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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O silêncio dos inocentes

 Nessa altura, ela não tinha olheiras nem acusava a maldição da casca de laranja, aperaltava-se só para ele, tinha os cabelos longos, de uma cor só, e nos tempos remotos em que ele a levava a jantar fora, ao segundo copo de vinho, entrelaçava os dedos dela nos seus, como se fosse um cadeado. A cada frase, era como se descobrissem a pólvora dos seus sentimentos.
Depois, o tempo passou, a vida passou por eles como um bulldozer. Ele ficou um tanto ao quanto disforme, ela um tanto ao quanto envelhecida, cheios de filhos, de contas, rotina. Quando deram por eles, o irresistível magnetismo tinha perdido os seus poderes para os automatismos conjugais. Tornaram-se um daqueles casais clássicos, presos por arames às leis de Deus e da Igreja.
Um dia, que ela não sabe bem definir no tempo, seguramente depois de 1997, algo mudou no funcionamento da empresa onde o marido trabalhava desde sempre. “Querida, não contes comigo para jantar, tenho uma reunião. Que é tu queres... não sou eu quem manda. Trabalho é trabalho. Não chego tarde.”
Ele dizia-lhe sempre que não ia chegar tarde e depois chegava de madrugada, a armar-se em homem invisível, a tropeçar nos tarecos da casa, a tresandar a álcool e a uma certa fragrância, que durante muito tempo ela não soube identificar, talvez porque algo nela se recusasse a fazê-lo.
O que mais lhe chamou a atenção foi o facto de ele voltar a fazer a barba todos os santos dias, incluindo os fins de semana. A empresa andava a exigir muito do seu homem. Além de ter apertado o protocolo de higiene pessoal dos seus trabalhadores, de ter liberalizado os horários de expediente e de ter decretado a semana de sete dias de trabalho, pelos vistos também o tinha obrigado a comprar cuecas todas modernas. Houve um dia em que apareceu em casa com sacos de compras, ele, que só comprava o que via nas montras, e às vezes era ela que comprava por ele. Por amor de Deus, por que raio o homem precisava de peúgas pretas e um pullover aos losangos? Os filhos acharam piada a esta nova tendência fashion do pai. Ela achou que ele estava numa crise já tardia de meia-idade. Já tinha visto o número de telenovelas suficiente para perceber que alguma coisa se passava.
Ela era um número indeterminado de mulheres, um número indeterminado de famílias bragantinas, um número indeterminado de lares à beira da destruição, a própria condição feminina. Ele era o protótipo de um número indeterminado de homens da cidade de Bragança sob o efeito dos rabos de saias.
Havia sobre elas uma determinada culpa cristã. E sobre eles uma certa desculpabilização, como se, em vez de a culpa ser deles, fosse antes da tentação.
Desde há uns tempos que a cidade fora invadida por mulheres de má índole, vistosas, maquilhadíssimas, sacerdotisas da sedução, meretrizes que andavam por ali às compras com o dinheiro dos seus maridos, exercendo a sua feitiçaria nos incautos pais de família, impotentes (salvo seja) para resistir ao seu charme tropical. Lá se iam os ordenados, as reformas, as poupanças de uma vida, trocados por outra, de libertinagem.
Que ninguém tivesse dúvidas, comadres.
O diabo de saias tinha nome: “as brasileiras”. Essas ‘rodopiadoras’ de varão não usavam apenas os seus corpos tonificados para os enfeitiçar. Já se comentava — e nunca há fumo sem fogo — que elas faziam “candomblés” para os ter pela trela, digamos assim.
Alguma coisa tinha de ser feita. As mães de Bragança não estavam dispostas a cozinhar para uma mesa vazia. Se eles eram tão bem-comportados antes de essas mulheres terem chegado à cidade, de quem era a culpa? Delas. Delas, das outras, bem entendido. O inimigo dos seus lares corrompidos. A quem haviam declarado guerra. Uma estranha milícia “cívica” da moral e dos bons costumes estava em formação.
Corria o ano de 2003.

