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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

A primeira sobremesa

Comunicação apresentada ao Encontro “Saber Trás-os-Montes”
Ernesto Rodrigues


Nasci para a literatura entre aromas da cozinha e ruídos na oficina. Um misto de apurado bom gosto e trabalho no duro. Minha mãe oficiava no primeiro andar, excessiva na medida do arroz, em que nunca acertou — «É melhor que sobre do que falte!», respondia à regular crítica de meu pai — e pródiga de carinhos; meu pai, esse, ao rés da terra, na porta larga com arabescos da sua lavra, soldava e batia na bigorna, tirava da forja um ferro rojo que nem no Inferno, aperfeiçoando metal mais dúctil do que as palavras. Era um artista consumado. Inscrevia, entretanto, novos nomes num livro de fiados, de dentro e fora da terra, que não pagavam na feira seguinte, e nos empobreciam. Estas injustiças levariam a quinze anos de emigração; e despertavam-me para valores morais, para comportamentos e diferenças sociais inaceitáveis. No difícil horizonte destes pais, eu era marco dianteiro na paisagem afectiva, e, saído da casca, entrado na escola já sabendo ler, tacteava outras caligrafias.
No refúgio da sala, escrevia sobre mesa redonda de vidro, onde ele pintara a bandeira nacional: artista facetado, sonhava dar-me outros livros. Entre História pátria e da língua, ventava do terraço fumo de sardinhas e carapaus, ou picavam fritos de peixe e enguias trazidos da ribeira da olga. Congro, pouco; alguma pescada; e, no resto do ano, desde umas férias de Natal que me conquistaram para a leitura e inspiraram futuro, vivia-se da ceva, em salmoura no sótão, enquanto do fumeiro pingavam chouriças de sangue, alheiras, linguiças, palaio, salpicões. Meu avô, de quem tirei o nome, sobre ser caçador de mulheres, era emérito atrás de coelhos, lebres, perdizes, que nos oferecia. Evoquei assim, na minha primeira novela, Várias Bulhas e Algumas Vítimas (1980), o quadro familiar de uma noite à lareira em casa do avô paterno:

Só então, no recosto do escano, subia ao fumeiro.
Não pingavam. Que feliz, este ano cortei o pão para as chouriças e
piquei-as. O palaio, creio, vai mingando de ano pra ano.
As mães é só recados e é o pão e a massa da fina e agora os moletes depois um carrinho de linhas! Não pode ser! Vai lá tu que tens boa perna — respondo, calaceiro, derivando no erre. Olha que levas! — e a palma da mão continua longínqua.
Que é que comeste hoje ao jantar, pra estares assim tão salgado?
O teu neto não bebe? Bebe, rapaz! Não te envergonhes! Olha que quem se envergonha passa mal.

Na capoeira, anunciava-se refogado até cheirosa cabidela. Com vinhedo e oliveiras, não se passava sede, isso não: mas encher cestas, baldes, bombos, bidões, e pisar uvas, na dorna ou no lagar, só isso já me deixava bêbedo, e mais se jogássemos à cabra-cega, pois não víamos aonde nos levavam, nem se apressavam o mosto — urinando. Lembro a ti Ana, minha vizinha, «oitenta em cima, à cabeça a canastra das uvas para dependurar na sala», e pergunto-me como era possível ir da vinha até casa sem um tropeço. Quando trovejava, as redondezas recolhiam ao seu baixo, com «as batatas no chão, os cabos das cebolas, pepinos e o resto, o cheiro das pipas correndo da adega, […] a vizinhança ali compacta em rezas e arrepios a cada alustro, sussurrantes, uma eternidade: enquanto, na vidraça devota, Santa Bárbara em pagela defendia menina Judite.» Eis as referências imediatas, a mundivisão, como se diz, de artista imberbe.
A verdade é que com uma arranca de batatas – pior, só no tempo das segadas ou nas manhãs álgidas de azeitoneiros —, algum cebolo, chícharos, gão-de-bico e couves, castanhas para assar donde extraía preciosos bilhós, fruta, ovos de casa e bacalhau do miúdo comprado em soto, já se não passava fome. Café de cevada e chá de cidreira aqueciam quem não gostasse de um gole de aguardente, caindo, fina, do pote. O presunto rendia; folar de carne, filhós e rabanadas compensavam outras quaresmas.

