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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Cândida Florinda Ferreira

Mulher, trasmontana e inteligente, educadora.
(Manuel Cardoso)

Cândida Florinda Ferreira(1) teve quase tudo, à partida, contra si: nascida num lugar recôndito de pais pobres, numa época em que a valorização feminina era nenhuma das prioridades. Teve a sorte de ser dotada dum forte carácter e duma inteligência muito acima da média. 


Com um percurso de vida muito interessante e produtivo, na terra onde nasceu ficou conhecida por ter ‘mandado fazer’ a escola da aldeia e por ter chumbado na tese de doutoramento: de facto, de 13 a 16 de Janeiro de 1937, prestou provas perante a Universidade de Lisboa, sendo a “primeira senhora portuguesa que tentava obter as insígnias doutorais”, como proferiu o presidente do júri. Fez uma defesa verdadeiramente brilhante e os jornais, que diariamente noticiavam as sucessivas sessões do acto académico, iam tecendo um relato elogioso. Mas os examinadores reprovaram-na. Daria uma tese por si só, investigar e publicitar os porquês deste chumbo. Melhor: daria um romance e um excelente filme! Terá havido toda uma teia conspirativa para que assim fosse, que nada terá a ver com o argumento simplista de que nessa época o regime político não deixaria as mulheres sobressair… Este episódio marcará CFF para o resto da vida, indelevelmente.(2) Sem lhe diminuir as qualidades nem a dimensão humana que, para aqueles que com ela conviveram de perto, e a quem protegeu, dela fizeram uma senhora inesquecível.
A sua origem humilde teve como cenário o concelho de Macedo de Cavaleiros, mais precisamente Talhinhas, em 1893, aldeia perto do rio Sabor e cuja vida se fazia centrada na agricultura do azeite, do centeio, do trigo e dos animais, terra de vacas mirandesas e ovelhas churras, no ritmo e na miséria dos pais, jeireiros das casas maiores, com esporádicas idas à feira de Izeda. O clima ali é o do Trás-os-Montes baforado de Espanha, frios cortantes e calor capaz de esmagar fragas. Foi num dia de Verão, 26 de Junho, às cinco da tarde, que nasceu. A sua mãe chamava-se Perpétua da Assunção e o seu pai, António Augusto. Ela de Izeda e ele de Talhinhas, onde viviam. Neta paterna de José Cláudio e Clara Filomena, de Talhinhas, e materna de Vicente Ferreira e Maria Rita, de Izeda. Foi baptizada na igreja de Talhinhas pelo Padre Manuel António Teiga, a 9 de Julho, tendo por padrinhos Benjamin da Cruz e Clara Florinda, jornaleiros, também desta aldeia. A ligação de CFF à terra natal perdurou a vida toda, não com o saudosismo romântico dum bairrismo informe ou irracional mas com a determinação do cumprimento duma missão íntima, cívica e, de certo modo, heróica: o seu relacionamento foi sempre o de alguém que dá a mão, que quer ajudar, que puxa para cima quem quer que seja que precise de sair da mediocridade e da miséria(3). Normalmente os trasmontanos somos tramados para quem sobressai de entre nós e nos ajuda, sentimento de quem não perdoa (por pura inveja?) uma desigualdade pela positiva, pelo mérito, e daí, talvez, o esquecimento ou deficiente memória, com que CFF hoje em dia apenas é lembrada. Ao longo do século XX, duas escolas primárias foram criadas e construídas em Talhinhas, ambas pela mão ou, pelo menos, com o decisivo empurrão dado por CFF: uma em 1933 e outra em 28 de Julho de 1968.(4) Durante as férias, CFF passava sempre uma temporada em Talhinhas onde se ocupava em ensinar pessoas a ler, “homens adultos”, tendo criado mesmo uma pequena biblioteca pública.


