A família Menéres continua na posse de uma das mais extraordinárias quintas de Portugal. Conversa com o homem à frente do seu destino, com os olhos postos no futuro, sem esquecer o passado. E que passado.
Assim que entro na povoação, vê-se a Escola Primária Clemente Menéres. Jerusalém do Romeu confunde-se com a história dos Menéres. Tudo passou por eles.
Vira-se à esquerda e há um arco que dá acesso ao casario da quinta. Lá dentro, um pátio idílico com videiras seculares e funcionários agrícolas de um lado para o outro, como nessas telenovelas de tramas familiares campestres. “O João deve estar a chegar”.
Também terá havido peripécias cinematográficas entre os Menéres, a família que há mais de 150 anos gere os destinos de 3000 hectares de terreno, com epicentro na aldeia a sul de Mirandela. Mas a filosofia do fundador continua a iluminar a empresa agrícola. Hoje, como em 1874, quando pela primeira vez Clemente Menéres ali parou, mantêm-se as três culturas de origem — azeite, vinho e cortiça — e mantém-se o compromisso de honrar o fundador.
Há dias, quando fui ter com João Menéres, 42 anos, para o entrevistar, desconhecia, todavia, a história toda. Só depois de lá estar — e de ler a notável investigação do historiador Jorge Fernandes Alves sobre Clemente Menéres, “De Pedras fez Terra” — percebi o que se escondia naqueles montes suaves de sobreiros e olival a perder de vista, à beira da A4.
A história é imensa, notável. O Romeu foi e é um símbolo de coragem, inovação, preservação. Um símbolo de respeito e resistência.
Resistência a um país que não é para empreendedores que actuam com lisura, sem cunhas, sem viveram do Estado. Resistência à falta de infra-estruturas, ao analfabetismo, à falta de formação. Resistência a um país que não é para agricultores.
Contra todos os entraves, atravessando três séculos, o Romeu lutou, perdeu e ganhou.
Perdeu com a filoxera. Perdeu com os incêndios, depois com o míldio. Perdeu com o terreno acidentado transmontano. Perdeu com a concorrência dos azeites do super-intensivo. Perdeu com a fruta bonita que começou a chegar de fora. Perdeu com a burocracia e com a distância para Lisboa.
Mas também ganhou. Ganhou uma cultura — a cortiça — numa região que a queimava. Ganhou uma linha de caminho de ferro, a Linha do Tua. Ganhou o mais cuidado e consistente azeite português dos séculos XIX e XX. Ganhou pomares onde antes só havia fragas e pedra. Ganhou frutas de sonho, locais e de fora (devemos-lhe, por exemplo, a introdução da maçã Golden Delicious, o pêro amarelo, em Portugal). Ganhou uma extravagante Denominação de Origem Controlada do Douro (estando longe do vale do Douro). Ganhou vinhos com identidade. Ganhou a certificação de biológico quando o bio era brincadeira de hortelãos. E ganhou respeito. Dos consumidores. Dos colegas. De quem lá trabalha.
À frente da gestão está, desde 2012, João Menéres, um dos trinetos do fundador. A primeira vez que estive com ele foi no Concurso de Tomate Coração de Boi, no Douro, em 2019, onde ele arrecadara o primeiro prémio, com um fruto esplendoroso. Já era fã dos seus azeites e lembro-me de pensar, nessa altura: “Caramba, no Romeu até os tomates são bons”.
Hoje, João Menéres mantém o mesmo ar de puto reguila. Chega pouco depois, numa carrinha pick up, já andou pelo campo. Vive no Porto, mas passa ali metade do seu tempo. É pouco mais de uma hora e um quarto de caminho, com saída da auto-estrada directa para a aldeia.
Um caminho curto para um passado longo, um passado pesado. Cabe-lhe a si honrar o legado da família — não só do seu trisavô, mas de todos os parentes que o antecederam. Porque todos os Menéres fizeram algo marcante no Romeu, incluindo, mais recentemente, o seu pai. João Pedro Menéres, administrador ainda em funções, foi responsável, entre outras coisas, pela passagem para a produção de vinho em modo biológico.
