Esta borboleta diurna, que pode ser encontrada em Portugal e muitos outros países, desafia o que pensávamos ser possível para insetos tão delicados. A Wilder falou com o investigador Gerard Talavera e conta-lhe as descobertas mais recentes.
Gerard Talavera não tem dúvidas de que a bela-dama, também conhecida por vanessa-dos-cardos, é uma fonte constante de entusiasmo para os cientistas como ele, que se dedicam ao estudo dos insetos. “Esta é uma borboleta que nunca deixa de me surpreender, todos os passos da pesquisa trazem-me sempre uma nova questão mais interessante e incrível”, comenta o coordenador do PhyloMigration Lab, um laboratório que investiga a migração dos insetos e a sua diversidade, ligado ao Institut Botànic de Barcelona (CSIC).
Gerard Talavera, em trabalho de campo |
Numa entrevista com a Wilder por videoconferência, o cientista catalão nascido em 1980 falou com entusiasmo, durante uma hora, sobre alguns dos trabalhos de investigação em que tem estado envolvido com outros cientistas. Embora os movimentos migratórios dos insetos sejam difíceis de acompanhar e muitos passem despercebidos, essa área de estudo é considerada importante porque muitas espécies são polinizadoras ou servem de alimento para outros animais, mas também porque algumas são pestes florestais e agrícolas ou transmitem doenças.
No entanto, esta é uma área de investigação ainda pouco explorada e com muitos enigmas por resolver – que no caso da bela-dama parecem mais próximos de ser solucionados. Fique a conhecer melhor esta enigmática borboleta migradora, em três histórias de descobertas recentes:
1. Atravessa de uma só vez o maior deserto de areia do mundo
Foi há cerca de 10 anos que Gerard Talavera começou oficialmente a investigar a migração da bela-dama, movido por um mistério que não estava ainda resolvido e que lhe tinha despertado há muito a curiosidade.
Uma borboleta bela-dama (Vanessa cardui) |
Presente na América do Norte, Europa, África e Ásia, esta é uma borboleta grande, com uma envergadura de asas que pode chegar aos sete centímetros. O nome científico, Vanessa cardui, inspira-se nos cardos em que as lagartas gostam de se alimentar (embora também se alimentem de outras plantas).
Há uma década, os cientistas sabiam que a bela-dama desaparece da Europa no outono e acreditava-se que migraria para o norte de África. “Eu não acreditava nisso, pois estas regiões são muito frias no inverno e sabemos que esta borboleta não sobrevive ao frio. Como não entra em diapausa, precisa de continuar a mexer-se”, recorda Talavera. Além do mais, no Magrebe havia poucos registos da espécie para esta altura do ano.
E se a resposta estivesse na travessia do Saara, o maior deserto de areia do mundo? “Havia uma pequena hipótese, mas ninguém acreditava que a grande maioria destas borboletas pudesse atravessar o deserto”, reconhece. “Foi uma grande aposta.”
Foi necessário Gerard Talavera e outro colega de profissão, Roger Vila, viajarem para quatro países na África sub-sahariana – Chade, Benim, Senegal e Etiópia – para confirmarem que a grande migração da bela-dama da Europa para a África tropical era afinal possível. [A história dessa viagem e as suas conclusões foram relatadas num artigo científico, publicado em 2016.]
Gerard Talavera e Roger Vila, em trabalho de campo |
Os cientistas sabem hoje que são as belas-damas nascidas no outono, entre as várias gerações ao longo do ano, que realizam essas viagens mais longas – algumas a partir do norte da Europa. “Atravessam o continente, o Mediterrâneo e o deserto do Saara e estabelecem-se na África sub-saariana”, descreve o investigador espanhol. Por incrível que pareça todo esse percurso é realizado pelo mesmo inseto, o que o torna no maior realizado por uma só borboleta conhecido até hoje.
Por outro lado, nem todas as belas-damas de outono atravessam o Saara, pois a diversidade de destinos possíveis leva a que muitas viajem para locais diferentes. Durante o inverno, por exemplo, há belas-damas que procuram o sul da Grécia, as Canárias ou a Madeira; outras atravessam o Mediterrâneo mas ficam-se pelo norte de África. Pode acontecer também que uma borboleta nascida no Reino Unido migre para a Península Ibérica, no outono, e aqui permaneça. E na primavera seguinte, haverá belas-damas entretanto nascidas que irão voar em sentido contrário, da Península Ibérica para a Reino Unido.