Quando, ainda menina, foi descoberta a sua argúcia intelectual, entre os dez e os catorze anos foi mandada estudar num colégio em Lisboa, depois no Porto e, aos dezasseis, faz exame de admissão ao magistério primário em Bragança, cujo curso conclui com distinção em 1912, com 18 valores! Mas não se ficou por aqui: fez o curso complementar dos Liceus em letras e em ciências, o de desenho ornamental da Escola Industrial, o exame singular de Alemão e uma licenciatura em Ciências Histórico-Geográficas pela Universidade de Lisboa, onde se matriculou em 1927. Faz um curso de Literatura na Sorbonne, em Paris, e de Italiano, em Perugia, na Itália, com uma bolsa do governo italiano concedida em Agosto de 1930(5). Entrega a tese de Doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1936, cujo desfecho acima referimos. Todo este percurso académico foi feito ao mesmo tempo que trabalhava: professora do ensino primário em Talhas, em Caçarelhos (onde esteve três anos), em Bragança; na escola de habilitação ao magistério primário em Bragança, em que lecionou e de que foi secretária; regeu uma escola primária em Lisboa, durante a sua licenciatura; professora particular do ensino liceal e, mais tarde, a partir de 1941, foi directora do Colégio Teresa Afonso, em Algés. Dava também aulas em casa, tendo sido explicadora de uma das pupilas de Salazar (e este, como reconhecimento, ofereceu-lhe uma colecção das Obras Completas do Padre António Vieira). Fez conferências, escreveu numerosas cartas a instituições e entidades, chamando a atenção para problemas, intervindo socialmente numa tentativa de resgate — que durou toda a vida — da condição feminina e do drama social das pessoas. Todo este percurso curricular foi deixando um rasto impressionante de publicações, quer em periódicos como o Diário de Lisboa, a Modas e Bordados, Portugal Feminino, O Século, Trás-os- -Montes, Femina(6).
Em 1934, quando preparava o seu doutoramento, aderiu ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, por proposta de Sara Beirão(7). Isto não aconteceu por acaso. No fim da década de vinte tinha alargado os seus horizontes, influenciada pelo espírito universitário, pelo curso de Literatura Italiana e pela preparação dos seus primeiros trabalhos de investigação: A guerra da sucessão no distrito de Bragança. A missão decorrente em Itália, de que fora incumbida pelo governo português, ao mesmo tempo que usufruía da bolsa que ganhara, e para o qual fez um relatório sobre o estudo e o ensino primário naquele país, deu-lhe uma perspectiva totalmente diferente da pedagogia e da condição feminina naquele país. Também a passagem por Paris deve ter tido um efeito de éclat. E toda esta actividade não a tinha feito descurar os seus outros pontos de interesse, continuando a investigar e a publicar uma obra com uma profusão e regularidade notáveis: Talhinhas e as guerrilhas liberais — Notícias monográficas inéditas; A Mulher na Família e na Sociedade Contemporânea; Carrazeda de Ansiães — Notas monográficas; A função educadora da História.
Para o público em geral e, especialmente, para as mulheres, de quem sentia o pulsar social de uma época que foi de charneira, escreveu numerosas páginas cheias tanto de sabedoria como de um pensamento não alinhado com o atavismo do nosso torrão: A mulher portuguesa contemporânea – artigos publicados na revista Modas e Bordados, Lisboa, 1935; A Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida Portugal; Da necessidade do conhecimento da História e da Literatura pátrias; Castros e castelos — A mulher nesses centros guerreiros; A guerra dos cem anos — Seus reflexos em Portugal. Escreveu também um livro de contos: Os sete pecados mortais, que publicou em 1936(8).
Viveu na Rua de S. Marçal, ao Rato, tendo aqui morrido, na freguesia de S. Mamede, em Lisboa, em 8 de Março de 1978.
Ao longo da vida de trabalho intenso e de publicação de trabalhos, Cândida Florinda Ferreira encontrou ainda tempo e espaço para a poesia. Para a dar a conhecer usou um pseudónimo: “Ninguém”.


Mas foi Alguém, sem dúvida, merecedora de um estudo atento e a aguardar a curiosidade e o trabalho metódico da investigação. Investigação da sua vida exemplar, cheia de pontos de interesse e a necessitar esclarecimento, e investigação da sua obra, de que suspeitamos haver inéditos, a julgar pelos testemunhos que pudemos ainda recolher verbalmente(9). De que um diário, já por si de certeza um testemunho insubstituível, e toda a correspondência, um acervo importante a todos os títulos, constituem motivos muito mais que suficientes para fazer desencadear a investigação do seu paradeiro e o posterior tratamento científico para publicação.
Cândida Florinda Ferreira foi uma pessoa rara e inteligente. Não foi rara por ter sido inteligente. Foi-o por ter colocado a sua inteligência sempre ao serviço dos outros. E teve o vislumbre de a colocar por escrito, para que pudesse servir os outros com perenidade. Urge ser republicada. Tanto os seus livros como (sobretudo) os seus artigos.

