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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 12 de outubro de 2019

Um percurso de vida, normal até à década de 50 do século vinte, mas já menos frequente a partir da década de 60

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Há um registo de memória mais ou menos claro, a partir dos meus seis anos de idade, sendo que em alguns casos mais nebulosos, penso ter memórias dos meus quatro anos já nos finais e já mais claras nos meus cinco.
Mas é a partir dos seis anos que posso colocar uma linha a partir de um ponto claro, que é o dia em que a minha mãe me levou à Escola da Estação, para me matricular na primeira classe do Ensino Primário.
Meses depois houve o primeiro dia de Escola, 07 de Outubro, em que de novo minha mãe me acompanha e me deixa junto dos meus condiscípulos, lembro-os quase todos e sob a tutela da minha querida D. Isabel Belchior, a mulher que depois de minha mãe, mais e melhor influenciou a minha forma de me relacionar com o mundo e as coisas que nele encontrei!
Ao segundo dia já eu fui sozinho, melhor dizendo sem a sua companhia, pois que ela tinha mais para fazer, dado que era grande a nau e maior a tormenta, sendo a casa constantemente ocupada por gente que tinha as mais desencontradas intenções quando transpunha a soleira para entrar ou para sair.
Sendo assim, eu na senda dos outros que eram mais velhos ia para a Escola sozinho e não era que fizesse grande avaria, pois bastava subir à linha do combóio, caminhar até ao Celeiro do Trigo (FNPT), nas traseiras da Moagem Mariano e dar de frente com a Escola Primária do Bairro das Casa Económicas, que abreviadamente designavam de Escola da Estação.
Na parede da fachada principal, um arco em cantaria lavrada dava e dá dignidade ao Edifício que tinha um pouco acima da janela do piso inferior um rectângulo de pedra mármore que rezava: Propriedade do Município!
Entre os sete anos feitos em Agosto e os dez que tinha em Julho de 1960, passaram-se quatro anos letivos que foram os mais proveitosos de toda a minha vida que vai já nos 70, começando a dar sinais de fraqueza anímica, mas ainda com o cérebro medianamente lúcido já que conserva ainda, imagens, sons e odores de sete décadas de vida profícua e mais ou menos de boas memórias.
Será com estes quatro anos de escolaridade que enfrentarei a vida que entra na fase da adolescência e se desenrolará com constância e labor até que com vinte anos entrarei na outra fase esta a derradeira no processo de me tornar homem, o recrutamento para a tropa que decidi cumprir noutra Escola de Virtudes chamada Regimento de Caçadores Pára-quedistas. Pelo caminho há a assinalar a maior perda que a vida me impôs, sendo a morte de minha mãe um marco que continua a ser a linha divisória entre a minha infância despreocupada , que não ociosa. e a assunção de compromissos que aceitei sem reservas e que cumpri razoavelmente com a ajuda inestimável da minha irmã Milú e a amizade, sólida, leal e desinteressada do meu irmão Armando!
Quando comecei a trabalhar na Pastelaria Ribeiro, o tempo e o modo eram assim como um sonho que se realizava estando eu desperto. Das tarefas que me estavam atribuídas havia uma que eu fazia e ainda hoje sorrio ao recordá-la. Sentado na bancada na sala do forno, aí pelas 03:00 da tarde, com uma faca de lâmina de tamanho médio eu limpava as formas dos bolos de arroz e colocava-as de novo num tabuleiro limpo e forrado de papel que comportava 35 aros de folha de flandres que na horizontal, parte estreita do tabuleiro levava cinco e na vertical , parte longa, 7. Trinta e cinco portanto em cada unidade. Em dia normal preparava 5 e aos dias de feira preparava 8. Quando estavam devidamente limpas e ordenadas colocava os tabuleiros na bancada todos seguidos e colocava uma mão cheia de cintas de papel que eram timbradas e cortadas à medida na mão esquerda, fazia um gesto rápido com a direita e colocava a cinta dentro da forma com a maior rapidez de que era capaz e tentava sempre fazê-lo de maneira que o tempo decorrido fosse inferior ao do dia transacto. Com o decorrer do tempo era capaz de por as cintas quatro vezes mais rápido do que o fazia nos primeiros dias em que a prática era nula e assim tornei-me um ás no assunto, tendo com o tempo, conseguido “performances" brilhantes a forrar formas para os pasteis de côco e laranja, sidónios, feijão e pastéis de nata, sendo estas forradas em grandes quantidades tendo mais tarde quando trabalhei em Inglaterra forrado mil e duzentas formas que deixávamos a descansar desde de manhã quando terminávamos o trabalho até cerca das duas/três da madrugada do dia seguinte, na hora que depois de cheias com o belém preparado previamente as cozíamos para a partir das 05:00 da madrugada serem distribuídas por toda a cidade num tempo em que os pasteis de nata começaram a fazer parte dos hábitos alimentares da população londrina.
