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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O Presépio de lata

"No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras."
A cidade engalanou-se para mais uma quadra natalícia. Eu e o Perdido deixamos o velhinho 240 D estacionado no sítio de sempre e fomos ver as luzes de Natal. Diziam que estavam muito bonitas. Descemos a Almirante Reis. Havia muito gente. Na drogaria Luso não se cabia. Os pais juntavam os parcos tostões e compravam os brinquedos anunciados na televisão espanhola: carros, bonecas, naves espaciais, pistas de comboio…
Enquanto eu admirava a montra da Luso, o Perdido escapuliu-se para a porta do Talho Gino, a ver se lhe tocava um ossito. Atravessei a rua e vi a senhora velhinha que mora no 13. Tinha escrito os bilhetes-postais para toda a família desejando Um Santo Natal e um Próspero Ano Novo. Que bonitos eram! Comprara os postais aos balcões dos Correios, à Maria Cândida que parece que ainda era sua parenta. Perguntei-lhe se precisava de ajuda e ela percebendo que a minha intenção era outra, disse-me para passar lá por casa, tinha uma coisa para mim.
Não sabia do Perdido, decerto estava enfiado nalgum canto, entretido a roer o osso que o Gino lhe dera. Continuei a descer a rua. Em frente à Perfumaria Transmontana, parei. Gostava de parar por ali e sentir as essências emanadas pelos frasquinhos de vidro. Queria dar um daqueles à Rosa mas eram caros. 
Era quarta-feira e não vi a minha Rosa. Não foi ao cemitério chorar na campa do marido. Esperei toda a tarde à porta do cemitério e nada. Nem lhe pude dar uma flor. Não lhe dei a flor. Coloquei-a na campa do marido da Rosa. Ali jazia Francisco Silveira, morto em combate. Devia ser bom homem pois a Rosa chorava tanto por ele. Nessa tarde de 24 de Dezembro de 1980, não vi a Rosa. E por não ver a Rosa, o dia não estava completo. Uma semana inteira à espera de a ver…
No outro lado da rua, na Pensão Internacional, nas vidraças das janelas viam-se umas luzinhas a piscar e uns sininhos dourados, recortados em papel metalizado comprado na Popular, logo ali abaixo. Desço um pouco mais e uma velhinha de cabelo branco apanhado num crutcho muito perfeitinho parecia esperar por alguém. Estava à porta da Pensão Rucha. Aproximei-me e a velhinha estendeu-me um farnel muito bem aconchegado num pano branco. Porque me oferecia a mim? Para partilhar com alguém especial, que merecesse. Agradeci à velhinha que envolta nas suas vestes negras, subiu as escadas e desapareceu. Cheirei o embrulho. Pareciam rabanadas ou seriam filhós?
Continuei pela Almirante Reis até à Praça da Sé. Na loja dos Coelhos vendia-se de tudo. No Ricardo tiravam-se retratos a meninos muito bem penteadinhos, com coletes aos losangos e calções pelo joelho. A Rosa D`Ouro vendia brinquedos, canetas Parker e outros agrados para o senhor e para a senhora. No relógio da Sé, batiam as dezanove, anunciando o encerramento do comércio. Sentei-me nas escadas que servem de base ao Pelourinho. O Perdido chegou com os beiços untados pelos restos do osso e sentou-se ao meu lado. Ficamos os dois a olhar para o Cruzeiro. Lá dentro, o lustre esforçava-se por brilhar. As pessoas foram saindo dos cafés e dos comércios. As ruas esvaziavam-se de gente que ainda há pouco corria apressada com sacos de compras distribuídos pelos dedos das mãos. As últimas compras. Um bolo-rei e uma garrafa de vinho fino comprados no Vítor Abreu. O Espanhol fechava as portadas e não se vendiam mais peças de pano. Ou botões. O Pinçlas fechava a charcutaria e desaparecia pela Travessa do Zé Machado. Na Rua Direita, a livraria de portas verdes exibia nas montras as novidades e atendia os últimos clientes. Faziam-se embrulhos em papel fantasia, enlaçados com lacinhos feitos de fitas de várias cores. Em frente, o Chico Romão, fechava a porta e apressava-se a beber um tintinho no Nazaré. E a rua morria. E a rua morreu. 
Regressamos ao 240 D estacionado à porta do cemitério. Abri o farnel que a velhinha Rucha me oferecera para “ partilhar com alguém muito especial”. As filhós douradas, moldadas por mãos experientes, estavam lindas e apetitosas. Parti uma ao meio e ofereci uma das metades ao Perdido. 
- Feliz Natal, amigo.
As outras guardei. Eram para a Rosa. Liguei o rádio velhinho que sem pedir licença, debitava versos tristes:

Três estrelas de alumínio
A luzir num céu de querosene
Um bêbedo julgando-se César
Faz um discurso solene
Sombras chinesas nas ruas
Esmeram-se aranhas nas teias
Impacientam-se gazuas
Corre o cavalo nas veias
Há uma luz branca na barraca
Lá dentro uma sagrada família
À porta um velho pneu com terra
Onde cresce uma buganvília
É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,
Oiçam um choro de criança
Será branca negra ou mulata
Toquem as trompas da esperança
E assentem bem qual a data
A lua leva a boa nova
Aos arrabaldes mais distantes
Avisa os pastores sem teto
Tristes reis magos errantes
E vem um sol de chapa fina
Subindo a anunciar o dia
Dois anjinhos de cartolina
Vão cantando aleluia
É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells,
Nasceu enfim o menino
Foi posto aqui à falsa fé
A mãe deixou-o sozinho
E o pai não se sabe quem é
É o presépio de lata
Jingle bells, jingle bells

(Carlos Tê / Rui Veloso)



Rui Machado

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