Aos 42 anos, João tem tudo pela frente. E tudo é muito.
A primeira parte da entrevista acontece no cimo de um monte, onde está o olival centenário, e onde se vê, a uns cinco quilómetros, o casario de Jerusalém do Romeu. Praticamente tudo o que a vista alcança, e alcança bastante, pertence à Quinta do Romeu, algumas zonas alinhadas em padrões de olival e vinha, mas sempre rodeadas de floresta e fragas.
A história do seu trisavô inspira-o?
O meu trisavô foi uma figura rara. Não era de famílias nobres, nem era rico. Com uns 16 anos, foi sozinho de barco à vela para o Brasil. Quando lá chegou, o tio arranjou-lhe trabalho. Casou-se, descobriu lá oportunidades, mas não queria continuar a viver no Brasil. Voltou com um filho bebé, que morreu na viagem de barco. Depois, arranjou uma sociedade no Porto, em que era minoritário, e à medida que ia devolvendo capital, a parte dele ia aumentando. Na altura, a empresa exportava muitos vinhos para o Brasil, a partir do Porto, principalmente vinho do Porto.
Nessa altura, já produzia vinho do Porto?
Não, não. Só vendia. Mais tarde, fez a primeira fábrica de fruta de conserva em Portugal. Tinha ido aprender um método de conserva a França [método Appert, usado nas conserveiras, ainda hoje). Também fez uma fábrica de rolhas, ainda que fosse uma coisa pequena. E foi assim que, mais tarde, veio parar ao Romeu. Costumava comprar a cortiça no Sul de Portugal, quando um amigo lhe disse que aqui é que era, que algures entre a estrada de Bragança para o Porto, havia muitos sobreiros. E ele veio cá ver, a cavalo, sete dias para cá chegar. E, quando chegou, viu realmente muitos sobreiros.
Mas ninguém os explorava, certo?
Na altura, ninguém cortava a cortiça. Estas terras eram muito inférteis, com muita fraga, eram terras para gado e para lenha. Isto em 1874 estava-se longe de tudo. era só analfabetismo, só agricultura de subsistência. Não havia aqui nada. Mas, como ninguém tirava a cortiça, ele acabou por comprar os terrenos baratos. Nas povoações, começou logo o passe-a-palavra de que havia aí um maluco a comprar terras inférteis. Até à sua morte, fez mais de 2000 escrituras.
A cortiça foi, então, o que esteve na origem da quinta.
Sim, só que ninguém aqui sabia trabalhá-la. Ele acabou por trazer o pessoal da fábrica de rolhas, sedeada no Porto, mas foi uma desgraça: também não sabiam nada disto. Depois trouxe o pessoal do Sul, do Alentejo, e começou a recrutar nas aldeias daqui para acompanhá-los, para levarem os machos e irem aprendendo com eles. E foi assim que criou a quinta.
Quando aparece o azeite e o vinho?
Para dar de fazer ao pessoal o ano todo, que a apanha da cortiça é de meados de Maio a inícios de Agosto, ele pensa em culturas para ocupar os trabalhadores no resto do ano. Planta olival, este, por exemplo, onde estamos agora, e aquele ali ao fundo, também. Muitas destas árvores ainda são as mesmas. E planta e replanta vinha, uma cultura que sofria os impactos da filoxera. Hoje em dia, ainda temos uma equipa permanente que faz as três culturas.
O que mudou nestes anos?
A filosofia é a mesma. Somos a última vinha a nordeste do Douro Superior e temos uma configuração que é um mosaico de culturas. Temos a vinha, a floresta virgem, estas ribeiras com vegetação ripícola e temos os olivais. Não há um conceito de monocultura, sempre fizemos algo parecido com aquilo que o Rudolf Steiner [1861-1925] viria a prescrever para a biodinâmica.