Era mais ou menos este o nosso bornal gastronómico dos anos 60, antes de conhecer longes cidades e me engasgar no fígado estrangeiro, que me inspirou ementa em húngaro no romance de estreia, A Serpente de Bronze (1989). Voltei aos nossos pratos nos romances Torre de Dona Chama (1994) e A Casa de Bragança (2013) — aqui, cuidadoso nos manjares da Idade Média —, e em dois contos. Demorei-me na descrição gastronómica da capital Valhadolid, em 1605, com informes úteis aos vizinhos que éramos e somos, segundo obra-prima de estranho título, Fastigínia, de Tomé Pinheiro da Veiga, que editei em 2011.
Abrindo pelo ainda fresco romance A Casa de Bragança, é fácil deparar--se-nos hoje um quadro assim medieval:

O pai alimentava um mensageiro encorpado, ali caído qual trovoada de Agosto, que sorvia ruidosamente, sem secar os beiços, e dentava um bom carolo de sêmea mergulhado na malga, onde esqueceu ossos rilhados de fome. «É um saião», apontava a mãe, significando oficial de diligências. «Um abuitre fora de quaresma», acrescentaria o seu homem. A faca cheia de bocas rascava nos lábios e limpava- -lhe os dentes açafroados, quamanho era o feijão, era a chouriça, que abadava, ainda exigindo pão com fermento para molhar no caldo meado.
O camponês benzeu-se de tais maneiras, que nem um herege, incréu ou mendigo, «Um alarave», alarve, cogitava ela, baixo, «Labrego!», diria o marido, já a criatura despejava uma albarrada, ou vaso de água, pela barriga abaixo, e se coçava do bestunto às partes, demorava no embigo, limpando as moncas à toalha, unhas ruidosas da camisa às bragas, como se fosse entrudo. Um arroto levantou-o; custou-lhe apertar o cinto.

Já diferente era o futuro preceptor de D. João de Portugal e Castro, que devera ter sido rei, no lugar do meio-irmão D. João, mestre de Avis:

Gomes Rodrigues chamou Constança e observaram o hóspede. Tendo pedido água para lavar as mãos, sujas da rédea do cavalo agora preso à argola, sentou-se, direito, no correr do banco desigual, limpando a boca antes e depois de beber, moderadamente. Inês trouxe faca e pão: colocou aquela à direita, ao lado do copo, este à esquerda. O senhor sorriu-lhe, e, como apanhado em falso, tirou o chapéu, entre negaças a si mesmo, viajante cansado que assim dejejuava, agradecendo aquelas couves, «São berças apanhadas na horta», explicou Constança, e as maçãs que trincou sem cerimónia. O guardanapo no braço esquerdo era novidade; compreenderam que seria gente com quem se podia tratar.

Acrescento um terceiro quadro de finais do século XIV, aquando de visita à mesma casa, fronteira à Domus Municipalis, de D. João I, Nuno Álvares Pereira e menino Afonso, futuro primeiro duque de Bragança, aos quais foi servido jantar de quatro pratos “sopa, dois de carnes e sobremesa “, afora pão e cerveja. As crianças adoravam pão torrado e ovos estrelados.
A novidade eram garfos, em ouro os do mestre e de D. Nuno, já em uso nalgumas cortes europeias, sem, dizia o homem dos óculos, brandindo o seu, de prata, os riscos da faca ou de mãos sujas.
A sobremesa propunha duas variedades: aletria, com açúcar branco (raro, no lugar de mel, por ser para quem era), bem pisada com canela, e uma gemada com duas colheres de farinha, que a avó batia em tigela e levava ao forno numa sertã fervendo em manteiga.
Discutiu-se de nata e de viandas de leite, se as devíamos comer: pouco, e nunca beber sobre elas.
Afonso, quase senhor da casa, de tão habituado, provou do vinho tirado de pipa, a ferver, fez uma careta avinagrada e desapareceu com Inês no patim das traseiras.

