe apenas bolso cheio a tilintar.
Ela por outro se arrebatou. A ele, mandou-o passear.
Mas era tão linda, deusa de fazer suspirar,
Dotes ousados e beleza única tinha a sua Matreira!
Tamanha pena ser ele um pelintra, sem eira nem beira.
Só que o sentir profundo é pão que nunca sacia
Por isso, ainda hoje, lhe consagra doce elegia.
Floriana, chocada, mas ainda tão cega,
Atira: “Ele é meu, é a mim que se entrega!”
E só depois de ouvir escárnio tamanho,
Grita: "Sebastião, recuso fazer parte deste rebanho."
Desprevenido, sem saber que mais história inventar,
Emudece-se o Come Tudo, perde-se no próprio pensar.
Assim a festa termina com Sebastião derrotado
Comendo do veneno que havia lançado.
E lá se vão, numa reviravolta de praxe,
Aurélia e Floriana, sem mais palavra que engraxe.
E Sebastião?.. Sem damas e sem janta,
Segue, pois, mudo, com o silêncio na garganta.
Floriana Tonta, sem brilho, à lágrima se acolhe,
Aurélia Desmiolada reluta, mas o ego engole.
E Ursulina Matreira por onde andará?
Num futuro perto, Sebastião de novo a encontrará…
E era assim, uma vez, nesta grande cidade,
Três almas distintas na sua patética vaidade.
A Conclusão:
Qualquer semelhança com a realidade
Nesta espécie de conto de cristalina verdade,
É pura obra de acaso e de ficção,
Pois esta humanidade chega já como feliz inspiração.
Apenas uma história escrita com sátira e arte,
Ao jeito irónico de quem com ele faz tanto alarde.
Ainda que o que os prenda a este final, com vontade,
Seja constatarem que, de melhor inteligência, lhes falta a capacidade.
É que na viagem dos dias, são as gargalhadas divertidas
Quando é gozo feito com o caminhar de outras vidas…
Por isso, assim possa também, todo o palhaço rir de si mesmo
Sem eufemismos e da língua sem testo.
E limpe a boca da encoberta perversão
Com que vai agasalhando a sua alma e o coração.
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). .Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.
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