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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Viagens — 24 - Os dois papões

 O aldeão de outros tempos — este de que as contas falam — levava uma existência prenhe de inquietações e medos, quando não de terrores, a bem dizer, do berço à tumba.
Desde logo, atormentavam-no as dúvidas sobre o que encontraria quando fechasse de vez os olhos. Não é que duvidasse de que existe um além. Mas esse além era-lhe muito mal explicado nas homilias. O medo das labaredas eternas do inferno sobrepunha-se à esperança de conseguir um lugar à mão direita de Deus. Por muito que se esforçasse por ganhar o céu, a poder de missas, hóstias, orações e esmolas, restava sempre a incerteza sobre o seu destino além-túmulo. Na idade avançada, visões do inferno povoavam-lhe a noite de terrores. O infalível altar das almas, na igrejinha do lugar, e as pregações cominatórias na missa da festa anual encarregavam-se de lhe mostrar o fogo pavoroso e inextinguível que o esperava ali ao dobrar da esquina que já não vinha longe.  
Mas não precisava de subir à esfera da metafísica para se inquietar e sofrer. As contingências terrenas apertavam-lhe também o cerco: ele era a fome, ele era o frio, ele era a doença, ele eram as desgraças que lhe fustigavam os dias, mormente aquelas sobre as quais sentia não ter qualquer espécie de domínio e perante as quais se sentia indefeso. Entre estas, estava — ora, quem mais havia de ser? O senhor escrivão, que acordava já com a prece na boca: “Deus desavenha quem nos mantenha.» O escrivão, que em sentido próprio era o funcionário judicial que o citava para julgamento, está aqui no significado expandido de todo e qualquer agente das duas instituições humanas que o aldeão mais temia: a fazenda e a justiça. Os dois papões.
A fazenda alimentava-se dos impostos e os impostos eram dinheirinho muito chorado, que lhe era extorquido à má-fila. Pagava a décima — termo que ainda se vai ouvindo — com a mesma boa vontade e entusiasmo com que as ovelhas se prestam à tesoura do tosquiador. Não deixava de ter razão para a má vontade, já que não via aplicado na sua aldeia o dinheiro das tributações e continuava a viver em condições sanitárias muito problemáticas. Lá de longe a longe, quando o rei fazia anos, a câmara inaugurava um melhoramento: uma bica ou um tanque de lavar ou o calcetamento duma rua, e viva o velho. De forma que, contrariado embora, pagava a décima e não bufava, ou então, se bufava, bufava baixinho, com medo de que, ouvindo-o, o senhor escrivão lhe dobrasse a dose.
 Quanto a justiça, ficaria tudo dito com uma praga definitiva: ‘Oxalá te caia a justiça em casa.” A justiça é vista como uma calamidade em que ninguém se quer ver envolvido, com a possível excepção do velho Leonardo — personagem dum conto de Miguel Torga, justamente intitulado “Justiça” — que passou a vida em contendas de tribunal. Miguel Torga dá ao conto um desfecho magistral. Ora leiam:

 − Quer vir, tio Leonardo?
 − Não tenho pernas. Se não, bem gostava! Está um dia bendito.
 − Bom para semear batatas...
 − Quais batatas! Bom mas é para ir pôr uma demanda. Com um sol destes, eram favas contadas...

 O aldeão execrava a justiça por mais de um motivo. Em primeiro lugar, talvez, porque lhe reprimia e disciplinava os instintos, cerceando-lhe a liberdade para — é só um exemplo —espancar ou mesmo esfaquear um vizinho com quem andasse em litígio.  
 Depois, havia sempre aquele temor dos erros judiciários, que podiam atirar com um inocente para as Pedras Negras — símbolo sinistro do desterro em terras de Angola.
 Por fim, era bem conhecida a venalidade de muitos juízes e funcionários judiciais, cujas sentenças eram proporcionadas às peitas recebidas. 
 Este respeito quase supersticioso deve vir de tempos muito antigos, anteriores mesmo àqueles em que almotacés e beleguins demandavam as terras para depenar o contribuinte e executar no delinquente as justiças d'el-rei. Ambas as coisas — impostos e justiça — eram discricionárias e irascíveis, conforme rezam pelo menos dois ditados — “Lá vão leis onde querem reis” e “A lei tem mangas e manguitos” —, que satirizam a fragilidade e a ductilidade das leis..
  Com o rodar dos anos, a prepotência de reis e senhores atenuou-se. Hoje já não é possível aceitar poderes discricionários. Mas mantém-se o reflexo atávico de antipatia do povo pelos escrivães, aqueles que mais de perto acolitam o doutor juiz e evocam as ameaças da justiça. Segundo o povo, a oração matinal dos escrivães é: ‘Deus desavenha quem nos mantenha.’ E de um dia muito tempestuoso diz-se: ‘Hoje nasceu algum escrivão!’ E está tudo dito, creio, quanto à sapeira do rústico pelo honrado cargo de escrivão. Quanto ao advogado de acusação, o povo chamava-lhe ‘atarrador’, que provavelmente estará por ‘aterrador’, de ‘aterrar’, isto é meter medo. As manhas dos advogados nos julgamentos; a facilidade com que confundiam testemunhas e réus; a gravidade ritual de todos aqueles senhores vestidos de preto a trocarem vénias; a sobranceria com que era tratado pelos oficiais de diligências eram outros tantos motivos de aflição do pobre aldeão que algum dia se visse entalado na camisa de onze varas que é a justiça. 
Há dicionários de pragas, onde se pode ler, por exemplo, “Perseguido da justiça te eu veja até que a tua própria sombra te meta medo”, praga corrente, nestes precisos termos ou equivalentes. Outra praga recorrente em terras de Carção era “Oxalá te caia a justiça em casa”. E o uso do verbo ‘cair’ não é casual: traz consigo a ideia de devastação e ruína. O aldeão considera que casa onde entrou a justiça é como se tivesse ardido. Curiosamente, esta imagem da casa ardida encontra-se também noutro contexto bem diferente. Ouve-se com frequência dizer que quando um homem casa uma filha é como se lhe tivesse ardido a casa.
E basta de  considerações. Terminemos esta longa viagem de 24 etapas com um conta em que o povo mostra os seus sntimentos para com os escrivães e quejandos.
 Diz que um dia o São Pedro disse ò Criador que não era abantaije niúma ter criado o home e que apostaba em como ele tamém era capaz de fazer um.
 − Atão bá, bamos lá a ber essa hab’lidade − disse Nosso Senhor.
 E o São Pedro toca a pegar num cibo de barro e a fazer um macareno. Stava tal e qual, mas Nosso Senhor, reparando melhor, disse assim, de caçoada:
 «− Olha que bem stá! E atão o coração, onde lo pusestes? 
 «− Ah, alvidei-me do coração! Não faz mal: faço-lhe um buraco no peito e meto-lho lá.
 «− Não, não − atalhou Nosso Senhor. − Deixa-o ficar sem coração. Guarda-se para escrivão ou fiscal.
 Quod erat demonstrandum.
E acho que vamos ficar por aqui...
Foi um prazer, Ciao!

A. M. Pires Cabral

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