No prazer da mesa, forjam-se amizades, como demonstro em vários lugares de Torre de Dona Chama. Cito logo do início, onde fala o padre, vivendo com uma irmã:

— Não ouviu? Eu lhe conto. Mas vá bebendo, não se esqueça.
Não me fiz rogado. Gosto do vinho, tranquilamente; o copo deve ser grosseiro, se púcaro de barro até ferve. Agarra-se de preferência com ambas as mãos, trinca-se como se o instante parasse; imaginar veludo. Volta-se a encher do jarro vermelho-opaco. A velha senhora adivinhou (é melhor pensarmos que sabe do que gasta a casa) e traz segundo jarro que põe entre os dois na mesinha do escano, descida. Enche dois potes de água, que aquece; prepara o jantar.
Virámos um copo. A velha senhora teve a lembrança de pratinho com lascas de presunto, azeitonas e pão centeio, compõe o estômago enquanto abre o apetite, desse presunto bem formado, como subido directamente do animal que ainda há momentos tivera a sua lavadura, ou, se não, descido da salmoura onde por frios e solidão se conservara para nosso prazer. A velha senhora já me conhecia de uma outra vida, talvez de outra lareira, porque não lhe deixou nem raças de gordo. Fomos petiscando, servindo-nos de garfinhos muito delicados.
Ele traz novo prato de azeitonas esquartilhadas que tira da talha e vai lengalengando. Desvia o testo aos potes; senta-se.
Afogueada, chegou a velha senhora, que mete mais uma panela de água ao lume. Lavar a louça na balsa só com água quebrada da friúra. Estava tudo em ordem, que acrescentou, faltando pôr a mesinha para a ceia dos senhores. Houve aqui um pouco de cerimónia. Dirigindo-se à velha senhora, perguntou se comíamos na sala ou na cozinha. Ela que ali estávamos mais aconchegados. Mudávamos para o outro escano e baixava-se a longa tábua. Fui devorando educadamente.
Fechávamos a refeição com aguardente de amora. Saciados (a velha senhora tirava a mesa e reconduzíamos a tábua à vertical do escano), inquiríamos nas chamas como, numa tarde, se pode construir um passado de amizade.

No conto “Natal de 1887”, Ramalho Ortigão visita o amigo Guerra Junqueiro, em Viana do Castelo, mas a atmosfera é bem nossa:

As filhas brincam sob o vapor da terrina fumegante.
Nem por milagre, chamava ela «À mesa!», bate à porta um cura de largo passal, e saúdam-se, enquanto abençoa as meninas. «Vai um copo?», digo, em jeito de boas-vindas, que alguma combinação houve nas minhas costas. Desabotoa a batina e aquele sorriso nédio, que arremessa em ajuste de contas:
«À mesa!», impõe a mulher. A reza é breve, que não acompanho; persignam-se e arrastamos cadeiras. No tempo de um laus Deo, ele seca um copo de tinto graduado, puro, sem mistura desde a pisa, como quem apaga a sede de notícias, que o atropelam.
Rabanadas e orelhas-de-abade cobriam travessas, que o propriamente dito esguelhava gulosamente.

