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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Viagens — 21 - Telha de igreja

Que terá assim de especial a telha de igreja, para entrar no título de um capítulo deste livro de contas? Tem isto: sempre goteja. O povo assim o diz num provérbio: “Telha de igreja sempre goteja”. Ou seja, as outras telhas podem gotejar ou não, conforme a chuva, mas a da igreja goteja sempre. 
É mais um provérbio que não deve ser tomado à letra. Quer dizer: é uma metáfora — melhor, a combinação de duas metáforas. E aproveito este ensejo para dizer a admiração que me causa a extraordinária capacidade do povo para criar e se exprimir por metáforas. Querem outro exemplo? 
Socorramo-nos deste texto da obra Adágios portugueses reduzidos a lugares comuns, publicada em 1651 por um padre alentejano de nome António Delicado.
Um rei quis experimentar o juízo de três conselheiros que tinha, e indo a passear com eles encontrou um velho a trabalhar num campo, e saudou-o:
— Muita neve vai na serra!
Respondeu o velho com a cara alegre:
— Já, senhor, é tempo dela.
Os conselheiros ficaram a olhar uns para os outros, porque era Verão, e não percebiam o que o velho e o rei queriam dizer na sua. O rei fez-lhe outra pergunta:
— Quantas vezes te ardeu a casa?
— Já, senhor, por duas vezes.
— E quantas contas ser depenado?
— Ainda me faltam três vezes.
Mais pasmados ficaram os conselheiros; o rei disse para o velho:
— Pois se cá te vierem três patos, depena-os tu.
— Depenarei, real senhor, porque assim o manda.
O rei seguiu seu caminho a mofar da sabedoria dos conselheiros, e que os ia despedir do seu serviço se lhe não soubessem explicar a conversa que tivera com o velho. Eles, querendo campar por espertos, foram ter com o velho para explicar a conversa; o velho respondeu:
— Explico tudo, mas só se se despirem e me derem a roupa e o dinheiro que trazem.
Não tiveram outro remédio senão obedecer; o velho disse:
— Olhem: “Muita neve vai na serra”, é porque eu estou cheio de cabelos brancos; “Já é tempo dela”, é porque tenho idade para isso. “Quantas vezes me ardeu a casa?” é porque diz lá o ditado: “Quantas vezes te ardeu a casa? Quantas casei a filha.” E como já casei duas filhas sei o que isso custa. “E quantas vezes conto ser depenado?” é que ainda tenho três filhas solteiras e lá diz o outro: Quem casa filha depenado fica.
Agora os três patos que me mandou o rei são vossas mercês, que se despiram e me deram os fatos para explicar-lhes tudo.
Os conselheiros do rei iam-se zangando, quando o rei apareceu, e disse que se eles quisessem voltar para o palácio vestidos que se haviam ali obrigar a darem três dotes bons para o casamento das outras três filhas do velho lavrador.
Está bom de ver que o rei e o lavrador falam por metáforas: a neve são os cabelos brancos, a serra á a cabeça, o arder a casa é o casar-se uma filha, etc. E também está bom de ver que os conselheiros do rei se limitavam a um uso literal da linguagem, o que significa que a linguagem metafórica, não sendo universalmente usada e compreendida, é, ipso facto, uma forma superior de linguagem. 
Se estiver um dia de chuva e dissermos que telha de igreja sempre goteja estamos provavelmente a expressar uma realidade crua, aliás comum à generalidade das telhas, que, todas elas, escorrem água quando chove. Mas, graças a um mecanismo mental que permite como que uma translação de sentido, podemos subir do literal ao metafórico, e fazer com que ‘telha de igreja’ deixe de ser cada um dos elementos físicos constitutivos da cobertura dos edifícios e passe a significar ‘modo de vida do padre’. Do mesmo modo, e graças ao tal mecanismo mental, ‘gotejar’ deixa de ser o mesmo que pingar, escorrer a água da chuva e passa a significar ‘dar rendimento’. Metáforas, portanto.
Bem espremidas, pois, as duas metáforas, quer-se com esse provérbio dizer que o múnus do padre é um modo de vida como qualquer outro e que o padre, como qualquer outra pessoa, precisa de rendimentos para se sustentar. O 5.º e último mandamento da Igreja estipula que os cristãos devem contribuir para as despesas do culto e para a sustentação do clero. É aí que entram conceitos como côngrua e direitos de estola, ou de pé-de-altar, como também se diz.

(Continua.)

A. M. Pires Cabral

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