AS MÃES DE BRAGANÇA

As Mães de Bragança, enquanto movimento, começou em banais conversas quotidianas, uma espécie de congregação de queixumes, na qual as queixosas haviam de descobrir grandes coincidências comportamentais nos seus desavindos maridos. Por causa da mesma moral e dos mesmos costumes, durante algum tempo o assunto não havia saído do perímetro do matrimónio. Até não ser mais possível silenciar tanta noitada, inusitados maus-tratos, um estado quase hipnótico de desprezo e uma sangria desatada nas contas bancárias. O movimento começou com um abaixo-assinado de quatro autoproclamadas mães de família, apelando não só às mulheres como elas, com os lares em farrapos, mas a todos os bragantinos de bem que pugnassem pelos intrínsecos valores cristãos, constantemente desafiados no seu território. Aquela pacata cidade transmontana, com pouco mais de 35 mil habitantes, era agora habitada pelo que definiam como “praga social”, que não podia deixar indiferentes por muito mais tempo os verdadeiros transmontanos, sob pena de com as suas famílias ruírem as fundações da própria nacionalidade.
Se os maridos, alguns já avós, faziam as suas diatribes em segredo, em segredo elas fizeram a sua conjura. Este segredo, porém, não era para ser guardado. As quatro justiceiras, em nome das Mães de Bragança, puseram a correr um abaixo-assinado, que em poucos dias já tinha mais de uma centena de assinaturas. E lá estavam muitos chefes de família, afirmando, sob juramento e respetivo termo de identidade, que estavam com a causa.
O abaixo-assinado das Mães de Bragança chegou no mesmo dia (29 de abril de 2003) à Câmara Municipal, Governo Civil e Comando Distrital da PSP de Bragança, assim como à agência Lusa. Às mencionadas autoridades, as mães pediam que salvassem a cidade daquele devaneio generalizado, provocado “por uma onda de imigrantes brasileiras ligadas à prostituição”. A missiva começava por uma resenha da história do mundo: “Sabemos que desde o início dos tempos sempre houve prostituição”, seguida de um alerta vermelho, da cor da luz que à noite brilhava em alguns estabelecimentos da cidade, onde o pecado corria à solta. “O que está a acontecer em Bragança é uma autêntica onda de loucura, que tem de ser combatida e travada. Somos agora invadidas e fustigadas por dezenas de prostitutas aquarteladas em boîtes, mesmo durante o dia, em bairros residenciais, em todo o canto e esquina da cidade.” Em larga maioria, as subscritoras denunciavam os seus lares desfeitos pelo “flagelo da prostituição que assola Bragança”. Era isto o que se queria para a sua estimada cidade? “Com certeza que não”, embora os maridos, secretamente, pudessem ter opinião diferente.
Aquela situação, complexa de várias maneiras, tinha já “contribuído, ainda mais, para a degradação dos valores” da sua terra. “Como é possível permitir-se a continuada abertura de casas de alterne nesta cidade?”, questionavam, de retórica.
Que não restassem dúvidas. Embora encarecido, este não era um daqueles pedidos para que as autoridades averiguassem de ânimo leve as ditas ocorrências, para ficar para depois. Era uma declaração de guerra. “Não podemos continuar a permitir que Bragança seja conhecida como a cidade número um da vida noturna, em droga, em consumo de bebidas alcoólicas e em prostituição.” As Mães de Bragança estavam dispostas a levar a causa para a praça pública, onde os assuntos se resolvem à boa maneira antiga, variando o tom entre o maternal e o guerreiro.
“Queremos evitar fazer Justiça pelas nossas mãos.
Mas, se a isso formos obrigadas, não nos esquivaremos, pois queremos, necessitamos, merecemos ter paz nos nossos lares, nos nossos corações.”
Se Deus quisesse, a cópia do abaixo-assinado enviada para a agência noticiosa não deixaria a sua demanda cair em saco roto. Era possível que a opinião pública estivesse até muito sensível ao seu argumentário.
Desde setembro de 2002 que o assunto mediático do dia era o Processo Casa Pia, que atingia contornos de Ballet Rose. Pois bem, diretamente de Trás-os -Montes, as mães entregaram de mão beijada outro escândalo para a nação. A Lusa cumpriu o seu papel, revelando ao mundo a notícia, que veio à estampa no dia 30 de abril de 2003. E as Mães de Bragança, que até hoje sempre encontraram maneira de manter o seu religioso anonimato, fizeram com que o seu assunto saísse deste. No lado B do anonimato, não se sabe como reagiram os maridos de Bragança, que vestiram a carapuça, certamente inquietos pelo andar da carruagem mediática, quiçá mais sossegados pela narrativa, que publicamente tomava forma, de também eles serem vítimas do “mal”, enfeitiçados pelas poções que lhes administravam “essas mulheres” para os manter sob os seus poderes, nas versões mais esotéricas. “E nós, filhas da terra, aconchegamo-nos na tristeza e na destruição dos nossos lares, com o peso do sofrimento, porque elas vieram aliciar os nossos maridos com falinhas meigas, canas-de-açúcar e droga à mistura!”, lamentavam.
Num instante, o caso chegou à diocese de Bragança-Miranda, mais inclinada para a fraqueza da carne.
Não deixando de se pronunciar sobre o caso, exigiu a quem de direito “esforços redobrados” para que em Bragança se reencontrasse a “dignidade e a santidade do casamento cristão”.
A contenda tornou-se pública exatamente nos moldes em que elas a colocaram: a eterna luta entre o bem e o mal, as ardilosas feiticeiras e os coitaditos dos enfeitiçados, as meretrizes e os seus incautos maridos, numa sinopse pecaminosa de noites e lares perdidos.
As Mães de Bragança, aparentemente, absolviam os maridos. E a culpa havia de morrer solteira.