No conto inédito “Pátria breve”, reúno cinco amigos:

O pai dos críticos, amigo por afinidade (de facto, eu dava-me com a mulher, que não podia vir), julgava-me um brincalhão, pois também Caçarelhos, em A Queda Dum Anjo, não existia para ele; Biófilo, nome próprio do mais hedonista do nosso grupo dos cinco, excitara-se à ideia de conhecer aquela «Chama, / Chamorra, / Pernas de cabra, / Cara de senhora», e verificar se a bela calçava sapatos italianos em pés forcados; o mais sisudo, antropólogo com obra por fazer (e barba, acrescente-se), buscava assunto para dissertação doutoral. O mais imprevisível, que nos caía regularmente à sobremesa, esforçava-se por (jurou, entre quebradas de montes onde se perdia a rede do telemóvel) chegar à hora da sopa, «do caldinho», corrigiu, tão cheiroso, que já o sentia, nesse jeito de quem se candidata a deputado e procura círculo eleitoral, que era o seu caso. Ouvira falar da desertificação do interior, que associava a almas vazias, e contava amealhar votos sob um qualquer manto diáfano — fosse de neve ou de promessas.
Desta vez, ao menos, eu não teria que abarrotar o automóvel com alheiras, presunto, salpicão, outro fumeiro, e frascos de abóbora, pêssego, cereja, além de castanhas, nozes, amêndoa, até mel e cinco litros de azeite. Tinto da cooperativa nem se fala – ah, esse pagavam-mo, em troca de jeropiga ou de um Porto já por alturas do Tua, cuja vinha em socalcos se precipita «do alto das montanhas até à borda da água como a tribuna de um anfiteatro imenso», no dizer de Ramalho Ortigão, no tomo I d’As Farpas. Isto é: quando perceberam que eu não regressava, estes patifes correram atrás da tradição. E hão-de vir na Páscoa de flores, com saudades de filhós, rabanadas e uma bola ou folar de carne.
O medo abriu apetites. A ementa não enganava. Aproximaram-se do bem preparado repasto, com gula e algum respeito. Hábeis a trinchar, comemos à tripa-forra, à mão, sem cerimónia, versando os nossos desertos interiores (onde não chegava aquele sabor, nem molhava um Barca Velha), por que tanto se interessam os poderes instituídos. Eu fugira também por isso, e por não poder ver estrelas no céu da capital. O senhor futuro primeiro- -ministro calava.
Mas, ai de mim!, eis que saboreio aqui e ali, num apetite infrene, quando devo tornar ao rego, isto é, à primeira sobremesa do título anunciado.
Eu refugiava-me na sala, disse, escrevendo sobre a bandeira nacional. Nessa tarde, fria, do Nordeste, um odor subiu da esfera armilar, envolvendo personagem que abria o louceiro de uma historieta que eu, enfim, riscava, sem perceber bem o caminho. No meu ainda reduzido universo, ignorava Marcel Proust e sinestesias. Julgávamos, a personagem e eu, encontrar colorau, mas não: intensa, vinha outra especiaria, confundindo-nos, e, desprezando aquele condimento, uma heroína sorridente foi dispondo pratos e talheres, não menos intrigada que eu. A noite caía cedo. Ficava um espaço em branco — no caderno e na toalha às riscas —, não para guardanapos (que pobres e remediados não usavam), mas para sobremesa que fosse além de fruta trazida de uma cortinha, uso e hábito de ricos, que não éramos.
Minha mãe costumava chamar-nos, ele que subisse, viesse eu, a ceia estava pronta, a comida na mesa. Ele dizia «Já vou», e repetia, quando ela descia meia escada, «Vem, que a comida arrefece», ou, aborrecida, comentava: «Está para ali a recoquir...» Desta vez, porém, nem um queixume, e também eu não despegava, aspirando aquele aroma, que não rescendia de uma malga de caldo, nem da fervura de ervanços, que adorávamos; ofegante, a caneta remexia, espalhava odores, sem solução. No silêncio do fole, do martelo e dos ferros, pensei que talvez meu pai (nisso, diferente do avô, intrépido mulherengo) ouvisse prosa de mulher elegante, cujo perfume tomava a casa, vinha inquirir de mim. Ora, essa minha ficção não esperava visitas. Nem eu tinha ideia dos impasses em que naufragam criadores.
