Boina basca, barbicha de Pai Natal, sorriso doce e olhar decidido, Alípio intenta um comício na estação do Rossio.
Início dos anos 80 - os comboios estão parados há horas, a confusão é tremenda, não há informação aos utentes. Sotaque transmontano em construção brasileira, Alípio exorta o povo a protestar. Arrebanha ouvintes, curiosos e atentos. Até ao momento do grito de ataque. "Pessoal! Vamos ocupar os trens! Se for preciso pegamos fogo!" Aqui chegado, o povo começa a debandar, medroso e baralhado. "Quem é este maluco? Parece o ‘Che’ Guevara!" O "maluco" de boina é Alípio de Freitas, chegado há poucos meses do Brasil. Alípio, o padre Alípio, transmontano de Bragança, escorraçado pela hierarquia da sua Igreja para os confins do Maranhão, muitos anos antes.
O padre Alípio ensinou a rezar os povos nordestinos, português e brasileiro. Depois, ensinou os sem-terra do Brasil a pegar em armas e a lutar. Ajudou a fundar as Ligas Camponesas, movimento radical que pugnava por uma verdadeira Reforma Agrária. Exilado no México, Alípio chega a Cuba a tempo de conhecer outro amante da boina, Ernesto ‘Che’ Guevara. Alípio usa boina desde os seus tempos de jovem, em Bragança (a boina à espanhola, ou galega).
Alípio recebe treino político-militar de ‘Che’ e companheiros. Duro que nem torga, regressa clandestino ao Brasil para continuar a luta. É preso em 1970. Durante uma década é sujeito às mais violentas torturas. Fica célebre a sua reacção aos algozes: resistir a murro, resistir sempre. Zeca Afonso dedica-lhe um poema-canção, intitulado simplesmente... ‘Alípio de Freitas’. Finalmente, em 1980, Alípio é libertado como apátrida. Regressa a Portugal e avança para Moçambique, sempre com o sonho da Reforma Agrária.
De volta a Portugal, trabalha como jornalista e professor universitário. Mas sempre, sempre, agarrado à utopia da Revolução na Terra. Instala-se em Alvito, no Alentejo. E a boina, sempre a boina, que o acompanha como uma arma. A boina, supostamente originária do País Basco, sempre foi usada por camponeses e pescadores. Na Guerra Civil espanhola era uma espécie de distintivo.
Na Galiza e em Trás-os-Montes, o formato é ligeiramente diferente. Gente de lutas, como Jorge de Sena, Raúl Rego ou Heinrich Böll, usava boina. Só depois aparece a boina à ‘Che’ Guevara, no fundo uma boina basca. E há boinas mais prosaicas, como a bico-de-pato, a biscainha ou a escocesa.
Um dia, numa tarde tórrida em Alvito, pergunta-se a Alípio se, no Brasil, teve saudades do butelo e das casulas da sua infância transmontana. Alípio, sorriso de menino, confessa-se. "Tive mais saudades das boinas lá da minha terra..." Alípio foi esta semana a enterrar, na sua terra emprestada de Alvito. Levou para a cova a sua boina negra. Boinas há muitas, mas a de Alípio foi única.
Antiga ortografia
Victor Bandarra
Correio da Manhã
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