O REI DA NOITE

Filho de emigrantes, Camilo Gonçalves nasceu em França. Visitava Bragança no mês oito, sagrado no calendário da diáspora. De visita, gostava muito da cidade. “Nunca na vida tinha pensado em viver em Bragança.” É claro que a vida dá muitas voltas. Camilo também nunca se imaginara casado até conhecer Eliane Pereira Lima numa viagem de negócios ao Brasil. Em França, era gestor de condomínios.
Uma atividade que lhe permitiu “ir juntando umas massas” para o que o futuro reservasse. Foi em 1997, quando Eliane já era Gonçalves, que se deu a epifania.
“Eu era já frequentador da noite.” Não foi por via do casamento que deixou de o ser. Numa dessas visitas a Bragança decidiu ir à Bruxa com uns amigos. A Bruxa era o bar de alterne mais conhecido da cidade, com créditos firmados do lado de cá e do lado de lá da fronteira. Camilo Gonçalves tirou os olhos do varão para observar o ritmo frenético da caixa registadora.
“Percebi que aquele negócio era uma máquina de fazer dinheiro”, recorda. A resistência ao instinto não é um dos seus fortes. Uns dias depois fez uma oferta ao dono da Bruxa, à qual também este não resistiu. Investiu as poupanças num bar de alterne e mudou-se para Bragança, alternando em viagens para o Brasil. O negócio não o desiludiu. Cinco anos mais tarde (2002) comprou o Montelomeu, que era um espaço muito maior, com vista sobranceira para a cidade, próximo do Santuário de São Bartolomeu, onde instalou a sua residência, paredes-meias com um negócio em clara fase de expansão. O Montelomeu rapidamente dominou a noite, tornando-se conhecido para os indefetíveis simplesmente por ML.
Camilo recorda esses tempos com pragmatismo e alguma nostalgia. “O negócio estava a correr muito bem. Não só para mim como para a economia local.”

