(Colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
O mais cruel dos invernos mora na alma de quem finge ser verão.
Hipocrizofilia. Suponhamos que se trata de uma palavra de origem grega e que exprime a ideia de afeição, gosto ou preferência pela hipocrisia.
Eventualmente, nos manuais de psicologia, poderia surgir identificada como “poseofrenia”. Distúrbio mental que caracteriza quem vive em estado permanente de representação.
E, se tal vier a acontecer futuramente, talvez seja importante começarmos por compreender melhor, desde já, esta doença epidémica que se sedimentou, definitivamente, nas entranhas da sociedade pós-moderna.
Mas comecemos pelo princípio.
Suponho que a hipocrizofilia nasceu no exato momento em que o nosso ancestral Homo Sapiens foi abordado pelo seu coevo hipocrizófilo, Homo Adulatus, enquanto tentava dominar o fogo, e este lhe dirigiu um elogio desmesurado porque pretendia do primeiro um belo bocado de carne assada, por já estar farto de comer carne crua: “Ó Grande Chefe, tu tens o melhor fogo da caverna! Tu inspiras-me!”
Desse modo assegurou uma geração de habilidosos bajuladores que deixaram descendência e conseguiram vingar.
Se Darwin estava certo, possivelmente a hipocrizofilia ter-nos-á trazido alguma vantagem ao nível da evolução da espécie. Se calhar, dizendo todos sempre o que pensamos, não estaríamos já extintos?
Mas adiante, que o problema vai muito para além de uma simples mentirinha. É que, com o aprimoramento do pensamento e o advento do iluminismo das aparências, a hipocrizofilia tornou-se num verdadeiro culto da falsidade. O modelo de identidade da nossa sociedade. De tal forma que ganhou o estatuto de doença.
Uma patologia que se caracteriza pela incessante hipocrisia, diária, corrosiva de valores genuínos. Apresenta como sintoma a ilustre arte de saber enganar os demais, de forma graciosa, mostrando a alvura dos dentes, enquanto se escondem os mais baixos desejos e propósitos, para não ser apanhado nas curvas.
A técnica do disfarce é aprendida cada vez mais cedo pelos jovens hipocrizófilos. Os pais e, muitas vezes, toda a família, denunciam no rosto anos de uma hipocrisia apurada. Rapidamente os filhos percebem que fingir agrada. Melhor do que isso, dá prémios.
E dessa forma vão interiorizando a importância do “irrelevante”. Porque para os hipocrizófilos nada tem que ser. Tudo se basta numa simples questão de parecer. Seja a indignação, o entusiasmo ou a generosidade, tudo se materializa numa peça teatral de bons costumes.
Todos aqueles, sem exceção, que rodeiam os hipocrizófilos, são por eles considerados, essencialmente, como uma fonte de investimento. Contudo, estes têm uma particular atração pelos que ainda não se deixaram contaminar - os que ainda são virgens (especialmente se forem ingénuos) – e que, por esse exato motivo, constituem valioso material humano que lhes serve de catapulta.
Entretanto, no decorrer do dia-a-dia, os hipocrizófilos testam a sua esperteza (registe-se que, neles, a inteligência não é propriamente um dom), esgadanhando-se entre si, mas de modo airoso, como cães de luta em cima de ringues, enquanto vão afiando, ardilosamente, as garras da sua hipocrisia, com grande sedução e simpatia, para conseguir abater o inimigo. Depois, congratulam-se com sorrisos e abraços dissimulados, aparentam não ter percebido manhas nem estratagemas. Porque todos precisam, e por incrível que pareça até fazem gosto, em comer do mesmo prato.
E mais não fosse, seria motivo suficiente para concluir que a hipocrizofilia é uma doença perigosa. Mas não podemos ficar por aqui. É possível encontrar razões que acrescentam uma preocupação bem maior. É que esta notável prostituição social já está disseminada nas interações mais banais do nosso quotidiano.
A hipocrizofilia não se restringe a uma doença exclusivamente de elites. O vírus, altamente contagioso, espalha-se por todos os cantos e buracos, não escolhendo género, classe ou profissão. Está também, sub-repticiamente, infiltrado em todas as microdinâmicas da convivência humana. E, mais grave ainda, não conseguimos detetá-lo a olho nu.
Todavia, se nos dermos ao trabalho de fazer uma curta viagem pelas redes sociais, conseguimos aprofundar melhor o conhecimento sobre esta doença e respetivos enfermos. Movendo-nos, calma e silenciosamente, por essas mais recentes igrejas de (auto)adoração, percebemos que é ali que os hipocrizófilos vivem, a bem dizer, “como peixes na água”.