Voltemos aos bolos de arroz da minha juventude e não era que a habilidade fosse coisa séria mas para mim, que era um miúdo, dava-me um prazer enorme e foi das lições mais frutuosas que me serviram para deduzir que a perseverança no exercício e a disciplina no método, me levavam a gostar de coisas que numa primeira abordagem me eram desagradáveis. Devo acrescentar que quando forrava as formas dos bolos de arroz e como acontecia recorrentemente até aos meus catorze anos, o fazia sempre a cantar, pois eu era como o rouxinol da caneira, já que nesse tempo cantava-se espontaneamente nos trabalhos e todos apoiavam e cantavam em coro.
Havia na residência uma Senhora de idade avançada que era mãe da patroa D. Alice que se chamava Inocência. Era para ela uma alegria ouvir-me cantar e esperava pela hora de eu forrar as formas dos bolos de arroz, para mandar calar a criada, Donzalina e a filha D. Alice e que adorava escutar uma canção do Folclore italiano com lírica em português, criação de Horácio Reinaldo e que rezava assim: /Quando a lua vai mais alto/ É maior a claridade/Tal e qual a tua falta/Aumenta a minha saudade/. Era uma "tarantella" alegre no ritmo mas um pouco dramática na história !/Como quem muda de assunto /Numa conversa mundana/. Mudaste de namorado/No espaço de uma semana/. Mais ou menos isto. E a Senhora já velhinha, adorava ouvir-me e dizia à filha: -Alice, diz ao rapaz que cante aquela dos beijos e dos namorados. /Beijos são matéria louca/Cujas virtudes se dizem/Passam de boca p'ra boca/Não trazem marca de origem/. 
Não faço ideia se era apenas o presente da música que lhe eram agradáveis se seriam lembranças que a fizessem recordar, tempos vividos em que ela mesma houvesse amado alguém que recordasse ainda com ternura e sentisse longínquo que fosse o fogo do amor passado. Recordo com nostalgia a simpatia que ela me dispensava e lembro que dizia à filha: -Vê lá se arranjas que o rapaz forre mais tabuleiros de bolos de arroz, pois ele agora termina a cantilena muito mais rapidamente do que há tempos atrás. Já eu forrava aquilo com destreza que perdi quando tempos depois fui promovido a oficial, logo que mudei para o Poças e a idade e experiência me trouxeram capacidade e saber para deixar de forrar bolos de arroz, não deixando nunca de preparar as massas e de ser eu a tendê-los de manhã bem cedo como primeiro item da produção que antecedia a cozedura dos croissant's.
Ainda hoje gosto de bolos de arroz e é dos poucos que ainda como com prazer quando me apetece um café e um bolo de arroz.
As cintas eram feitas na Escola Tipográfica/Patronato de Santo António, onde pontuavam o Senhor Gomes, o Zé Manuel e o grande amigo João Reis. (Bolos de Arroz-fabrico diário da Pastelaria Ribeiro-Rua Alexandre Herculano-Bragança-Fabrico Próprio. (Fundo branco e letras azuis, em papel de boa qualidade, que os tipógrafos do Patronato fizeram durante décadas e que foram a razão da minha amizade e admiração por esta Casa e todos os que nela trabalharam e lhe deram prestígio. E de uma história de bolos de arroz, coisa menor nas ementas de pastelaria, mas que ainda hoje se vendem e consomem aos milhares e são um ex-libris da pastelaria tradicional portuguesa, fica para os que me conhecem e também os que me lêem um pedaço da minha vida que muito estimo e me orgulho. Nem só de grandes feitos se fazem as vidas. Também no livro dos Provérbios 22-29 pode ler-se: -Vês um homem hábil no seu trabalho? Ele se manterá diante dos Reis e não permanecerá entre gente ignóbil! Também o povo diz: -O trabalho dignifica o homem basta para preencher uma vida.




Gaia 07 de Outubro de 2019. 63 anos após o meu primeiro dia de Escola.
A. O. dos Santos (Bombadas)

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