De resto, às vezes, replantamos uns cantos de olival. Nos anos 1990, deixámos o pomar, porque começou a chegar a fruta luzidia da Argentina e de todo o lado. Mas é preciso dizer-se que a fruta chegou a ser muito importante, em termos de receitas, para o Romeu. Tínhamos pêssegos, maçãs, cerejas. A fruta do Romeu era muito procurada. Os pêssegos, em particular, eram muito famosos. Ainda os há. Quando vem a altura dos pêssegos, colhemo-los para consumo próprio. E são de campeonato do mundo. Não sei se já provou algum pêssego como este. O clone há-de ser antigo, escolhido com muito cuidado, certamente, pelo meu bisavô.
E o seu pai? Continua a acompanhar a vida da quinta?
Sim, continua. Neste momento, sou eu, o meu pai e um primo, também descendente do fundador, que tomamos conta da quinta. O total de funcionários são 34 pessoas, englobando as do escritório no Porto, do restaurante, dos trabalhadores da lavoura, etc. E mais nós os três. Ou seja, 37, ao todo.
Quantos hectares são cultivados?
Na vinha, são 25 hectares, no olival 120. Os terrenos com sobreiros devem rondar os 3000 hectares, mas aí também há muita giesta, muita fraga, muita esteva. Temos, aliás, assistido a uma mortandade grande de sobreiros, por causa das alterações climáticas, pensamos nós. Sendo que os que morrem são mais do que os que nascem. É como as pessoas, aqui.
E animais?
Já tivemos animais para tracção. Para consumo, nunca foi negócio.
Queria que me falasse do vinho. Sempre que falo com pessoas do vinho sobre a Quinta do Romeu, elas referem uma situação de privilégio, por beneficiar da Denominação de Origem Controlada do Douro.
[Nesta altura, João vai buscar um mapa à carrinha e abre-o].
Normalmente, nos mapas do Douro nunca aparece o Romeu, apesar de ser D.O.C. Douro. Só para ver. O Romeu aparece bem longe das restantes referências junto ao rio. E as pessoas dizem: “Ah, houve influência política para o Romeu ter ficado dentro do Douro”. Mas a ideia é errada. Na altura [a autorização foi concedida em 1887, para licorosos do Romeu], a região Demarcada do Douro, para a produção de vinho do Porto, chegou a ter mais do dobro da área. Houve um alargamento enorme para Norte e para Sul e, depois, voltou a encolher-se. Mas quem tinha estado a produzir podia reclamar a qualidade do seu vinho do Porto. E, na altura, foi feita uma avaliação criteriosa — o tipo de solo, a exposição, a altitude — e ao Romeu (juntamente com outras vinhas, não fomos excepção) foi concedido o direito de se manter dentro da região demarcada. Pela qualidade do vinho do Porto. Foi essa a razão. Não foi como aconteceu com o vinho de Carcavelos e o Marquês de Pombal. Não foi por influência política, que o meu trisavô nem a tinha, na altura.
São a única excepção, hoje?
Não, há mais ilhas. Há, pelo menos, dois produtores com D.O.C. do Douro. Não têm é marca própria, vendem as uvas.
Estamos a quantos quilómetros do rio?
Nunca medi, mas estamos bastante longe (risos). Mas não é à toa que somos D.O.C. Estamos na terra quente transmontana. Aqui o solo é xisto, ali na floresta é granito. São solos com declive, com cursos de água a correr perto. E a altitude da adega são 300 metros. Isto faz aqui uma espécie de uma tigela, com um microclima da terra quente, verões muito quentes, muito secos. A especificidade daqui, comparando com outras regiões do Douro, é que o Inverno é mais longo. Aqui, o ciclo é um bocado mais atrasado.
Mas mesmo assim é um vinho do Douro.
Disso não tenho dúvida nenhuma.
Tem o perfil?
Há tantos perfis no Douro. Como é que se compara um vinho da Quinta da Vilariça com um vinho a 800 metros de altitude, em Murça, ou na Meda, ou no Mesão Frio, ou com a influência atlântica do Baixo Corgo. Há muitos Douros.
