cópia dos papéis pertencentes a Pedro Henriques de Guevara remetidos à Inquisição de Goa pelo comissário em Macau ca. 1645 |
Aventureiro também e explorador, foi um cristão-novo de Torre de Moncorvo, chamado Pedro Henriques de Guevara. O sobrenome não é da família e tê-lo-á ganho depois que se foi para as Índias de Castela.
Guevara não deixou livro escrito a relatar as aventuras e os itinerários seguidos pelo Oriente, como o Mendes Pinto, ou pelo Ocidente como o Che Guevara. Esses relatos e notícias desses itinerários foram escritos por diversos comissários e familiares da inquisição que lhe seguiam os passos. Deu que fazer aos inquisidores do México, de Toledo, de Goa e de Lisboa que acabaram por concluir que “não constava coisa bastante para haver de ser preso”.
Não conhecemos os papéis que possa haver nos tribunais do México e de Toledo, mas tão só os que vieram remetidos do tribunal de Goa para Lisboa e que serviram de base à elaboração deste texto.(1) É provável que existam outros, já que do México e Toledo chegariam as denúncias contra ele e a consequente ordem de prisão, que os familiares e comissários da inquisição de Goa não conseguiram executar, como se verá. Por agora vamos até à Torre de Moncorvo, em busca das suas raízes.
Terá o Guevara nascido por volta de 1600. O seu pai chamou-se Luís Vaz Henriques, o alto, de alcunha, rendeiro de profissão. Rendeiro também foi o avô paterno, Francisco Vaz, o frade, de alcunha, casado com Catarina Henriques, irmã de Pedro Henriques Cavaleiro. A história da família na inquisição começou em 1556, com a prisão de Luís Vaz, o bisavô de Guevara.
Isabel da Penha se chamou a mãe. Era natural de Vila Franca de Lampaças, filha de Álvaro Cardoso e Mícia de Penha. Nesta família entronca Diogo Henriques Cardoso, grande mercador Portuense que casou com uma filha de Vasco Pires Isidro. E também Miguel Cardoso, o administrador da Companhia de Comércio do Brasil, no Rio de Janeiro. A história desta família na inquisição remonta aos anos de 1597, com a prisão de Belchior Álvares.
A respeito desta família, fora da Sefarad, importa referir às andanças do Cavaleiro por terras de África. Tal como um tio-avô paterno (Duarte Ribeiro) que morreu nas Índias e os tios paternos Pedro de Oliveira e Gabriel Ribeiro que se foram para as Índias de Castela. E foi esse também o caminho seguido por Pedro Henriques de Guevara e seu irmão Félix Henriques. Deste não sabemos mais nada.
Dos caminhos seguidos por Pedro Guevara em terras Americanas, pouco sabemos nem temos notícias do seu modo de vida e das suas aventuras. É possível que tenha andado por terras do Perú, já que um dos seus perseguidores, o dominicano frei Gaspar de Carvalho escreveu de Manila:
— O Perú o tinham entregue os judeus ao grande Turco; prenderam mais de 400 no México; estão os troncos ocupados e presos muitos em casas particulares. Pedro Henriques de Guevara, esse vizinho de VP, (Vale Paraíso?) é grande judeu. Veio aqui um familiar do santo ofício a prendê-lo e sequestrar-lhe o fato, por ordem do México. Todo o dinheiro que tem é alheio, até os moços. Vai ordem para prendê-lo e eu levo outra via, para se acaso se escapar…
Passando ou não pelo Perú, participando ou não na “Grande Cumplicidade”,(2) Pedro Guevara andou pelo México e dali fugiu para não ser preso. A fuga terá sido por Acapulco em direção à cidade de Manila, nas Filipinas.
De imediato correu a notícia e, por todo o Oriente, comissários e familiares da inquisição foram mobilizados, tal como os frades de S. Domingos, verdadeiros guardiões da pureza da fé. Atrás dele, com ordem de prisão passada pelo tribunal de Toledo, terá ido também o alferes Benito de Loyola, familiar do santo ofício que, em Manila teria todo o apoio do comissário local, frei Domingos Gonçalves da ordem de S. Domingos.
Não encontrando o fugitivo, dirigiu-se a Macáçar, nas ilhas Celebes, Indonésia, por lhe constar que ali estaria. Corria o mês de Abril de 1645 e ele não estava em Macáçar, Mas encontrava-se ali, um tal Gonçalo de Lima, acabado de chegar do Camboja e lá estivera com o “capitão” Pedro Guevara. Contou que dois dias antes de Guevara deixar o Camboja e rumar a Macau, lhe roubaram uma escrivaninha. E, depois de muito a procurar e não a encontrando, deixou ordem ao mesmo Gonçalo de Lima que, por qualquer modo, a recuperasse, que ele pagaria todos os gastos. A escrivaninha acabou por aparecer em casa de uma tal Mónica Fernandes, encontrada por um Tomé de Caminha que no Camboja vivia casado e a resgatou, comprando-a e entregando-a a Gonçalo de Lima. As fechaduras estavam rebentadas e, para além de uma gaveta cheia de papéis, havia um espelho, “umas meias velhas e outras ninharias”.
