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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 12 de julho de 2022

AS COISAS [...] — QUANDO A RAPOSA ANDA AOS GRILOS

 O pobre Turdus philomelus Brehm, vulgo tordo, e seus parentes próximos são hoje as grandes vítimas da frustração dos caçadores. Aqui há vinte anos, qual era o caçador digno do nome que se rebaixava a atirar a um tordo, a não ser por desfastio ou por exercício de pontaria ou ainda por impulso predatório gratuito? Nada, o chumbo estava reservado para as espécies que o mereciam: as perdizes, as lebres, os coelhos. Na cartucheira iam também, pelo sim pelo não, dois cartuchos com zagalotes, não fossem por lá aparecer o senhor lobo, o senhor porco montês ou a comadre raposa a alcance de tiro. Os tordos deixavam-nos os caçadores para os garotos que, de carabina Flobert de nove milímetros em punho, iam fazendo a lenta aprendizagem da arte venatória.
 Hoje porém tudo mudou. A caça nobre, como tudo o que era bom à superfície do planeta, foi insensatamente dizimada e hoje é mais fácil ver um camelo passar pelo fundo duma agulha do que um caçador voltar para casa com meia dúzia de peças à cinta. O homem ainda não acordou para a evidência de que o uso imoderado das coisas leva ao seu esgotamento com uma rapidez estonteante. Os pesticidas e toda a química de que a agricultura se serve ajudam à missa: aumentam a produção, é certo, mas eliminam a vida silvestre e agravam a penúria. Hoje escasseia a caça, amanhã escasseará o próprio ar que respiramos. Segue-se que, terminado o período normal de caça à perdiz e insatisfeitos os caçadores com os magros resultados obtidos, se atiram com sanha aos pobres tordos, que vêm confiados para a safra da azeitona nesses olivais da Terra Quente e acabam sacrificados à pontaria das sofisticadas armas automáticas dos caçadores de Guimarães, de Fafe, do Porto, que sobem às nossas alturas a vingar-se da escassez de perdizes. Em anos de abundância, às vezes o tiroteio é tão nutrido e contínuo que parece a fim do mundo, como se diz vernaculamente nestas minhas berças.
 É a adaptação do caçador às novas circunstâncias. Na verdade, como dizia Sófocles, o homem é o maior de todos os prodígios, e — digo eu — um dos seus prodígios principais é a capacidade de adaptação. Se não possuísse essa capacidade em tão alto grau, o australopiteco ou o pitecantropo ou qualquer que fosse dos nossos venerandos avoengos não teria desembocado nesta bem sucedida espécie Homo sapiens. 
 Mas claro que, a este ritmo de matança, a relativa fartura actual de tordos não pode durar muito. Matam-se aos milhares todos os anos e a espécie, confrontada com esta chacina sistemática e decerto não programada no livro do deve e haver do ecossistema, pode não ter capacidade para repor as baixas. Entrar-se-á então num processo semelhante ao que aconteceu com as perdizes e as lebres, e os tordos acabarão por ser tão raros amanhã como estas são hoje.
 Bem sei que a tal capacidade de adaptação do caçador às circunstâncias arranjará solução para o caso. Em vez de atirar aos tordos, passará a atirar aos pardais, até que também estes escasseiem irremediavelmente, e sejam apenas objectos paleontológicos referidos nos manuais de ornitologia. Depois dos pardais, seguir-se-á o quê? Talvez as borboletas.
 E depois das borboletas?
 Há um provérbio bem trasmontano que parece servir como uma luva a esta situação: ‘Quando a raposa anda aos grilos, se mal da mãe, pior dos filhos’. A raposa, para cumprir o papel que a mãe natureza lhe distribuiu, deve entrar nas capoeiras ou caçar de salto pequenos roedores e aves. Se tem de se contentar com grilos, é sinal que foi atingida uma situação de ruptura. E toda a ruptura nos circuitos naturais é muito grave. Para a mãe, naturalmente; mas — o provérbio o diz — ainda mais para os filhos. Neste caso, mal comparado, os caçadores seriam a raposa. E os filhos seriam mesmo os nossos filhos, aqueles para os quais não tivemos o cuidado de preservar devidamente este planeta.

(Repórter do Marão, 28 de Dezembro de 1990)

A M Pires Cabral

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