Mas vocês no azeite não o identificam como um azeite do Douro.
É de Trás-os-Montes e Alto Douro. Agora, a demarcação do azeite e do vinho não é a mesma. Seria preguiçoso dizer-se que o que delimita um perfil de vinho é a mesma fronteira que delimita um perfil de azeite.
Seguimos na carrinha para o lado da floresta. Subimos um caminho de terra, esventrado pela chuva, até estacionarmos no cimo de um penhasco, com o horizonte a poente.
O que vemos aqui?
Esta área está classificada na Rede Natura 2000. Estes musgos, estas giestas, este equilíbrio que está aqui é muito parecido ao que se encontrava no período do Plioceno, há três milhões de anos. Estamos numa zona de transição do granito para o xisto, e ali há aflorações de quartzo, junto àquela vinha. Temos duas ribeiras, que vão dar ao Tua, com estações ripícolas, floresta virgem, animais.
Que animais?
Muito javali, claro, raposas também, uns veados a que aqui chamam “cabras”. Nos pinheiros mansos, vêem-se esquilos, também. E há o gado dos pastores.
A conversão ao biológico foi fácil?
Sim, em parte porque nós somos o nosso vizinho. Temos um olival de vizinhos aqui ou ali, uns cantinhos de cultivo nos limites da propriedade, apenas. Mas não pulverizam nada, não há agressões de insecticidas ou herbicidas aplicados pela vizinhança e isso é muito bom. Daí, também, que tenhamos sido pioneiros, de alguma forma.
Ajudou também à conversão para biológico o clima ser seco?
Sim, claro, e ter amplitudes térmicas grandes. E a biodiversidade, que é muita: ajuda não termos uma monocultura.
Quem deu esse passo?
Foi o meu avô, em 1992, que converteu o olival à agricultura biológica. Depois, o meu pai certificou na vinha, em 1997.
Vocês trabalham o solo?
Na vinha, fazemos coberto, conforme as necessidades. Temos de cortar, mas o número de cortes depende do ano, se chove mais ou menos. As linhas também são trabalhadas, com roçadora, se for preciso. Tem de circular ar, principalmente em biológico, para não aparecerem fungos. Só usamos calda bordalesa (cobre e enxofre) e cavalinha, que é um antifúngico natural.
O modo de produção em biodinâmico é interessante?
Sim, sim, e já o fizemos. Até estivemos certificados na Demeter, desde 2012 até há dois anos.
Porque deixaram de estar?
Por duas razões. Uma foi porque, numa auditoria, a Demeter implicou com duas coisas. Está a ver aquelas duas pilhas de composto, ali? É feito com estrume de pastores da zona. O meu pai fez uma coisa inteligente com os pastores. Em vez de os enxotar, trabalhou com eles. Com cinco pastores, acordou dividir a floresta e os olivais entre eles, delimitando terrenos. Mas depois eles teriam de dar o seu estrume. E então nós passámos a recolher o seu estrume, duas vezes por ano, e a fazer compostagem com esse estrume e um subproduto do vinho e do azeite, o bagaço, bem como com alguma lenha de poda e palha.
E a Deméter não aceitou esse estrume, foi isso?
Sim, porque diziam que não estava garantido que a ração das ovelhas fosse biodinâmica.
E a segunda razão?
Foi porque o produto, para vir rotulado como sendo certificado pela Demeter, implicava um pagamento de royalties, que podia ir entre 1 e 1,5 por cento do valor das vendas, sendo que os nossos clientes não viam interesse nessa certificação. Bem, depois também implicaram com a cápsula de plástico e com o alumínio da cápsula da garrafa de azeite. O meu pai irritou-se e mandou-os à fava. Mas continuamos a fazer os preparados clássicos da biodinâmica e a olhar para a exploração como um todo, como prescrevia Rudolf Steiner.
Mas mistura o pó de corno e tudo?
Sim, sim. Fazemos o preparado 500 e o 501.