“No entanto, a maioria atravessa o Saara, porque as abundâncias que encontrámos na África sub-saariana são imensas”, sublinha Talavera. Pouco depois, ainda no continente africano, formam-se novas gerações de belas-damas que costumam migrar um pouco mais para sul, abandonando as zonas de savana próximas do deserto onde a vegetação já secou. Finalmente entre janeiro e fevereiro, quando chegar o final do inverno europeu e a estação seca atingir o seu auge em África – e as borboletas deixarem de ter o que comer – os movimentos de migração irão acontecer novamente. Desta vez, rumo ao Magrebe e à Europa.
2. A Arábia reverdeceu e… aconteceu uma explosão de belas-damas na Europa
Periodicamente, em alguns anos, veem-se números de belas-damas (e também de outros insetos) fora do comum, muito superiores aos normalmente observados. Graças às novas técnicas de análise genética que são hoje possíveis, Gerard Talavera e outros cientistas conseguiram agora resolver a origem de um desses acontecimentos observado em 2019, desvendado num artigo publicado em junho pela Current Biology.
Há cinco anos, esta grande explosão no número de belas-damas foi observada por toda a Europa, no norte de África e Médio Oriente – incluindo o Reino Unido, Espanha e a ilha do Chipre – e registada em maior detalhe graças a dados de vários projetos de ciência cidadã. Ao longo de 2019, foram também coletadas 267 belas-damas em 10 países europeus, desde Espanha e Itália à Rússia.
Um grupo de belas-damas (Vanessa cardui) |
Ajudada pelo desenvolvimento das novas técnicas de sequenciação de DNA (‘metabarcoding’) aplicadas aos minúsculos grãos de pólen que vinham agarrados a essas borboletas, a equipa obteve pistas sobre o que terá acontecido, recorda Talavera, que coordenou o estudo agora publicado. Primeiro, procuraram identificar a que plantas pertenceria o pólen, obtendo um total de 398. Fizeram então uma correspondência entre todas essas plantas e as suas áreas de distribuição, na tentativa de estabelecer uma área provável de onde teriam vindo as belas-damas. O resultado final indicou, nota o investigador, que essa origem “tinha acontecido no Médio Oriente, nomeadamente na Arábia Saudita, Irão, Iraque e Kwait.”
Quanto à causa para o nascimento de um número invulgar de borboletas, os cientistas analisaram imagens de satélite obtidas ao longo de 20 anos, confirmando que entre novembro de 2018 e abril de 2019 a vegetação tinha crescido mais do que o habitual no Médio Oriente – o que se terá devido a um aumento da precipitação, resultando num reverdecimento do deserto fora do comum. Assim, com mais plantas disponíveis onde as borboletas poderiam pôr os ovos, em março deu-se uma explosão de belas-damas que em grandes números terão migrado até à Rússia e à Escandinávia, onde foram observadas em maio.
Uma lagarta de bela-dama (Vanessa cardui) |
O estudo publicado mostra que nos meses seguintes cidadãos-cientistas foram registando quantidades anormais de belas-damas noutros locais do continente, incluindo o Reino Unido e os Pirinéus, no final de junho. E o mesmo aconteceu nas Canárias passados vários meses, em outubro.
“Os nossos resultados demonstraram a interconexão das nossas fronteiras e ecossistemas”, resume Talavera. “Explosões de populações de insetos num lugar podem ter consequências noutras regiões e alturas, devido à sua migração. O que estávamos a ver era a consequência do que tinha acontecido duas ou três gerações antes, na Arábia.”
3. Uma misteriosa (e impossível?) viagem sobre o Atlântico
Mas a descoberta mais surpreendente, entre as investigações recentemente publicadas, foi de facto relativa a um mistério que já durava há 11 anos na altura em que foi solucionado, num artigo científico publicado no final de junho na Nature Communications. Tudo começou quando Gerard Talavera em outubro de 2013, durante uma expedição à Guiana Francesa, na América do Sul, encontrou na praia 10 belas-damas. “Tinham as asas destruídas, estavam vivas mas não conseguiam voar bem, estavam muito cansadas”, recorda o investigador.