(1) Já algures publicámos pequenos artigos sobre esta quase esquecida escritora. Este pouco mais é do que um pequeno artigo, mas cumprirá a sua função se servir para despertar o leitor para esta extraordinária mulher: extraordinária no percurso da sua vida, no prodígio da sua obra multifacetada, na saudade e excelente memória que deixou naqueles que com ela conviveram e nos deram o seu testemunho.


(2) Sobre o chumbo no doutoramento, o Abade de Baçal escreveu: seria por «não atingir a bitola? por antifeminismo? Por a ciência oficial andar sempre atrasada? Não sei, e somente que Nicolau Tolentino foi reprovado num concurso de literatura; Pasteur num de química; Galois num de matemática, e tantos outros que espargiram glória bastante para imortalizar a ciência oficial de seus examinadores condenados, sem a coragem de tais reprovações, ao olvido da História.»


(3) Na sua obra Talhinhas e as Guerrilhas Liberais, Coimbra, 1931, na abertura intitulada “Ao Leitor”, CFF escreve: “Fiel ao plano que me impuz tendente a colaborar no ressurgimento cívico, tão galharda e carinhosamente lançado no meu distrito pelo Grupo dos Amigos do Museu Regional de Bragança, apresento mais êste trabalho monográfico sobre Talhinhas, minha terra natal. Compreendo a dificuldade do assunto visto preferir notícias de investigação inédita, deixando as já conhecidas pela imprensa e tendo de forragear, como quem anda ao rebusco, num campo tão larga e profundamente revolvido, explorado, quasi esgotado nalguns pontos, pelo autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, mas é por isso mesmo que mais me atrai. Não se ganham trutas a bragas enxutas e

Sem custo não se galga íngreme estrada,
……………………………………………………………..
Deixa-a de sangue, e de suor banhada,
O que busca no Mundo hum nome honroso.
[O Oriente, José Agostinho de Macedo, n.do A.]

Talhinhas, em férias de verão, 3 de Outubro de 1930.

(4) A fotografia aqui reproduzida que foi tirada neste evento (a Doutora Cândida Florinda Ferreira é a sétima a contar da direita de quem vê a foto) resume bastante bem o seu círculo de amizades mantidas em Macedo de Cavaleiros, onde a família Brás conserva a sua memória ainda hoje.


(5) A trajectória de Cândida Florinda Ferreira traduz a crença de que à mulher é possível conquistar a independência se investir tenazmente na sua formação intelectual, na soma permanente de saberes diversificados. Uma inteligência robustecida nas instituições escolares parece-lhe, assim, a arma mais eficaz contra a discriminação sexual. E a sua prática como investigadora, publicista, conferencista ou até contista mostrará que a problemática relativa à emancipação da mulher lhe prende também a maior parte do tempo, pese embora esta ou aquela incursão nos domínios mais específicos da história local. As tomadas de posição cívicas dão-se sempre a conhecer tendo como suporte legítimo apenas os esquemas de pensamento e as regras analíticas que recebera da universidade. Tal acontece logo com o primeiro texto que publica e vai-se manter válido para os subsequentes. Na verdade, “antes de desenvolver considerações acerca da mulher nos nossos dias” sente-se obrigada, como de resto postula o “verdadeiro método científico”, a dar a conhecer “os seus antecedentes históricos, ou seja, a linha descritiva da sua evolução”. Jorge Ramos do Ó, “Cândida Florinda Ferreira“, in António Nóvoa (dir.), Dicionário de Educadores Portugueses, Porto, Edições Asa, 2003, pgs. 541-543.

(6) As suas numerosas publicações estão elencadas na Bibliografia do Distrito de Bragança, de Hirondino Fernandes, volume III, páginas 703 a 709, edição da Câmara Municipal de Bragança, 2012.


(7) In Zélia Osório de Castro e João Esteves, Dicionário no Feminino, Sécs. XIX-XX, Livros Horizonte, Lisboa, 2005.

(8) Para compreender a circunstância da época e do papel do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, leia-se o artigo deJoão Esteves, “Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas”, in Faces de Eva, Estudos sobre a Mulher, Número 15, 2006.


(9) Testemunhos verbais recolhidos pelo autor junto de pessoas de Macedo de Cavaleiros que com CFF conviveram quer em Lisboa quer em Trás-os-Montes.


Tellus, n.º 61

Revista de cultura trasmontana e duriense
Director: A. M. Pires Cabral

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