(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Mas é a partir dos seis anos que posso colocar uma linha a partir de um ponto claro, que é o dia em que a minha mãe me levou à Escola da Estação, para me matricular na primeira classe do Ensino Primário.
Meses depois houve o primeiro dia de Escola, 07 de Outubro, em que de novo minha mãe me acompanha e me deixa junto dos meus condiscípulos, lembro-os quase todos e sob a tutela da minha querida D. Isabel Belchior, a mulher que depois de minha mãe, mais e melhor influenciou a minha forma de me relacionar com o mundo e as coisas que nele encontrei!
Ao segundo dia já eu fui sozinho, melhor dizendo sem a sua companhia, pois que ela tinha mais para fazer, dado que era grande a nau e maior a tormenta, sendo a casa constantemente ocupada por gente que tinha as mais desencontradas intenções quando transpunha a soleira para entrar ou para sair.
Sendo assim, eu na senda dos outros que eram mais velhos ia para a Escola sozinho e não era que fizesse grande avaria, pois bastava subir à linha do combóio, caminhar até ao Celeiro do Trigo (FNPT), nas traseiras da Moagem Mariano e dar de frente com a Escola Primária do Bairro das Casa Económicas, que abreviadamente designavam de Escola da Estação.
Na parede da fachada principal, um arco em cantaria lavrada dava e dá dignidade ao Edifício que tinha um pouco acima da janela do piso inferior um rectângulo de pedra mármore que rezava: Propriedade do Município!
Entre os sete anos feitos em Agosto e os dez que tinha em Julho de 1960, passaram-se quatro anos letivos que foram os mais proveitosos de toda a minha vida que vai já nos 70, começando a dar sinais de fraqueza anímica, mas ainda com o cérebro medianamente lúcido já que conserva ainda, imagens, sons e odores de sete décadas de vida profícua e mais ou menos de boas memórias.
Será com estes quatro anos de escolaridade que enfrentarei a vida que entra na fase da adolescência e se desenrolará com constância e labor até que com vinte anos entrarei na outra fase esta a derradeira no processo de me tornar homem, o recrutamento para a tropa que decidi cumprir noutra Escola de Virtudes chamada Regimento de Caçadores Pára-quedistas. Pelo caminho há a assinalar a maior perda que a vida me impôs, sendo a morte de minha mãe um marco que continua a ser a linha divisória entre a minha infância despreocupada , que não ociosa. e a assunção de compromissos que aceitei sem reservas e que cumpri razoavelmente com a ajuda inestimável da minha irmã Milú e a amizade, sólida, leal e desinteressada do meu irmão Armando!
Quando comecei a trabalhar na Pastelaria Ribeiro, o tempo e o modo eram assim como um sonho que se realizava estando eu desperto. Das tarefas que me estavam atribuídas havia uma que eu fazia e ainda hoje sorrio ao recordá-la. Sentado na bancada na sala do forno, aí pelas 03:00 da tarde, com uma faca de lâmina de tamanho médio eu limpava as formas dos bolos de arroz e colocava-as de novo num tabuleiro limpo e forrado de papel que comportava 35 aros de folha de flandres que na horizontal, parte estreita do tabuleiro levava cinco e na vertical , parte longa, 7. Trinta e cinco portanto em cada unidade. Em dia normal preparava 5 e aos dias de feira preparava 8. Quando estavam devidamente limpas e ordenadas colocava os tabuleiros na bancada todos seguidos e colocava uma mão cheia de cintas de papel que eram timbradas e cortadas à medida na mão esquerda, fazia um gesto rápido com a direita e colocava a cinta dentro da forma com a maior rapidez de que era capaz e tentava sempre fazê-lo de maneira que o tempo decorrido fosse inferior ao do dia transacto. Com o decorrer do tempo era capaz de por as cintas quatro vezes mais rápido do que o fazia nos primeiros dias em que a prática era nula e assim tornei-me um ás no assunto, tendo com o tempo, conseguido “performances" brilhantes a forrar formas para os pasteis de côco e laranja, sidónios, feijão e pastéis de nata, sendo estas forradas em grandes quantidades tendo mais tarde quando trabalhei em Inglaterra forrado mil e duzentas formas que deixávamos a descansar desde de manhã quando terminávamos o trabalho até cerca das duas/três da madrugada do dia seguinte, na hora que depois de cheias com o belém preparado previamente as cozíamos para a partir das 05:00 da madrugada serem distribuídas por toda a cidade num tempo em que os pasteis de nata começaram a fazer parte dos hábitos alimentares da população londrina.
