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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 5 de novembro de 2017

O “Fecha-Corpo” - Sincretismos

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
Casario da Praça Matriz de Monte Alegre do Sul
Há cerca de nove anos, durante a semana santa do ano de 2008, estive passando uns dias à guisa de descanso, em Monte Alegre do Sul, interior de São Paulo, distante 180 quilômetros da capital. Vencer o estresse; esta era a razão para estar em Monte Alegre do Sul, uma charmosa Estância Balneária, engastada entre as montanhas.
Montanhas estas cobertas de verde, onde ainda nos dias atuais ainda são habitadas por  macacos, seriemas, tucanos e tatus, etc.. Tendo limítrofes os municípios de Amparo e Serra Negra, a cidade de Monte Alegre do Sul é a menor entre as vizinhas com exceção, talvez, de Pinhalzinho; para qualquer trabalhador, um final de semana num hotel charmoso numa cidadezinha ainda mais charmosa, vale como férias e ajuda a diminuir as tensões à que estamos sendo submetidos, nestes tempos de globalização.
A Paisagem bucólica de Monte Alegre do Sul (M.A.S.)
Este autor esteve em monte Alegre do Sul numa manhã de 21/03/2008, uma sexta-feira Santa; a cidade de Monte Alegre do Sul recebia, nesse dia, um grande número de turistas, dentre os quais eu e minha esposa, para participar da tradição cinquentenária do “Fecha Corpo”, que acontece na casa da família Valente, defronte à praça central.
Lá, as pessoas recebem gratuitamente uma dose do “remédio espiritual”, como é chamada por alguns, para “fechar o corpo” contra mau olhado, inveja e outras doenças do espírito. Havia uma fila de cinquenta pessoas, logo às nove da manhã; o quê me fez desistir de participar àquela hora.
Voltei naquele mesmo dia, por volta do meio-dia e conferi a crença de quê aquela dose de cachaça, curtida com guiné, arruda e mel, acompanhada de um naco de pão com “sardela” (pasta processada de sardinha assada desfiada, pimentão assado, ervas aromáticas e azeite), pudesse atrair tanta gente. Pois, ao meio-dia cumpria-se ainda aquele mesmo ritual; só que agora se misturavam na Praça Principal, defronte a igreja Matriz de Bom Jesus de Monte Alegre do Sul, uma multidão: católicos, judeus, umbandistas, ateus, evangélicos e espiritualistas.
Placa Comemorativa do Jubileu de Ouro da morte do Sr. Zezé Valente,
protagonista do mito, fixada à Porta dos seus descendentes,
na Praça da Matriz de M. A. S.
O religioso e o profano, numa mistura de crenças, esperanças, curiosidades e deslumbramentos. A cidade fervilhava de gente ao meio dia: suas pequenas e centenárias ruas, já não comportavam tantos carros. Já havia um enorme congestionamento na cidade e os carros formavam uma espécie de comboio gigante, que não permitia mover-se.
Tudo parado, tudo travado; e a fila para receberem o “fecha-corpo” nunca diminuía, ao contrário, espichava-se.
Os carros, em meio ao congestionamento, andavam no máximo com a incrível velocidade de cem metros cada meia hora; os carros dos turistas da capital e outras metrópoles interioranas, como Campinas, Ribeirão Preto, Araçatuba e São José do Rio Preto, além daqueles das cidades mais próximas, como Amparo, Serra Negra, Pinhalzinho, Jundiaí, Jarinu, Bragança Paulista, Atibaia, Itatiba, Morungaba e etc.; estacionavam na entrada da cidade e transmitia a todos nós aquela sensação de festa, coisa tão gostosa de ver e sentir, cujos valores vamos perdendo à medida que nos acostumamos a viver em uma grande cidade.
O “Fecha Corpo”, é costumeiramente realizado entre as 6:00 h e às 12:00 h, embora tal horário não seja muito rígido.
Praça da Matriz, em Monte Alegre do Sul
A origem deste evento teve início quando amigos e conhecidos do Sr. Zezé Valente, ficaram sabendo da promessa feita pelo Sr. Zezé a uma ex-escrava (Nhá Sabá), por ter sido curado por ela, de uma enfermidade que os médicos da época não conseguiram êxito. Consta-se que o Sr. Zezé Valente estava à beira da morte. Definhava-se, dia a dia.
A família à época tinha alguns amigos, ex-escravos, que viviam com eles, como agregados. Dentre eles, a Nhá Sabá, que quando ainda criança foi beneficiada pela Lei Áurea, que libertou os escravos em 1888.
Corria um ano da década de 1940. A Nhá Sabá, então com oitenta anos, cansada de ver médicos visitando a família e a cura nunca que se concretizava, resolveu falar com o enfermo Sr. Zezé. Disse-lhe ela que, se ele quisesse, ela poderia curá-lo. Nada pediu em troca do favor. Ele  concordou e então ela passou a viver ao lado dele, rezando por ele e servindo-lhe o “fecha-corpo”, acompanhado de um naco de pão e peixe. Aos poucos o Sr. Zezé, foi melhorando até que se curou de vez.
Após a cura, pela Nhá Sabá, ele fez promessa de distribuir o “fecha-corpo” enquanto vivesse assim o fez. O Sr. Zezé só veio a falecer em1948; há 50 anos.
Os descendentes do Sr. Zezé, até hoje seguem o costume iniciado pelo patriarca. Ainda neste Séc. XXI, inúmeras pessoas seguem a tradição, e com fé participam todo ano, tomando em jejum, o “fecha-corpo”; a cachaça com guiné, arruda e mel, acompanhado por um pedaço de pão e peixe, da família Valente! Segundo me foi passado oralmente e constatado pessoalmente, os descendentes do Sr. Zezé ainda vivem naquela casa da Praça da Matriz.
Durante muitos anos eles, para cumprirem a promessa feita pelo patriarca, tinham que desfazer-se de bens, comprando tudo aos pouquinhos, com parcos recursos.
A Torre da Igreja do Bom Jesus em M.A.S.
Se algum dia houve alguma reação do representante do clero na cidade, eu não sei; porém sei que talvez até pela índole dos brasileiros e nossos colonizadores, muitos fiéis saíam da igreja depois de assistir a santa missa, participar da procissão ou da cerimônia do lava-pés, ato contínuo, atravessam a praça e vão direto para a fila defronte à casa da família Valente. Não são raros aqueles que levam a bebericagem para casa, reservando-a como panaceia para pessoas doentes da família ou amigos, que porventura estivessem necessitadas de conforto material e espiritual.
Nos dias atuais, a maioria dos hotéis da cidade de Monte Alegre do Sul, consegue litros e mais litros do “fecha-corpo” para servir aos hóspedes e turistas, sem que tenham que andar a pé por bom tempo e ficar na fila esperando, por horas até. Já há alguns anos, a família Valente tem “patrocinadores”: padarias, peixarias, alambiques, sitiantes, fazendeiros e a Prefeitura Municipal de Monte Alegre do Sul. Todos se esforçam para que a tradição não pare. No ano que vem, pretendo voltar a Monte Alegre do Sul. Certamente voltarei a encontrar a fila de pessoas aguardando o momento de receber o “fecha-corpo”. Se eu não puder ir ano que vem, irei ao seguinte! Bem que estou precisando do fecha-corpo para proteger-me!
- Saravá!

Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores. 

Referências: as fotos inseridas foram feitas pelo autor

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