Curiosamente, estando por lá completamente expostos acreditam que, por não se encontrarem frente a frente com a realidade, a sua nudez permanece protegida sob a tela do ecrã. E assim se entretêm, despreocupados, neste habitat aberto ao fingimento durante 24 horas por dia.
Ali se recolhem, ao som de uma dança, milimetricamente estudada, de poses e sorrisos tão forçados como duvidosos. Porque os hipocrizófilos esforçam-se para sorrir muito, sobretudo quando detestam alguém. Por ali deslizam durante horas a fio como enguias astutas (ainda que a vida, impiedosa, lhes roube um horror de tempo). E ali se consolam com a crença de serem alvo da mais profunda e absoluta inveja por parte dos outros. Aqueles que apelidam de gente negativa e tóxica.
Sim, porque eles, os Bons, os Melhores, de elevada e incontestável estirpe, são os que mais percebem sobre o Amor.
O amor, um território já, por si, suficientemente minado. Neste campo, em particular, eles fazem a diferença. São um exemplo a seguir. Porque amam profundamente! Com intensidade! Amam o mundo, os outros, a si mesmos. Amam… se do outro lado alguém lhes alimentar o ego sequioso.
Já no mundo real, cumprimentam com largos beijos e mãos abertas. O coração, no entanto, não é mais do que um ornamento. A existir, no mínimo, está encerrado. E se o abrem, é por conveniência. Afetos… para quem os aplauda, para quem os faça brilhar e lhes dê visibilidade, para quem lhes seja útil.
Os hipocrizófilos vivem de afetos de ocasião e moram paredes meias com o mercado negro da decência e da moralidade.
De mão no peito e com Deus a servir-lhes de justificação para praticamente tudo, desde o sucesso até à vingança e à falta de carácter, eis o novo Homo Socialis: deixou de ser o homem que se rege pela ética. Agora, estamos perante o indivíduo que se aceita imperfeito, mas claro, absolutamente virtuoso. Que se entende vulnerável mas, obviamente, verdadeiro. A criatura que deixou de tentar alcançar a perfeição para começar a ser uma espécie de pilar e guia espiritual.
Sim. O hipocrizófilo vê-se como um farol a cintilar na névoa da humanidade. Num contínuo estado alucinatório, esquecido de que o organismo desenvolve tolerância à embriaguez e que é preciso fingir cada vez mais para que o prazer permaneça.
E os seus sentimentos de frustração são afogados com sabedorias milenares infalíveis. Tudo é castigo ou bênção, tudo é karma ou amor, tudo é lição e luz! Gratidão.
Talvez inebriados por essa condição de inconsciência, se entendam exímios gestores de conflitos (aqueles em que estão envolvidos, claro; nos dos outros, preferem indubitavelmente lançar mais achas à fogueira e ficar a observar, de soslaio e língua de fora, consolados). Por isso, em caso de discussão, apelam ao diálogo e pregam a valorização da escuta ativa… desde que não se fale daquilo que os incomoda sobremaneira: os seus defeitos. Que são muito mais fáceis de suportar quando colados na testa do vizinho. A verdade, para eles, é uma palavra longa e muito dura.
E, por esta ordem de ideias, o que dizer sobre os hipocrizófilos e a solidariedade? Bom, num contexto pessoal, por norma, dão uma mãozinha em troca do corpo e da alma do outro. Oferecem humildade envenenada para exigir adoração.
Mas aquela que realmente lhes interessa e com a qual se sentem realizados, é a solidariedade social.
A solidariedade social é um dos temas que delicia a vida de qualquer hipocrizófilo. Digamos, “a cereja no topo do bolo”. Através dela, a sua suposta empatia pode alcançar o apogeu. É na caridade que eles encontram a grande oportunidade para o melhor testemunho da sua presumida benevolência e de demonstrar, publicamente, aquela compaixão que lhes garanta o respeito dos pares (e lhes favoreça algoritmos…).
Juntam-se – ainda que, sempre, numa posição de subtil competição - numa espécie de narcindicalismo que luta pelo direito de se mostrarem os mais altruístas e mais especiais. Apologistas de todos os direitos humanos enquanto fecham os olhos ao sofrimento dos vizinhos, dos colegas mais próximos e dos próprios familiares.
Falsos, é verdade sim senhor, mas cheios de princípios e valores.
Quando são apanhados em contradições, inevitavelmente, a cobardia vem ao de cima. Não há que assumir nada. Justificam-se com as circunstâncias, as fragilidades, os estados emocionais e até a ingenuidade de terem dado ouvidos a companhias menos boas. E se isso falhar, há sempre um último recurso de manifesta sapiência. Virar o bico ao prego: “não devemos julgar ninguém”.
