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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Sob o véu do vento que murmura…

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Sentou-se no banco da estação perdida entre as névoas brancas da paisagem. O sol a descer na lonjura do horizonte. Dentro dela, o vidro das horas que passam lentamente e o vagar doente dos minutos leves que nunca chegam. A voz enterrada como uma semente sufocada em solo estéril. A garganta seca a lamber os pequenos abismos dos homens, com gestos doridos como murros no sentido difícil de viver. Assim, a ser gente, com as feridas abertas a sangrar luz por um firmamento que não as sente.
Estava cansado, o coração. Tinha os olhos exaustos de tanto sentir. Fatigado do sal amargo dos dias, das muitas máscaras sem rosto, dos gestos despovoados a fazerem eco pelos espaços, das palavras mortas sob as montanhas de tantas vaidades, dos pés em águas turvas de quem pensa que dança em mares grandiosos, dos naufrágios sobre a areia a desenharem cicatrizes no peito da escuridão, dos verbos mais importantes da vida partidos ao meio como espelhos vestidos de cinzas, sem pássaros no céu. Cansado da respiração áspera das coisas que não se movem. Precisava de serenidade, o coração. Queria ser árvore de raízes curtas para pisar uma terra de poeira livre, sem memórias.
Chove dentro dela uma sede que desconhece… Ah, se o coração persistisse, atravessasse o impossível e pudesse escutar os versos silenciosos de outra vida quando ninguém está a olhar!
Pensou, então, que talvez não fosse o mundo que lhe pesasse, mas o próprio fardo de não o esquecer, como os rios que não sossegam de correr.
Foi então que o coração, mais atento, pousou o corpo naquele momento idílico de um fim de tarde a soar a despedida de ano velho. E nesse fim de tarde, por fim, sorriu de novo. Porque havia um outro gosto de vazio no ar. Vazio de tudo o que é mau e que o vento insistia sempre em trazer. Naquela tarde, havia um perfume de promessas no peso dos sonhos que podiam ousar voltar a nascer. Um grito a sorrir no ventre do silêncio, algo de muito antigo nas novas margens do tempo. Um teto de astros que se tinha perdido nos leitos de pedra e desertos. 
No ruir das valsas derrotadas, um canto a ensaiar o seu retorno, para não esquecer a eternidade! 
E no último poema daquele fim de tarde, qual criatura que teme a claridade, o coração fingiu ter sono só para esconder o sonho de estar de novo acordado. Algo de que já se tinha esquecido há muito.
Ela ali, sentada no banco da estação perdida entre as névoas brancas da paisagem… E o comboio, guardião discreto de segredos antigos, repousa na quietude, em jeito de pintura. Como se o tempo tivesse feito uma pausa para se contemplar. Ao redor, as pessoas são molduras vivas em suspensão. Não há pressa aqui porque o tempo é velho e paciente. 
Em cada detalhe, a nota de uma sinfonia tão natural!
Olhares que fixam o passado escondido entre as montanhas aventuram-se para longe, para além das linhas de todas as fronteiras, a desvendar, curiosos, o futuro. 
Uma criança encosta o rosto ao vidro da janela e entrega-se à maior criação do seu pequeno universo: desenhar rabiscos na marca da respiração. No colo terno e protetor da mãe mora um herói, em tamanho pequeno, que talvez procure alcançar o inalcançável das grandes aventuras.
Adiante, o idoso que ajeita o chapéu, num ritual de honra, antes de beijar a mão estendida da mulher amada, como se segurasse a ternura delicada entre os dedos, numa esperança ainda não confessada. Mas não há urgência no seu toque, apenas uma espécie de devoção de quem sabe aguardar, com equilíbrio, pelo colo do amanhã.
Mais além, o filho homem que se despede do pai, porque o futuro o chama. Um abraço quente de quem não diz apenas adeus com a saudade forte do apego, mas de quem olha igualmente para trás, com a gratidão que carrega no espírito. O que ele lhe ofereceu nunca se perderá.
E há ainda o amigo que esconde a lágrima na leveza do sorriso. Testemunha a hesitação do companheiro de anos, que abandona o seu porto seguro para tocar o imprevisível. E dos seus olhos nasce um espelho a confirmar que o porvir pode ser uma abstração e tudo será possibilidade.
Entre janelas abertas também existem destinos sem escolhas. Faces que observam a vastidão, com fome de significados. Rostos de quem sente que, às vezes, cada direção é feita somente de atos de coragem e que o existir é só a passagem de uma página com assinatura efémera.
Para lá de tudo, o som dos passos sobre a terra e todas as almas ligadas por fios invisíveis, sobre uma ponte frágil entre a partida e a permanência.
Um comboio que carrega em si mais do que meros passageiros. São baús de confidências não ditas. Sonhos em gestação. Por isso, nos mistérios cúmplices desta estação, todos se reconhecem de algum modo. Porque a vida é mesmo isto: um comboio que chega e que parte sem nunca se despedir por completo.
O coração ouve, mudo, todos esses murmúrios que ecoam confissões roubadas à vida, entre palavras a contar histórias inteiras sem precisarem de voz. Pessoas a aguardar pelas passagens inevitáveis da existência com a fragilidade e a beleza da marcha constante. Cada paragem é o caminho antecipado que a vida exige ou a pausa para respirar paisagens interiores. Fragmentos convertidos em novas sementes.
Envolto em brumas de vapor, o comboio descansa na estação como quem hesita antes de um passo definitivo, rumo ao futuro invisível que o chama com a sua voz quieta. Parado, ele é o segundo que antecede cada decisão. 
Depois, solta o último suspiro e começa a deslizar numa melodia metálica e melancólica. O coração inclina-se para o escutar… O que realmente o move é o que os passageiros transportam dentro de si. Caberá a cada um a textura do percurso e a forma como cada curva, na linha da viagem, ficará gravada no seu íntimo. 
A estação torna-se um sussurro distante, mas a sua essência permanece. Como a vida, é um lugar que não nos deixa sem nos transformar.
À volta, num recolhimento que aconchega, a aldeia parece dormir enquanto o sol beija a distância com tons dourados, como se o momento carregasse séculos nas mãos. Há algo de eterno na simplicidade do instante… Uma canção adicionada à poesia deste devaneio! 
E é difícil ao coração compreender se é o fim de algo ou o início de tudo. Talvez acredite que sejam ambos.
No final, ela entende que da nuvem seca renasce outra chuva, mais limpa. Um cântico a erguer-se débil, mas insubmisso: o vazio é apenas o berço de tudo. 
E na paz que a acolhe, sabe existir uma lição de fogo. Porque não se molda o infinito sem primeiro nos desfazermos, como quem traz em si o lume das estrelas no respirar das asas que tocam o céu.

E é assim, caros amigos, que ao dobrarmos estas folhas de mais um ano que se despede, procuremos levar connosco a bagagem de todos os dias e noites vividos com maior ou menor clareza, de forma mais ou menos consciente. Porque, seja como for, foram eles necessários para dar continuidade ao percurso da vida. 
Caminhar com esperança e sonhar com coragem, é hoje mais do que um desafio. Mas não nos esqueçamos que, ainda que ousado, o ato de sonhar é o farol que nos guia, a linha condutora nesta trama infinita. 
Sigamos, pois, com a audácia e a força de quem abraça o recomeço, com os olhos voltados para o horizonte e o coração sempre em movimento.

Paula Freire


Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). .Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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