E funciona?
Bem, os solos estão vivos. Mas isto é um todo, não vale só a receita do corno e das luas. Não é só isso.
Vocês exportam muito?
Sim, sobretudo vinho, quase ¾ da produção. Antigamente, era quase tudo para vinho do Porto, vendíamos a granel. A marca de vinhos da Quinta do Romeu foi criada há relativamente pouco tempo. O azeite, uma marca mais antiga, exportamos cerca de ⅕ da produção.
E em termos de receitas, como se repartem?
O principal negócio agora é o vinho, ao contrário do que acontecia antigamente. Agora temos vinhos D.O.C e temos marca. Historicamente, foi a cortiça, agora cortiça e vinho estão equilibrados. O azeite é significativo, em termos de negócio, mas também em termos do equilíbrio de culturas que procuramos.
João dirige-se agora para a vinha. Está cheia de ervas, diversas, um ramo de funcho logo ali à nossa frente.
Olhe este calhau de quartzo. Nós usamos isto nos nossos preparados de sílica, esfarelado. Um calhau destes dá para muitos anos. Tentamos induzir alguma regeneração no solo. Este ano foi um ano de malvas, que é esta planta aqui. Muita malva.
As vinhas mais antigas quantos anos têm?
As vinhas foram todas plantadas em 1995, começou com aquela lá ao fundo. Mas foram todas arrancadas e plantadas quando se decidiu converter para biológico. Eram umas vinhas velhas já fora do prazo. E eram pensadas mais para dar quantidade e grau, esse era o foco, para o vinho do Porto vendido a granel. E o compasso, a forma como estava plantada, já tinha muitas falhas, muita planta morta. Na altura, o meu pai procurou um produto de qualidade no vinho, como já tínhamos no azeite. O meu bisavô, que era um enófilo, um gourmand, já tinha alguns vinhos muito bons. O meu avô não bebia vinho, não gostava, achava-o até repugnante, nem sequer ia à adega: o meu bisavô quis tanto que ele gostasse de vinho, logo muito novo, que ele ganhou uma aversão: bebeu a vida toda água e limonada. Mas o meu pai apostou em marca própria e contratou um consultor, na altura era o enólogo Rui Cunha, acabadinho de se formar.
Logo para biológico?
Sim, o que implicou um desenho próprio da vinha, que permitisse mecanizar os tratamentos em biológico.
Qual é o perfil de vinho que procuram?
Enfim, é o que todos dizem: procuramos a expressão do sítio, do carácter da região. A maturação da uva, aqui, ocorre às vezes três semanas mais tarde do que noutras zonas do Douro, já com dias mais curtos, os tintos é normal já depois do equinócio de Outono, temperatura máxima mais baixa, o que dá vinhos com maturação fenólica com menos grau, com acidez, muita frescura aromática. Nós também temos bastante Sousão, fazemos muitas co-fermentações com Sousão. E depois são vinhos com extracções suaves: não fazemos pisas a pé, não fazemos macerações muito longas.
Sempre foi assim ou é da moda?
Bem, sempre foi assim é relativo, porque isto começou em 2010. Foi aí que se produziu uma quantidade maior. Mas o nosso Tinto Colheita de 2010 tinha 12,08 de grau alcoólico, e ainda não havia a moda. Foi um ano fresco, também. Mas são vinhos, desde sempre, mais finos. Mas mesmo nos anos mais quentes, temos vinhos com menos corpo e perfil mais delicado.
Mas também tem a ver com o que se faz na adega?
Sim, para além do que já disse, vinificamos em lagar, quase tudo, e trabalhamos o manto de forma suave, só embrulhar duas vezes por dia, ou então com remontagens suaves, prensagem vertical. Mas reflecte muito o ano, até porque nós não compramos fora nem uva nem vinho.
Quantas castas têm?