As Mães de Bragança, enquanto movimento, começou em banais conversas
quotidianas, uma espécie de congregação de queixumes

As ditas mulheres eram às centenas e gostavam de andar por Bragança a fazer compras, iam aos cabeleireiros, consumiam. Os taxistas nunca trabalharam tanto como nessa altura. E, a dado ponto, até o Grupo Desportivo de Bragança, clube de futebol local, era patrocinado pelo ML, que tinha um cartaz enorme no estádio. “Eu também não me podia queixar”, diz Camilo. Pelo menos, como as Mães de Bragança, fenómeno ao qual o empresário da noite não deu cavaco.
“Nunca obriguei ninguém a trabalhar nem a frequentar o meu estabelecimento.” Que se tratava de uma casa de alterne “também nunca neguei”.
Aproveitando para esclarecer que “nem todos iam ao mesmo”, faz ele próprio a pergunta sacramental: “Cabia na cabeça de alguém um homem gastar 200 ou 300 euros com uma mulher sem querer mais alguma coisa? É evidente que não.” O problema, se havia algum, devia colocar-se no inverso: “Essas senhoras deviam é perguntar-se porque é que os seus maridos tinham de ir à procura de algo que não tinham em casa.”
As Mães de Bragança nunca julgaram que o seu expediente iria chegar tão longe, com tanto impacto.
O mesmo aconteceu com Camilo Gonçalves e os restantes empresários da noite bragantina. Isto apesar das rusgas da praxe, nada a que não estejam habituados, embora estas se tenham sucedido a um ritmo invulgar. Sem dúvida, efeitos colaterais do manifesto.
Só o ML teve uma rusga a 4 de maio, outra a 8 de agosto, outra a 14 do mesmo mês, em que seriam apreendidas somas avultadas em dinheiro, documentação e diversos apetrechos relacionados com o métier da casa, desde lençóis descartáveis, bisnagas de gel lubrificante, umas quantas algemas, uma revista pornográfica (marca “Pizete”), vestuário e acessórios sensuais e uma quantidade substancial de material profilático. Traduzindo: “Preservativos que nunca mais acabavam, pá!”, recorda Camilo Gonçalves, que não foi o único a sofrer este tipo de “retaliações”. Preferia não encarar isto como perseguição, antes como uma espécie de ossos do ofício.
Se do ponto de vista das autoridades a pressão já não era meiga, pois o caso “Mães de Bragança” esteve sempre em crescendo mediático, no dia 14 de outubro de 2003, na sua edição europeia, a revista “Time” fazia capa com o tema em que se havia transformado Bragança, com a fotografia de uma rapariga brasileira e a cidade por cenário: “Europe’s New Red Light District”.
“O novo bairro de prostituição da Europa? Só podia ser para rir. Uma esquina de Amesterdão tinha mais casas de alterne do que Bragança inteira”, acrescenta Camilo, lembrando-se desse estranho período da sua vida. As Mães de Bragança propriamente ditas nunca lhe tiraram o sono, mas o efeito que estas estavam a causar começava a preocupá-lo um bocadinho, proporcional à ligeira quebra do negócio.
Natural, com as autoridades espevitadas e os holofotes dia e noite sobre a sua atividade. As Mães de Bragança já não eram as mães de Bragança. Pelos vistos, o mundo inteiro estava de olho neles. A moral tinha-se internacionalizado. E isso, para uma casa em território transfronteiriço, não era bom.

O JANTAR DE SÁBADO
Sábado, 14 de fevereiro de 2004, Dia dos Namorados.