Abriu, então, a porta da sala, disse «Vem, meu rico filho», e percebi que há muito se fechara o portão da serralharia. Fosse respeito pelo novel artista (cedo concluiu que eu não tinha jeito para ferragachos), fosse cumplicidade de casal jovem, inauguravam as consoadas com trocar a mesa descida do escano pela da sala do meio, onde uvas viravam passas, guardávamos figos secos e haviam de repousar frascos de doce de abóbora e noz, minha segunda perdição. Um fato-macaco, sério, aguardava, enchendo meio copo grosso, «Olha que ideia!», retorquiu ela, «Deixa beber o rapaz!», tornou ele, uma pinga, sempre era festa, honrava-se o Menino Jesus, «Que não bebia», informou ela, e, da tinta ao tinto, o sorriso da heroína, suspensa na outra sala, mudava-se no de minha mãe, que dispusera na toalha de chita uma enorme travessa cheirosa, tentadora como a alegria de fazer arte (imaginava eu), um sinceno de aroma que ainda hoje aspiro, me impregna, quando cerro os olhos nas agruras da composição. Mal dei pelo bacalhau com batatas embebidos no azeite puro da casa.
Discretamente polvilhada, sobre a qual regos salientes formavam quadrados — tantos os natais que festejávamos, oito, se não era imagem do tabuleiro de xadrez em que me iniciara, com infinitas variantes quanto a melhor ficção —, ali, em linhas compactas, enigma coerente, qual a prosa com que sonhei, uma aletria densa sossegava; e, longe do prejuízo de outras eras que eu já lera num Gil Vicente de acaso (sem perceber, sem da especiaria conhecer o verdadeiro significado, pois o nosso marão de pedras ignorava aventuras índicas e seus efeitos), sobre essa letria (como dizíamos), uma canela poderosa convidou a pratinho e garfo subtil, cuja santa gula minha mãe alimentou, servindo novas colheradas, como da literatura fiz renovado prazer, ao lado de outras luxúrias.
Meu pai cobriu taça com um pano, que foi oferecer ao avô, antes de vir buscar-nos para a Missa do Galo; e, até adormecer, sem sapatinho na chaminé, não me saiu prosa da imaginação incipiente, quando (verdade seja dita, ou única razão) eu não tinha saudades de minha mãe, que estava comigo.
Correu um arrepio de dívida — e tantas contraí, ao diante — pela doce infância nessa doçura de canela consagrada, mas cuja sábia receita mal dá o coro de sentidos que em mim vibravam, e ressoam, ainda, «ao cheiro desta canela». Madrugada fora, um leve calor de Primavera osculando Verão, em cuja fronteira eu fazia anos, vinha ensinar-me que, com estes pais, a minha vocação era a felicidade.

Receita
Aletria [com um aceno ao amigo Virgílio Nogueiro Gomes, cuja crónica sobre ‘aletria’ foi aqui adaptada]: Em água a ferver, juntar 150 gramas de aletria; ferver mais cinco minutos. Se não se colocar manteiga, para evitar que os “fios” se colem, vá-se mexendo com um grafo. À parte, 5 centilitros de leite, 50 gramas de manteiga, um pau de canela e uma tira de casca de limão, levando ao lume até ferver; juntar 200 gramas de açúcar. Escorre- -se a água de cozer a aletria e adiciona-se o conjunto do leite, deixando arrefecer ligeiramente; à parte, batem-se 4 gemas, que se juntam à aletria. Leva-se ao lume e mexe-se com cuidado, até levantar fervura. Cozida a massa, retira-se a casca de limão, coloca-se a aletria numa travessa ou em pratos para arrefecer e polvilha-se com canela. Pode comer-se ainda quente.

Tellus, n.º 61
Revista de cultura trasmontana e duriense
Director: A. M. Pires Cabral

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