Fizemos uma experiência de fazer folares há dias, cá em casa, a antecipar a Páscoa, usando uma velha receita, mas com os starters e farinha de agora. Estreou-se uma masseira de madeira nova, que escaldámos, e o Miguel fez todo o trabalho de modo profissional. À antiga, com invocações e esconjuros também, desenhos de cruzes ao adicionar ingredientes, discretamente, mas cuja eficácia ficou provada: o folar saiu de massa esplêndida, tão esplêndida que agora pensamos que os futuros deste ano irão ser decepções, se não nos precavermos com recomendações para a padaria onde os encomendarmos. Tivemos cá a Noémia nesse dia e, no dia seguinte, a Teresa e o Zé Manel, todos unânimes em que a massa assim e as carnes assado. Até a Marília Nunes telefonou à Mariana a elogiar a prova que lhe mandámos. Partilhámos a sequência fotográfica na net, em whatsapp e em FB, suscitando uma fornada de comentários ávidos e de cumprimentos seguros, de pedidos de receita e até frases de inveja, boa inveja, pelo Miguel não poder estar presente em todas as casas.
Tínhamos deixado levedar a massa em frente à lareira, tapada por (século XXI!) uma manta das que a BP ou o ACP dão por pontos de combustível. Funcionou perfeitamente! Ficou no ponto para se tender e só não pudemos dispor o presunto, o salpicão e as rodelas de linguiça em dois andares porque, em vez das velhas formas de casa de nossos Pais (as latas de fiambre ou as do queijo da CARITAS dos tempos do pós-segunda guerra), usámos um tabuleiro alto de inox mas que não era suficientemente alto. Besuntado com o fantástico azeite tradicional dos olivais trasmontanos, o resultado só pôde ser bom, embora, ao espreitarmos pelo vidro da porta do forno e ao vermos crescer mais ainda a massa a trasbordar, temêssemos pelo resultado final. Foi glorioso, como se provou!
A tentação de descrever como era a saga dos folares nos tempos em que eram amassados em casa pela Senhora Olímpia, enformados em casa, mandados para o forno de Castelãos, da Senhora Palmira, na carroça do Vila Real, regressados no anoitecer de Sexta-Feira Santa e que ao jejum e abstinência desse dia acrescentavam o suplício de respirarmos o seu perfume tentador e ainda termos de esperar pela meia-noite para podermos encetar um mais pequeno para as provas, a tentação de descrevermos isso tudo, e muito mais, é grande, mas iremos resistir. Porque há uma outra coisa que queremos realçar neste artigo: a de que o folar de Trás-os-Montes é uma obra-prima da culinária portuguesa.
Há um discurso fácil, repetido acerca de muitas das coisas que fazemos em Trás-os-Montes, de que é diferente de terra para terra, é diferente de casa para casa. Isso acontece com as alheiras, com o fumeiro, com os queijos, com o pão, com o vinho, com tudo, com os folares também, pois claro. Mas acontece também uma coisa que temos que reconhecer honestamente: a de que o denominador comum e o resultado final exprimem um padrão cujas características se mantêm quer a nossa dentada seja dada numa fatia dos saídos dum forno na Serra da Padrela ou no Planalto Mirandês. Seja o da Feira de Valpaços, seja o das padarias de Bragança, o dos fornos a lenha de Edroso, de Vale de Prados ou de Lamas ou doutra aldeia de Macedo, o tostado da côdea de cima, o amarelo pingue da massa, o travo do fumeiro e carnes – ou o da sua ausência, nos folares que as não levam – o cheiro da vontade de o comer só de vê-lo, repetem-se em cada um no supremo prazer de o experimentar com chá, com vinho ou com consomé de galinha velha.
Os folares de casa dos meus Pais eram diferentes entre si. Nos anos cinquenta, sessenta e setenta eram despachados pelos CTT e pelo combóio em grande velocidade (designação da época para as encomendas que tinham de chegar ao destino no dia seguinte) em embrulhos de papel vegetal, papel ferro dobrado e fio de norte a atar, selo de chumbo a prender os dois que se soltavam do nó direito final, para Santarém para casa da Tia Aida, para Lisboa para o Avô, Pai da Minha Mãe, para os Tios Vicente e Eduardo, para a Maria de Lourdes Farinha (madrinha duma das minhas irmãs), para o General Adriano Pires, para tantos outros. Cada um com peso diferente, consoante a previsão dos que os iriam provar em cada família, cada um com recheio diferente. Havia um, para uma casa em especial, que era feito só com bifinhos de vitela e febras de peru, outro sem levar toucinho, outro em que o toucinho era rei, assim por diante. Em Macedo ficavam os que seriam para abrir na Páscoa, em que o maior era comido de garfo e faca, seguido duma sobremesa de doce de abóbora com ovos e nozes, ementa simples e absolutamente superlativa. Ficavam também os que as minhas irmãs levariam depois consigo. Sendo todos tão diferentes, eram todos folares de Trás-os-Montes e o rasto do seu sabor ficou lendário: lendário mas real, porque já connosco, nos tempos recentes, os nossos amigos e família, em Lisboa, falam-nos do folar de Trás-os-Montes sem o menorizar com distinções de paróquia nem preferências geográficas entre portas. O importante é a massa? É o recheio? Digamos que o importante é o modo e o ser feito em Trás-os-Montes, a mistura atenta e familiar dos fermentos, da farinha, dos ovos, do azeite, da manteiga, do tempo.
Que leva tempo, importante de ser medido, para as voltas e esmagares de mãos, e o bater da massa, a levedura, o aguardar com paciência serem metidos no forno, o não ter pressa de os tirar de lá, mas não os tirar tarde demais. O tempo era, dantes, medido em orações, Pai-Nossos e Avé-Marias. Hoje, com um relógio ou com o cronómetro do telemóvel. Mas há um compasso que não pode faltar: o do sentido para que são feitos, o valor familiar e transcendente da Páscoa. Compreendidíssimo pelas gerações mais novas já que a manobrar a pá do forno não são só velhinhas de lenço preto, testemunhas duma tradição, são raparigas novas com auriculares a ouvir música por bluetooth e que depois vendem os pães em carrinhas brancas por aldeias e lojas. Obra-prima da culinária, muito mais do que um alimento feito de ovos, azeite, farinha, carnes, tempo, intenção e destinos. Folar de Trás-os-Montes.
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