Gerard Talavera na Guiana Francesa, em 2013 |
Perplexo com o que via, o biólogo espanhol recolheu três dessas borboletas. “Ali na praia, à beira da água, era um sítio estranho para encontrar uma bela-dama. Além disso, não há Vanessas cardui na América do Sul.” A explicação possível era que seriam migradoras chegadas da América do Norte, onde a espécie também ocorre, ou então vindas de África – um enigma que ficou por resolver durante vários anos.
Na verdade, só agora foi possível desvendar o que terá acontecido através do trabalho de uma equipa internacional de sete cientistas, que concluiram que essas belas-damas teriam atravessado todo o Atlântico, voando pelo menos 4200 quilómetros. Essa hipótese difícil de acreditar, à partida, foi comprovada graças a técnicas moleculares de última geração, indica o investigador catalão, que coordenou os trabalhos. “Usámos todas essas tecnologias disponíveis.”
As três belas-damas (Vanessa cardui) coletadas numa praia da Guiana Francesa, na América do Sul, em outubro de 2013 |
Um dos primeiros passos foi analisar os padrões temporais relativos à data e local onde tinham sido encontradas as borboletas, que ajudaram a equipa a perceber que nos três dias anteriores tinham ocorrido ventos muito fortes, provenientes de África. Mais tarde, ao sequenciarem o DNA do pólen encontrado nessas três belas-damas através da técnica de ‘metabarcoding’, os cientistas concluíram também que uma parte desse pólen pertencia a dois arbustos exclusivos da África sub-saariana, que poderiam ter servido como fonte de alimento para as borboletas em dispersão – mais uma peça do quebra-cabeças acrescentada.
No entanto, apesar de já terem sido encontradas belas-damas no meio do oceano, nota Gerard Talavera, continuava a ser pouco verosímil essa travessia. Uma borboleta que consegue atravessar o Atlântico? A equipa trabalhou por isso para ir mais além: compararam o DNA das três borboletas coletadas na Guiana Francesa com populações da espécie pertencentes à Europa, América do Norte e África, e concluíram que aquelas não eram provenientes da América do Norte, pelo que só poderiam ser europeias ou africanas.
Borboleta bela-dama (Vanessa Cardui), de perfil |
Outro dos passos foi analisar os isótopos de estrôncio e de hidrogénio encontrados nas asas das três belas-damas, um tipo de átomos que funcionam como uma espécie de sinal químico, que será diferente consoante a região do mundo onde se desenvolveram as lagartas. De acordo com essa análise e outros trabalhos posteriores, a origem natal desses insetos estaria na Europa Ocidental, possivelmente em países como França, Reino Unido, Irlanda e Portugal. “Concluímos que estas borboletas teriam migrado da Europa Ocidental para a África Ocidental e daí para a América do Sul. São mais de 7000 quilómetros, incluindo 4200 apenas de oceano!” Talavera sublinha que terão sido necessários entre cinco a oito dias de travessia para essas belas-damas atravessarem o oceano, sem pausas para reabastecer.
Por último, para comprovar se as borboletas conseguiriam realmente fazer uma viagem tão grande sem interrupções, a equipa analisou a resistência energética da espécie, colocando várias hipóteses. Uma das possibilidades era que estas belas-damas teriam não só voado ativamente sobre o oceano, o que as teria esgotado demasiado depressa, mas que também teriam utilizado as asas para planarem sobre as ondas. “Concluímos que isso seria possível, desde que tenham sido ajudadas pelo vento”, explica o investigador.
De facto, já se sabia que correntes de vento vindas do deserto do Saara movimentam grandes quantidades de poeiras através do Atlântico, ajudando a fertilizar a Amazónia. Agora, o novo estudo veio mostrar que esses ventos podem também transportar seres vivos como a bela-dama.
A equipa acredita também que as atuais mudanças nos padrões do clima poderão aumentar o número de acontecimentos como este, com efeitos sobre os ecossistemas a nível mundial. Gerald Talavera insiste por isso que é “essencial” acompanhar e estudar os movimentos de insetos em dispersão, de forma a acautelar os riscos para a biodiversidade. Em Barcelona, é certo que esse trabalho irá continuar.
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