Não é possível saber quantas desculpas esfarrapadas as pobres mães de Bragança, signatárias ou não, terão ouvido nesse dia, quantos dos seus maridos não tiveram qualquer coisa urgente para fazer logo à hora do jantar. Para eles, o grande momento do dia era a noite, antecipando coisas especiais, apropriadas a São Valentim, por divinal antítese casamenteiro.
Camilo Gonçalves recorda bem essa noite. “Não lhe vou mentir. Se calhar, não devia dizer isto, mas na noite anterior uns agentes que frequentavam o ML — atenção, fora de serviço — avisaram-me que o melhor era eu não estar presente nessa noite, porque estava preparada uma operação das grandes. Disseram-me isto por gentileza, mas acho que eles próprios pouco sabiam do que ia acontecer.” O que ia acontecer, conforme se confirmaria, seria uma megarrusga, que varreu os maiores bares de alterne de Bragança. “Uma coisa de filme.” Vindo de quem vinha, o proprietário do ML levou a coisa a sério. Nessa noite, recebeu uma chamada do gerente do ML, que lhe comunicou que “a casa caiu, Camilo, a casa caiu”.
Camilo tomou as palavras à letra: “Caiu? Mas alguém está ferido? É grave?” O gerente foi mais preciso: “Fecharam-nos a casa.” Dada a sequência, menos mal.
Camilo Gonçalves quer esclarecer uma coisa de uma vez por todas: “Eu não fugi.” Não estava no interior do ML ou na sua casa, mas “estava mesmo atrás deles” (polícia e elementos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), ao pé do parque de estacionamento, a ver “aquele aparato todo”. Não era momento para atribuir as culpas fosse a quem fosse. Era momento para agir. “Peguei no carro e dirigi-me para Alcanices”, localidade espanhola, próxima da fronteira com Portugal. “Nessa mesma noite comprei o Club Play Boy”, estabelecimento congénere. “No dia seguinte estavam lá as raparigas todas.” Em Espanha, o empresário foi avisado por amigos de que as polícias espanhola e portuguesa estavam a organizar-se para o deter. “Ninguém gosta de ser preso, não é?
Pedi a outro amigo que me levasse a Madrid e apanhei um avião para parte incerta”, diz, irónico. Embora tivessem corrido versões que tinha fugido para a Venezuela, na verdade foi para a origem do seu negócio, o Brasil.

Em 2003, a pacata cidade transmontana, com pouco mais de 35 mil habitantes, passou a estar habitada pelo que definiam como uma “praga social”

