Sobre o Blogue
SOBRE O BLOGUE:
Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
De Bragança a Vinhais
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Parque Natural de Montesinho |
Ontem saltitei entre bares escondidos no castelo de Bragança e um outro escancarado na Avenida Sá Carneiro. Os que ficam intramuros são giros, em pedra e madeira. Aí, há o "Celta", na ladeira principal, que tem a caricata ficha de informação de horários no vidro da porta - diz ela que o bar abre quando o dono chega e fecha quando ele se for embora. Há ainda o "Duque", no final de uma rua estreita, que se destapa para o cliente ao toque de uma campainha. Os da Avenida, por estarem na artéria principal da cidade, tinham mais gente. Um deles, o "Cheers", contava até com maior número de mulheres que de homens, um verdadeiro feito num país destes, em que leio constantemente que elas são numericamente superiores a eles e essa demografia é completamente defraudada da meia-noite para a frente, seja lá qual a cidade em que esteja. Voltei à Pousada tarde, com o álcool a fazer de casaco, e fui ver se estava tudo bem com o Dinis. Faço-o regularmente, antes de ir dormir. Vi-o coberto por uma carapaça de gelo, a reluzir dos brilhantes da geada que se formou a partir das dez. Estavam zero graus, li eu no termómetro da farmácia. Na altura pensei como o mercúrio deveria estar a indicar números negativos lá para cima, para o Parque Natural do Montesinho. Lá andei hoje. Com mais calor. Fui seguindo placas que me levavam à Sanábria, mas não houve necessidade de chegar tão longe. Parei antes disso. E vi a terra que me convenceria a fazer as malas e mudar-me para o campo. Rio de Onor. A inesquecível aldeia de Rio de Onor.
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Igreja de São João Baptista na outra margem Rio de Onor |
A aldeia não está encostada a Espanha porque parte dela já o é. Oficialmente, separaram-na na actual Rio de Onor, a parte portuguesa, e Rihonor de Castilla, a parte leonesa. Isto são só tretas que secretarias de governo fazem de regra e esquadro, porque no fundo dividir este pedaço de terra é como tentar cortar um coração em dois e esperar que ele continue a bater. Os aldeões, quer de um lado, quer do outro, não dizem que vão a Rihonor de Castilla ou a Rio de Onor. Dizem que vão lá acima ou lá abaixo, sendo o primeiro Espanha e o segundo Portugal. É curioso notar que mesmo assim, sabendo que este é um caso de excepção, o Estado espanhol resolveu colocar uma placa a sinalizar Espanha mesmo no meio do povoado. Do lado português não se vê qualquer informação nesse sentido o que mostra que se calhar, apesar de tudo, temos mais sentido do ridículo do que o companheiro aqui do lado. E bem se lixaram eles, porque um pouco mais à frente, num outro quadro onde se lê "Junta de Castilla y León", alguém riscou o castilla e observou por baixo, em pintura, "País Lionés". Ora bem.
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Carroça e bois - Rio de Onor |
A língua da aldeia é uma mixórdia de castelhano, leonês, asturiano e português, que, tudo somado e subtraído e multiplicado e dividido dá um resultado que apelidaram de rionorês. Falei com pessoas que tanto usavam conjugações lusas como no segundo seguinte referiam um objecto com acentuação espanhola como logo depois aventuravam híbridos de três ou quatro línguas engalfinhadas. Anda um tipo a colher quilómetros fronteiriços, do Algarve a Trás-os-Montes, a apreciar castelos de cintura fortificada, esses guardadores de raias com séculos de história, e depois damos com este monumento à paz, um povoado de pouco mais que uma centena de pessoas, a partilhar sangue, trabalho e vida com o outro lado da fronteira. Não há nada que não se goste nesta quieta cova cercada por três serras, a leste pela de Guadramil, a oeste pela de Montesinho que dá nome ao Parque, e a norte pela imponente Sanábria. A sul as paredes abrem-se até à cidade de Bragança. Mantém um quotidiano ancestral, dos antigos povos comunitários. Em Rio de Onor, apesar de alguns modernismos que, diga-se, só lhe tiram a graça, trabalha-se para a aldeia e não para si próprio. As ovelhas e cabras são de todos, a horta é de todos, os tanques de roupa são de todos, o forno é de todos. É uma ínfima mancha de colectivismo numa europa - e num mundo - que anda desde há mais de cem anos a viver a filosofia do eu.
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Rio Sabor - França |
Andar pelas ruas e olhar para as casas que ainda funcionam como tipicamente transmontanas - piso térreo para guardar o gado, primeiro piso para as famílias - é um longo e incessante arrepio na espinha. Apetece parar de conhecer a aldeia para se começar a viver nela. Pensei em, por uns dias, entregar toda a pinga de suor que tenho a esta velha ordem comunitária. Trabalhar com eles, para a aldeia, e receber com eles, da aldeia.
A crise financeira não chega aqui. Nestas casas, crise é ter menos cabeças de gado ou má sorte nas chuvas ou a morte de alguém. Falei com um senhor já velhote, que transportava uma carroça puxada por dois bois, de uma contundência que é a marca de água do norte:
- E malta nova por aqui, não há? - perguntei eu.
- Malta nova por aqui não há. Emigram. Ou então estudam. Os novos agora não querem trabalhar, só querem estudar.
- Pois… eu também estudei.
- É. E agora vêm-se queixar da crise. Esquecem-se que é a terra que nos dá o que comer. Agora está tudo desempregado e, olhem, comam o computador.
Soltei uma gargalhada. Ele olhou para mim com um jeito no lábio de quem viu que fez rir alguém. Por cá, desemprego é outro conceito meio vago de que se ouve falar no telejornal das oito. Não sei como está agora, mas aqui, antes, vivia-se o pleno emprego, um sonho de fraca concretização à escala nacional. Não tenho nenhuma reclamação a fazer em relação à tal sociedade de consumo que é tão criticada nestes tempos. Vivo-a diariamente, sem me queixar. Essa, sabemos, não vai desaparecer tão depressa. Mas esta, que é o seu oposto, deve manter-se tão forte quanto for possível à vontade do Homem, e será uma grande perda vê-la a acompanhar um dinamismo que, já se viu, nem sempre dá bom resultado. Que Rio de Onor se mantenha assim não é só um bom sinal para o país. É para a humanidade. Porque não há terra mais humana que esta.
Cheguei tarde a Vinhais e dei poucos passos por cá. Em todos, não pensei noutra coisa. De como a felicidade pode ser tão barata. Ainda penso em ti, Rio de Onor.
por Ricardo Braz Frade
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