Muito raramente ficam calados. Se o fazem, nunca é por consideração ou respeito. Por trás existe alguma intenção oculta. Passar por sensato, prudente, talvez superior. Enfim… a tática depende do objetivo em mente para não se comprometerem. É que a boca fechada, às vezes, pode render-lhes mais lucro do que um discurso verborreico.
Mas, porventura, a hipocrizofilia não seja uma deformação da humanidade e sim um requisito específico para sobreviver onde a sinceridade é bem mais dolorosa do que a imposturice. Quando tudo é transitório, a integridade é, indubitavelmente, mais exigente do que a falsidade e a mentira. Estas são bem mais apelativas à preguiça de quem longe quer chegar sem nada fazer e ainda usufruir dos louros.
Aliás, qualquer hipocrizófilo revela um medo quase irracional da integridade, visto que ela lhe compromete muitas e grandes oportunidades e constitui uma afronta que ameaça o seu equilíbrio social.
Neste cenário, ser íntegro é um desafio que poucos ousam empreender e, ao mesmo tempo, um risco que quase ninguém está disposto a correr.
Ser íntegro é ser apontado, na melhor das hipóteses, como alvo de chacota e gozo. Na pior, como possuindo um desvio da personalidade, uma falha grave a corrigir, com terapia, entre paredes de um consultório psiquiátrico.
Como desculpa, alegam que quem se recusa a adotar esta sua arte de bem viver, é porque não está espiritualmente preparado. Tem que evoluir.
De salientar que nenhum hipocrizófilo se reconhece como tal e se, por descuidado erro de alvo, encontrar em si algumas características de hipocrizofilia, atribui-lhes outros nomes, bem mais abonatórios da sua pessoa. Uns chamam-lhe aprendizagem, outros maturidade. Há ainda os que gostam de falar em “ter tato” ou, então, “saber estar ou ser” dentro de um “jogo de cintura”. Não se trata de falsidade, mas de diplomacia e boa comunicação.
Mas talvez o eufemismo mais espantoso que já tenha ouvido referir até hoje, terá sido o de que a hipocrisia é “um gesto de amor”. Fingir porque não estamos cá para magoar os outros. Pois claro! É que para o melhor dos hipocrizófilos, mentir com meiguice é o novo sinónimo de bondade.
Em suma, cada hipocrizófilo, o relações públicas da sua própria alma, para que nenhuma mácula lhe manche o verniz.
E, portanto, todos são pessoas respeitadoras, de bom coração e, sobretudo, perfeitamente transparentes. Aliás, no seu vocabulário, “transparência” é um termo que usam e abusam. Pensando bem… por que não transparentes? Talvez o sejam efetivamente. Afinal, neles, de verdadeiro, nada se vê!
Seja como for, o certo é que, por mais que se pintem e perfumem, continuam a sofrer de hipocrizofilia. Sendo que a hipocrizofilia crónica é, de longe, a mais alarmante.
Os que estão atentos à situação vão percebendo como, infelizmente, a mesma tem vindo a ganhar terreno na sociedade atual. É assustador quando vemos, com uma clareza que nos desconcerta, que esses hipocrizófilos, por terem sido profundamente domesticados pela sua hipocrisia durante um período de tempo excessivamente longo, a integraram na própria personalidade e, como tal, perderam a completa noção de que padecem desse mal.
A hipocrisia colou-se-lhes tão bem à pele que já não conseguem distinguir onde termina o corpo e tem início a máscara que usam. E é neste patamar que a doença se torna incurável.
E aqui estamos nós. O comportamento em decadência e decomposição, espelha uma miséria humana que desfila a olhos vistos, vestida de uma vaidade e superficialidade absurdamente estúpidas, enfeitadas com a ideologia do Bem.
Se não se envidarem esforços para a cura desta epidemia, brevemente transformada em pandemia, pelo menos que se consiga obter um qualquer fármaco ou substância que nos permita, a todos, alienarmo-nos para vivermos neste planeta, entregues a uma alegria e felicidade eternas. Se não morrermos do mal, pois que enlouqueçamos do anestésico. Não somos perfeitos mas, quiçá, a anestesia perfeita nos leve a construir uma civilização artificialmente bela onde não só os hipocrizófilos mas todos, sem exceção, possamos acreditar que personificamos os seres mais virtuosos, mais generosos e mais empáticos do universo.
Como o mais provável seja o caro leitor assumir-se do lado dos não infetados, chamo a sua atenção para o seguinte: se sentir um impulso para criticar ou se defender face a esta simples e modesta crónica, sugiro que se dirija ao posto de saúde mais próximo da sua zona de residência, para ser consultado por um médico. É muito provável que já tenha contraído hipocrizofilia.
- Paula Freire -
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

Sem comentários:
Enviar um comentário