Entre funcionários das casas de alterne de Bragança, mulheres em situação ilegal e os respetivos proprietários ocorreu uma verdadeira torrente de detenções, que encheu de orgulho as Mães de Bragança.
Camilo Gonçalves seria mais tarde julgado à revelia por 144 crimes de lenocínio agravado e um crime de auxílio à imigração ilegal. Domingos Celas Pinto, que dirigia o bar Nick Havana, foi detido nesta vaga, ficando em prisão preventiva. Em 2006 seria libertado por excesso de tempo de prisão preventiva e fugiria igualmente para o Brasil. No Brasil, acabaria por ser detido e, numa decisão pouco habitual, o Supremo Tribunal Federal brasileiro, em setembro de 2009, deliberou pela sua extradição para Portugal.
Foi condenado a oito anos de prisão. Outros dois gerentes do Nick Havana seriam condenados a seis anos de prisão. Manuel Podence, dono do bar de alterne Top Model, foi por sua vez condenado a nove anos de prisão. Mesmo em regime de pulseira eletrónica, acabou por fugir. Foram ao todo três processos judiciais, com 15 arguidos.
Segundo a acusação do Ministério Público (MP) de Bragança, no “ML moravam, em média, 20 mulheres, e na Bruxa, em média, oito mulheres, que pagavam à ‘casa’, pela estadia e alimentação, uma quantia diária de 50 euros”. O ML tinha três quartos no rés do chão e 14 no sótão, todos com “cama de casal, TV, guarda-fatos e WC privativa”. Nas contas da acusação, entre 2003 e a data do seu encerramento, haviam passado pelo ML 210 mulheres para trabalhar na prostituição. Ainda de acordo com a acusação, tudo o que elas faziam era contabilizado ao pormenor.
“Anotava-se em suporte de papel os atos de sexo praticados, discriminando as percentagens delas e do estabelecimento, os ‘alternes’ realizados por cada mulher, os shows de striptease e os valores das bebidas consumidas pelos clientes.” Ao fim da noite, “às mulheres eram efetuados os descontos das diárias (habitação e alimentação), bem como da quase totalidade dos montantes até ao integral pagamento de três mil a quatro mil euros para saldar os ‘débitos’ relativos às passagens de avião (que custavam no máximo 800 euros)”. Não só no ML, mas na generalidade das casas de alterne de Bragança, era assim que o esquema funcionava, na versão do MP, que acrescentou: “As mulheres, por regra não portuguesas, eram recrutadas no estrangeiro, normalmente na América do Sul.”
Na megarrusga do Dia dos Namorados, contavam-se para lá de três mil lençóis descartáveis e perto de 400 preservativos apreendidos. Foram igualmente apreendidos veículos, telemóveis, material informático e, como não podia deixar de ser, a bendita caixa registadora. Do cofre que Camilo Gonçalves tinha na garagem foi ainda apreendida uma verba próxima de 150 mil euros.
Para gáudio secreto das Mães de Bragança, que se resguardaram sempre em rigoroso anonimato, o Ministério Público não se poupou em zelo para calcular a quantia que o dono do ML e da Bruxa obteve através de atividade ilícita, fazendo mesmo contas de merceeiro. Uma cerveja, por exemplo, custava ao proprietário 0,38 cêntimos e era vendida por 5 euros.
Uma garrafa de vodka custava 7,78 euros e era vendida quase pelo mesmo preço uma dose: 7,50 euros.
Um whisky velho custava 17,70 euros e era vendido por 75 euros. E por aí em diante, do tradicional espumante à insuspeita garrafinha de água. As contas estenderam-se ao sexo. “Considerando que as subidas [termo para referir o quarto] rendiam diariamente ao ML, em média, 600 euros [60 subidas x 10 euros] e à Bruxa, pelo menos, 250 euros [25 x 10]; considerando que os exploradores obtinham da exploração do negócio o rendimento líquido diário de 2960 euros [ML] e 1230 euros [Bruxa]”, tudo somado, o MP calculou que o lucro ilícito do negócio ascendia a 4.750.430 euros. Essa verba devia ser considerada perdida a favor do Estado e “os arguidos” (Camilo e Eliane) tinham de a pagar solidariamente.

