Doris Day, uma menina bonita do cinema americano dos anos 50 por quem muito adolescente se apaixonou, cantava, salvo erro no filme “O homem que viveu duas vezes”, uma canção com título italiano: ‘Che serà, serà’. Nela, conforme se depreende do título, a loira actriz punha em equação os enigmas do futuro, mas dum futuro previsivelmente risonho e imediato, pessoal. A canção, em tempo de valsa, ficava no ouvido. Era bonitinha, mas cor-de-rosa e obviamente inócua de um ponto de vista de inquietações existenciais.
Jorge de Sena abre um poema célebre, daqueles a que não podemos ficar indiferentes, com estas palavras terríveis: ‘Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso [...]’.
É também uma interrogação testamentária sobre o futuro. Mas é já uma interrogação de sentido colectivo sobre um futuro que diz respeito a todos. Todavia, Jorge de Sena não se ocupa ainda, neste poema, das tremendas interrogações que se abatem hoje sobre o homem à face da terra: os seus dilemas angustiantes, a sua sobrevivência problemática, o seu destino, enfim. Reflecte antes sobre o esplendor da vida e a injustiça da morte.
Introduzindo-as embora num contexto diferente, faço minhas as palavras de Jorge de Sena. Também eu, por muito que o deseje, não posso dirigir a meus filhos outras palavras sobre o futuro que não sejam aquelas: ‘Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso’. É que não sei mesmo. Como todos os pais, desejo esse futuro alegre, de abundância e paz, de concórdia e solidariedade, de felicidade, em suma. Mas vejo acumular sinais de que talvez os meus filhos não venham a viver no mundo que lhes desejo.
Eu sei que há muito quem aposte que o futuro será um admirável mundo novo, fiados na rapidez e eficácia estonteantes com que a ciência vai resolvendo alguns problemas da humanidade. A ciência e a tecnologia, novíssimas panaceias... Mas, bem vistas as coisas, uma e outra são como uma manta curta: se tapa dum lado, destapa doutro.
Esta escassez da manta está evidente em tantos casos, que mal valeria a pena exemplificar. Mas exemplifiquemos, mesmo assim. A industrialização, por exemplo, filhote dilecto da ciência e da tecnologia, é hoje indispensável. Ela produz bens e riqueza para uns, dá trabalho a outros: é o tal tapar da manta. Mas lá vem o reverso, o destapar: a chuva ácida por que a industrialização é responsável destrói as florestas, que não são menos importantes do que a industrialização. Simplesmente, chamado a tomar partido, o homem vulgar dirá: ‘Tenha eu electrodomésticos e automóvel e as concomitantes comodidades, e as florestas que se lixem.’ Porque está condicionado para abrir pacoviamente a boca ante as maravilhas do progresso e para ambicionar uma vida repleta de bens de consumo, daqueles de usar e deitar fora, e para minimizar coisas de que, de tão discretas, nunca questionou a importância vital: a floresta e o oxigénio, por exemplo.
Há cinco anos, feitos por estes dias, aconteceu Chernobyl. Chernobyl é uma tremenda recordatória de outras fragilidades do progresso. Energia barata e limpa, diziam (hoje creio que já não se atrevem). Vai-se a ver — e um simples acidente num reactor pode comprometer a saúde e a vida dum continente inteiro. O que a manta tapa não vale um milésimo do que a manta destapa, afinal.
Podíamos falar ainda da destruição da camada do ozono, dos derrames de petróleo no mar, da desflorestação do Amazonas e do derretimento do gelo polar, de aquecimento global, da desertificação, dos excessos climáticos: tudo em nome do progresso e do bem-estar — e tudo a fazer lembrar a história do homem que gastou o último dinheiro que tinha a comprar uma carteira. Mas a verdade é que as catástrofes ecológicas não são o único efeito perverso, nem talvez o mais deletério, do progresso. A desorientação ética, a imposição de novos valores e códigos de comportamento à desproporção do homem, o ruir de quadros de referência estáveis e a sua substituição pelo vazio, são igualmente inquietantes filhotes do progresso. Empurrada por eles, a sociedade caminha para a desertificação moral, desumanizando o humano, reduzindo-o à componente vegetativa, dando razão, tragicamente razão, embora com uns anitos de atraso, a George Orwell, a Aldous Huxley e a outros a quem coube debruçar-se sobre o futuro e ter a lucidez de ver que as demasias científico-tecnológicas não podiam descambar senão em miséria e drama.
Jorge de Sena abre um poema célebre, daqueles a que não podemos ficar indiferentes, com estas palavras terríveis: ‘Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso [...]’.
