Este costume ancestral de levar o comer ao monte bem se compreende, atenta a economia de meios que representava: uma pessoa apenas evitava a deslocação de várias, e o ritmo do trabalho não se interrompia, senão pelo tempo suficiente para homens e animais se retemperarem.
Justamente pelo facto de ser um costume tão corrente e insuspeito, serviu, no tempo difícil da guerra civil da vizinha Espanha, para esta gente raiana do lado de cá prestar a sua solidariedade aos nossos vizinhos em dificuldades, perseguidos pelo regime franquista ou simplesmente fugidos dos horrores da guerra.
Contava-me a minha avó, sem sombra de vanglória, com a serenidade de quem tinha feito a coisa mais natural deste mundo, que muita da comida levada ao monte, depois dos "vermelhos" se terem refugiado nas terras da raia, não se destinava aos trabalhadores da aldeia, mas a matar a fome aos refugiados.
Entre as mulheres dos lavradores estabelecera-se um pacto secreto de, à vez, simularem levar a comida aos seus obreiros, deixando a canastra com os alimentos em sítio previamente combinado e recolhendo a canastra com a loiça usada no dia anterior. Heroicamente corriam o sério risco de serem interceptadas pelas autoridades portuguesas, com consequências que decerto não seriam agradáveis. Heroínas silenciosas.
De início, por precaução, apenas um elemento do grupo, e sempre o mesmo, aparecia para combinar o ponto de entrega, no dia seguinte. Foi assim durante intermináveis meses.
A cumplicidade da aldeia e o fechar de olhos do próprio cabo da polícia foram encorajando esses foragidos a, pela calada da noite, se aventurarem a descer à povoação, pernoitando nos palheiros espalhados pelas eiras, na periferia do povo. O primeiro habitante que se apercebesse da aproximação da Guarda Republicana, dava o alarme, permitindo-lhes colocarem-se a salvo.
Era este o sentido de humanidade que esta gente iletrada e rude praticava: ajudar quem precisasse, independentemente de ideologias, nacionalidade ou relações de proximidade. Era esta mesma filosofia de vida que mandava colocar na mesa da refeição um talher a mais, porque o caldo se repartia sempre com quem chegasse.
(...)
in Quem me Dera Naqueles Montes
Sem comentários:
Enviar um comentário