O SONO DAS ALGEMAS

O Ministério Público pedia ao coletivo do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Bragança uma pena exemplar para o prevaricador-mor da cidade, o rei da noite.
Com Camilo Gonçalves no seu retiro incerto, parece que de repente toda a gente se tinha tornado uma Mãe de Bragança de trazer por casa, clamando pela pesada mão da Justiça. Foi exatamente isso que obteve, no julgamento à revelia, em 2007. O empresário, sob quem pairava um mandato de captura internacional, foi condenado a um cúmulo de nove anos de prisão; os seus três carros foram apreendidos, o dinheiro vivo e os saldos das várias contas bancárias foram arrestados, o ML e a Bruxa foram dados como perdidos para o Estado, assim como o seu recheio. No total, o empresário foi ainda condenado a pagar ao Estado 1.882.106,66 euros. Ainda assim, uma verba bastante mais branda.
Camilo Gonçalves não se conformou com esta sentença do Tribunal Judicial de Bragança, e os seus advogados recorreram desta para o Tribunal da Relação do Porto, que em 2012 viria a revogar uma parte substantiva da sentença. Quase como se a montanha judicial de Bragança, afinal, tivesse “parido um rato”, como afirma Camilo Gonçalves.
O Tribunal da Relação determinou “revogar o acórdão recorrido na parte em que declarou perdido a favor do Estado o montante de um milhão oitocentos e oitenta e dois mil cento e seis euros e sessenta e seis cêntimos; e o dinheiro apreendido e o saldo das contas arrestadas e, em sua substituição, declarar perdido a favor do Estado o montante líquido ilícito de 313 mil euros”. A Relação do Porto revogou ainda a decisão de declarar perdidos a favor do Estado “todos os bens móveis apreendidos ao arguido, nomeadamente os veículos automóveis, e em especial todo o recheio dos estabelecimentos ML e Bruxa”.
A pena de prisão foi igualmente revogada, condenando Camilo Gonçalves a uma pena única de oito anos de cadeia.
Não é que o empresário tenha ficado esfuziante com esta última parte, mas a decisão do Tribunal da Relação do Porto acabou por ditar o seu regresso voluntário a Portugal. “Vontade de ser preso eu não tinha. Eu vim num voo sozinho, a minha mulher e os meus filhos vieram noutro voo. Sabia que ia ser preso mal chegasse a Portugal e não queria que os meus filhos assistissem a isso.” Chegado ao Porto, apresentou os seus documentos e aguardou que lhe dessem voz de prisão. “Em vez disso disseram-me ‘bem-vindo a Portugal’. Nem queria acreditar. Era um dos homens mais procurados pela Interpol.” Não seria Camilo Gonçalves a fazer o que as autoridades não fizeram. “Como é que eu lhe posso dizer... Vim com intenção de me entregar. Mas, perante aquilo, fui à minha vida.”
A sua vida já não se encontrava em Bragança, “nem eu tinha alguma intenção de lá ir”. Rumou para o sul, para os lados de Setúbal, onde terá retomado os negócios de alterne, embora isso Camilo não confirme. Até que, um dia, recebeu um telefonema de um amigo, em Alcanices (Espanha), a convidá-lo para uma almoçarada. A Eliane cheirou a esturro.
“Aceitei, era um amigo. Fui para Espanha no carro de um cunhado, aposentado da GNR. Dei o primeiro gole no vinho e não me lembro de mais nada. Acordei na fronteira de Quintanilha, entregue à PJ de algemas, veja bem. Como se eu fosse algum assassino.”
Foi em novembro de 2013. Aparentemente, Camilo Gonçalves fora traído por um amigo e pela sua atividade no Facebook. Cumpriu quatro anos de prisão efetiva no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira. “Não desejo isso nem ao meu pior inimigo.”

Quatro justiceiras puseram a correr um abaixoassinado, que em poucos dias já tinha mais de uma centena de assinaturas

Em 2019, o empresário quebrou pela primeira vez o seu silêncio, já em liberdade condicional, numa reportagem da SIC, em que se encontrava com a família no sítio onde tudo começou: o Montelomeu.
Camilo continuava nessa altura com os seus carros apreendidos e o recheio do ML por libertar. “E a pagar impostos do carro e das casas.” Só muito recentemente o Tribunal de Bragança autorizou a avaliação do recheio do ML, assim como da sua casa de habitação. “Foi avaliado em cerca de 500 mil euros.
Estava tudo ao abandono, tudo semidestruído. É assim a Justiça portuguesa.” Camilo vive atualmente em França com a família. Ainda é dono do ML e da Bruxa, mas não é bruxo. De certo, sabe que só lhe falta um ano para terminar a condicional e voltar a ser um homem livre. Nas suas contas, o Estado está a dever-lhe dinheiro. Às Mães de Bragança não guarda o menor rancor, porque não foram elas que o condenaram.
Aliás, ninguém lhe tira da cabeça que a questão não teve nada a ver com as Mães de Bragança. “Tenho quase a certeza que foi tudo por causa de um polícia e do seu cunhado, que era um dos melhores clientes do ML. Acho que isto tudo foi para tirá-lo da má vida.
O mais estranho é que ele nem sequer ia ao meu estabelecimento por causa das mulheres. Era mais um amante do whisky.”

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