É também uma interrogação testamentária sobre o futuro. Mas é já uma interrogação de sentido colectivo sobre um futuro que diz respeito a todos. Todavia, Jorge de Sena não se ocupa ainda, neste poema, das tremendas interrogações que se abatem hoje sobre o homem à face da terra: os seus dilemas angustiantes, a sua sobrevivência problemática, o seu destino, enfim. Reflecte antes sobre o esplendor da vida e a injustiça da morte.
Introduzindo-as embora num contexto diferente, faço minhas as palavras de Jorge de Sena. Também eu, por muito que o deseje, não posso dirigir a meus filhos outras palavras sobre o futuro que não sejam aquelas: ‘Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso’. É que não sei mesmo. Como todos os pais, desejo esse futuro alegre, de abundância e paz, de concórdia e solidariedade, de felicidade, em suma. Mas vejo acumular sinais de que talvez os meus filhos não venham a viver no mundo que lhes desejo.
Eu sei que há muito quem aposte que o futuro será um admirável mundo novo, fiados na rapidez e eficácia estonteantes com que a ciência vai resolvendo alguns problemas da humanidade. A ciência e a tecnologia, novíssimas panaceias... Mas, bem vistas as coisas, uma e outra são como uma manta curta: se tapa dum lado, destapa doutro.
Esta escassez da manta está evidente em tantos casos, que mal valeria a pena exemplificar. Mas exemplifiquemos, mesmo assim. A industrialização, por exemplo, filhote dilecto da ciência e da tecnologia, é hoje indispensável. Ela produz bens e riqueza para uns, dá trabalho a outros: é o tal tapar da manta. Mas lá vem o reverso, o destapar: a chuva ácida por que a industrialização é responsável destrói as florestas, que não são menos importantes do que a industrialização. Simplesmente, chamado a tomar partido, o homem vulgar dirá: ‘Tenha eu electrodomésticos e automóvel e as concomitantes comodidades, e as florestas que se lixem.’ Porque está condicionado para abrir pacoviamente a boca ante as maravilhas do progresso e para ambicionar uma vida repleta de bens de consumo, daqueles de usar e deitar fora, e para minimizar coisas de que, de tão discretas, nunca questionou a importância vital: a floresta e o oxigénio, por exemplo.
Há cinco anos, feitos por estes dias, aconteceu Chernobyl. Chernobyl é uma tremenda recordatória de outras fragilidades do progresso. Energia barata e limpa, diziam (hoje creio que já não se atrevem). Vai-se a ver — e um simples acidente num reactor pode comprometer a saúde e a vida dum continente inteiro. O que a manta tapa não vale um milésimo do que a manta destapa, afinal.
Podíamos falar ainda da destruição da camada do ozono, dos derrames de petróleo no mar, da desflorestação do Amazonas e do derretimento do gelo polar, de aquecimento global, da desertificação, dos excessos climáticos: tudo em nome do progresso e do bem-estar — e tudo a fazer lembrar a história do homem que gastou o último dinheiro que tinha a comprar uma carteira. Mas a verdade é que as catástrofes ecológicas não são o único efeito perverso, nem talvez o mais deletério, do progresso. A desorientação ética, a imposição de novos valores e códigos de comportamento à desproporção do homem, o ruir de quadros de referência estáveis e a sua substituição pelo vazio, são igualmente inquietantes filhotes do progresso. Empurrada por eles, a sociedade caminha para a desertificação moral, desumanizando o humano, reduzindo-o à componente vegetativa, dando razão, tragicamente razão, embora com uns anitos de atraso, a George Orwell, a Aldous Huxley e a outros a quem coube debruçar-se sobre o futuro e ter a lucidez de ver que as demasias científico-tecnológicas não podiam descambar senão em miséria e drama.
| "Repórter do Marão", 3 de Maio de 1991 |
Apostila: Neste ano de 2019, parece que o mundo acordou enfim para uma realidade assustadora: a de que o Planeta A está em agonia e não há Planeta B que o substitua. E foi preciso uma adolescente sueca, Greta Thunberg, dar dois berros emocionados para o mundo começar enfim a perceber que está à beira do abismo. Espicaçados por manifestações, sobretudo de jovens, os governos começam atabalhoadamente a gizar planos de emergência. Mas estaremos ainda a tempo de arrepiar caminho? A dúvida é devoradora da esperança. E cada vez acho mais sentido aziago nas palavras de Jorge de Sena: «Não sei meus filhos [e agora já netos também] que mundo será o vosso...»
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