A escrivaninha foi de imediato sequestrada, com os papéis, de tudo se lavrando uma ata que foi assinada pelo vigário da igreja local, padre António Fernandes, pelo familiar Benito Loyola e pelo escrivão.
Os papéis terão sido levados para Manila e entregues ao comissário local da inquisição que, por sua vez, os remeteu para o comissário da inquisição de Macau, padre Manuel Fernandes, com pedido de prisão de Pedro Henriques de Guevara.
Obviamente que era uma grande oportunidade para este comissário mostrar serviço e brilhar dentro da estrutura inquisitorial. Havia, porém, um pequeno obstáculo: não tinha mandado formal dado pelas vias competentes para executar a prisão, uma vez que Macau era território dependente da inquisição de Goa e não da inquisição do México ou de Toledo.
Na verdade andava o Guevara comerciando em Macau, tendo chegado em setembro de 1644 no navio de Gaspar Borges. Bem gostaria o comissário de lhe deitar a mão mas, foi aconselhado pelos dominicanos que o não fizesse… Desdobrou-se então a escrever cartas para a inquisição de Goa, cartas que enviou por todos os barcos que, depois da monção navegavam de Macau para a Índia. Veja-se o ânimo do comissário, expresso numa dessas cartas e sabendo que o “capitão-mercador” viaja para a Índia, em liberdade:
— Muito me remorde a consciência ir este Guevara no navio de Cochim onde se presume que vá a Goa, como dizem; receio que vá para Cochim de Cima e para outros judeus que ali há. E VVMMM o remedeiem e mandem o que for serviço de Deus. Eu, esta mesma ordem mando no mesmo navio e nas vias que faço à mesa do santo ofício com os papéis feitos. E no galeão de António Fialho Ferreira, para que, se lá chegar primeiro, estejam VVMM de aviso. Este Pedro Henriques é rico e leva cabedal que passa de 15 ou 16 mil pardaus empregados… Macau, 3.12.1645.
Também o comissário da inquisição em Manila escreveu cartas para o tribunal de Goa cujos membros reuniram em mesa, em 29.4.1646. Porém, o homem que eles por unanimidade, entenderam devia ser preso, tinha embarcado já para Lisboa.
Decidiram então escrever para a inquisição de Lisboa e para ela enviar todos os papéis. Em simultâneo, mandaram passar ordem ao juiz do fisco na cidade de Goa “para fazer inventário e sequestro dos bens e fazenda que tem nesta cidade o dito Pedro Henriques, nos navios Conceição e Santa Cruz”.
Andaria o Guevara por Lisboa, quando o tribunal desta cidade reuniu em mesa e decidiu:
— Foram vistos na mesa do santo ofício os papéis juntos (…) e pareceu a todos os votos que neles não constava coisa bastante para haver de ser preso, porque nem há neles culpas de judaísmo nem a certeza que esteja decretado à prisão em nenhuma inquisição, por serem os ditos papéis pouco jurídicos, sem se reconhecerem por tribunal algum. De mais da dificuldade ou impossibilidade que há em se comunicarem as inquisições de Portugal com as de Castela… Lisboa, 17 de janeiro de 1650.
Possivelmente encetou então o Guevara uma nova luta a fim de reaver as fazendas e os bens que a inquisição de Goa lhe sequestrou. Disso, porém, não temos qualquer notícia. A última informação que temos foi-nos dada por sua prima, Catarina Henriques, moradora no Porto, presa pela inquisição de Coimbra em 1658 dizendo que tinha um primo chamado “Pedro de Guevara que também embarcou para as Índias de Castela e depois esteve em Portugal e depois em Lisboa, não sabe em que rua ou bairro seja morador”.
Notas:
1 - Inq. Lisboa, pº 13643, de Pedro Henriques de Guevara.
2 - Por 1630, os Portugueses dominavam o comércio na capital do Perú, onde eram numerosos. Em 1635, a inquisição de Lima lançou uma vasta operação, prendendo muitos deles, acusados de judaizarem. A operação culminou no auto da fé de 2.1.1639 em que foram sentenciados 72 prisioneiros, 11 dos quais queimados na fogueira. Tal operação ganhou o nome de “Grande Cumplicidade”. WACHTEL, Nathan – A Fé da Lembrança Labirintos Marranos, p. 85, ed. Caminho, 2003.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com
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