Voltemos aos bolos de arroz da minha juventude e não era que a habilidade fosse coisa séria mas para mim, que era um miúdo, dava-me um prazer enorme e foi das lições mais frutuosas que me serviram para deduzir que a perseverança no exercício e a disciplina no método, me levavam a gostar de coisas que numa primeira abordagem me eram desagradáveis. Devo acrescentar que quando forrava as formas dos bolos de arroz e como acontecia recorrentemente até aos meus catorze anos, o fazia sempre a cantar, pois eu era como o rouxinol da caneira, já que nesse tempo cantava-se espontaneamente nos trabalhos e todos apoiavam e cantavam em coro.
Havia na residência uma Senhora de idade avançada que era mãe da patroa D. Alice que se chamava Inocência. Era para ela uma alegria ouvir-me cantar e esperava pela hora de eu forrar as formas dos bolos de arroz, para mandar calar a criada, Donzalina e a filha D. Alice e que adorava escutar uma canção do Folclore italiano com lírica em português, criação de Horácio Reinaldo e que rezava assim: /Quando a lua vai mais alto/ É maior a claridade/Tal e qual a tua falta/Aumenta a minha saudade/. Era uma "tarantella" alegre no ritmo mas um pouco dramática na história !/Como quem muda de assunto /Numa conversa mundana/. Mudaste de namorado/No espaço de uma semana/. Mais ou menos isto. E a Senhora já velhinha, adorava ouvir-me e dizia à filha: -Alice, diz ao rapaz que cante aquela dos beijos e dos namorados. /Beijos são matéria louca/Cujas virtudes se dizem/Passam de boca p'ra boca/Não trazem marca de origem/.
Não faço ideia se era apenas o presente da música que lhe eram agradáveis se seriam lembranças que a fizessem recordar, tempos vividos em que ela mesma houvesse amado alguém que recordasse ainda com ternura e sentisse longínquo que fosse o fogo do amor passado. Recordo com nostalgia a simpatia que ela me dispensava e lembro que dizia à filha: -Vê lá se arranjas que o rapaz forre mais tabuleiros de bolos de arroz, pois ele agora termina a cantilena muito mais rapidamente do que há tempos atrás. Já eu forrava aquilo com destreza que perdi quando tempos depois fui promovido a oficial, logo que mudei para o Poças e a idade e experiência me trouxeram capacidade e saber para deixar de forrar bolos de arroz, não deixando nunca de preparar as massas e de ser eu a tendê-los de manhã bem cedo como primeiro item da produção que antecedia a cozedura dos croissant's.
Ainda hoje gosto de bolos de arroz e é dos poucos que ainda como com prazer quando me apetece um café e um bolo de arroz.
As cintas eram feitas na Escola Tipográfica/Patronato de Santo António, onde pontuavam o Senhor Gomes, o Zé Manuel e o grande amigo João Reis. (Bolos de Arroz-fabrico diário da Pastelaria Ribeiro-Rua Alexandre Herculano-Bragança-Fabrico Próprio. (Fundo branco e letras azuis, em papel de boa qualidade, que os tipógrafos do Patronato fizeram durante décadas e que foram a razão da minha amizade e admiração por esta Casa e todos os que nela trabalharam e lhe deram prestígio. E de uma história de bolos de arroz, coisa menor nas ementas de pastelaria, mas que ainda hoje se vendem e consomem aos milhares e são um ex-libris da pastelaria tradicional portuguesa, fica para os que me conhecem e também os que me lêem um pedaço da minha vida que muito estimo e me orgulho. Nem só de grandes feitos se fazem as vidas. Também no livro dos Provérbios 22-29 pode ler-se: -Vês um homem hábil no seu trabalho? Ele se manterá diante dos Reis e não permanecerá entre gente ignóbil! Também o povo diz: -O trabalho dignifica o homem basta para preencher uma vida.
Gaia 07 de Outubro de 2019. 63 anos após o meu primeiro dia de Escola.
A. O. dos Santos (Bombadas)
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