Tintas são as tradicionais do Douro: Tinta Barroca, Tinta Roriz, Touriga Franca, Tinto Cão, Touriga Nacional, Tinta Francisca, Sousão e um bocado de Alicante Bouschet. Nos brancos, temos principalmente Gouveio, Viosinho, Arinto e Rabigato. Brancos só fazemos field blend, fermentamos tudo junto.
E o vinho, como está este ano?
O vinho segurou-se, ao contrário do azeite. Nós temos rega na vinha, apesar de usarmos em doses homeopáticas.
Qual é o seu vinho preferido?
Conforme o momento de consumo. Mas o tinto de 2010, que deu uma trabalheira a fazer, gosto muito. E foi o primeiro que eu tive para lançar, desde que vim para cá. Despedi-me para vir para cá vendê-lo, em 2012. O meu pai disse-me: Agora temos mais vinho, queres vir ajudar ou vou ao mercado procurar alguém? E eu vim.
Trabalhava em que área?
Trabalhei sempre na área financeira e na indústria, em fábrica. Primeiro, numa empresa de semicondutores, que chegou a ser o maior exportador do país, a Qimonda. Nunca tinha vendido vinho, nem era especialmente curioso por vinho, se fosse sempre Romeu estava bem. E por acaso esse vinho tinto de 2010, na altura, só umas três pessoas perceberam esse vinho, que tinha pouco álcool, corpo magro e alguma acidez.
E quem são essas pessoas?
Por acaso são pessoas por quem tenho consideração: uma foi o Pedro Marques, do Vale da Capucha, que tem uma grande capacidade de prova. Eu acho que ele está a meter-se comigo, mas disse-me que para ele é o melhor vinho do Douro dos últimos 20 anos. Mas não é, não é [risos]. Os Goliardos [empresa de distribuição de vinhos ditos naturais], a Sílvia [Bastos] e o Nadir [Bensmail], que vieram cá na altura, acho que o Mateus Nicolau de Almeida lhes tinha falado em nós. E uma vez, numa feira de biológicos, em Montpellier, a maior feira de biológicos, no último dia de prova, apareceu lá um inglês, que só importava vinhos Borgonha para restaurantes high-end do Reino Unido, mas disse que achava o vinho muito interessante e comprou-me uma palete. Nunca tinha vendido uma palete a ninguém, eram 600 garrafas.
A sua formação é em quê?
Eu estudei Economia. Nasci no Porto, estudei no Porto, vinha para o Romeu no Verão, sempre com o meu pai e com os meus avós, de quem era muito próximo. O meu avô até foi meu padrinho de casamento, tive essa sorte. E vinha para cá muito mas não me passava pela cabeça trabalhar aqui. Vinha para aqui com o Bruno, disparávamos a pressão de ar, andávamos numa Casal Boss que havia aí. Ia fazer umas festas aos machos, sentava-me ao lado no tractor, o meu avô entregava-me ao feitor e eu andava o dia inteiro com ele, enquanto os meus pais andavam a trabalhar.
Calculo que na adolescência se tenha distanciado disto, novamente.
Sim, sim [risos]. Voltei a ligar-me ao Romeu já na universidade, para fazer uns cobres para ir de férias. No final do último exame, vinha para cá para a apanha da cortiça. Ficava até meados de Agosto, três ou quatro semanas. Fiz tudo, na cortiça. O meu pai dizia ao pessoal: “Ele não é patrão. Vem cá para trabalhar”. Era giro, percorria aí as festas das aldeias todas.
Alguma vez pensou em ficar responsável pela quinta?
Nunca fiz a minha formação a pensar nisto. Isto é de muita gente, somos uma família grande. Não sou eu quem escolhe vir para aqui, apenas. Quando trabalhava na cortiça, fiz de tudo, carregava na cabeça e no ombro, ao início. No segundo ano, já andava com o lagarteiro. Mas mexi com o machado, também: não é fácil, aquilo tem um ângulo de ataque que temos de conhecer, se não vem para trás. A minha mão direita ficou inchada para sempre, desde essa altura. Andei cinco anos nisso e ganhei uma ligação afectiva muito grande ao Romeu.
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