Volta e meia, estala uma guerra dos diabos entre as associações de defesa do consumidor e as agências de publicidade. Geralmente porque a publicidade é enganosa, ou não respeita o articulado do código respectivo. E eu tomo partido nestas guerras sem quartel: pelas primeiras, obviamente. Porque hoje a publicidade é tão manhosa, subtil e apelativa que não temos meios de lhe escapar. Por muitos festivais de filmes publicitários que se façam, por muita loa que se cante à publicidade, continuo a pensar que a nossa relação com ela é um jogo do gato e do rato, e o Leitor dispensar-me-á de explicitar qual é o gato e qual é o rato.
A publicidade não é uma coisa de hoje. De hoje é, sim, o apuro velhaco e a consumada arte com que no-la apresentam. Há filmes publicitários que são verdadeiras obras-primas. Só que é uma arte interesseira, mais apontada à nossa bolsa do que ao nosso deleite estético. A mensagem é só uma: compre, beba, use, consuma - mesmo que o que consome, usa, bebe e compra lhe faça uma falta equivalente à que faz uma viola num enterro.
A publicidade de hoje está para a de há oitenta anos como um gangster de Chicago está para um menino de coro. Tenho nas mãos um exemplar da gloriosa Agenda Grandella de 1914, que inclui nas suas páginas inúmeros reclames, disto e daquilo.
Para um homem como eu — que, acreditando embora no progresso e fazendo os possíveis por lhe desimpedir o caminho, para que chegue em bem a toda a parte, não se consegue furtar a uma agridoce nostalgia por tudo quanto foi, tudo quanto o mesmo progresso vai implacavelmente triturando nas mandíbulas poderosas de jacaré —, para um homem como eu, dizia, a ingenuidade com que os fabricantes e vendedores da época tentam impingir os seus produtos chega a ser comovente. Oh, nada da manha velhaca e científica dos reclames de hoje, em que nos querem convencer — e o diabo é que convencem mesmo — de que uma simples água-de-cheiro é capaz de desencadear um romance ou um simples vermute basta para nos abrir de par em par as portas da dolce vita. Qual o quê! Ali, na Agenda Grandella de 1914, a publicidade encontra-se em estado puro, virginal: é como a galinha que se consegue desentupir do ovo e cacareja aos quatro ventos a façanha. Bem entendido que andam por ali as suas mentirazinhas, as suas imposturas, os seus exageros e charlatanices. Mas tudo tão às escâncaras que não chegam a ser nefastos: só cai mesmo quem quer. Hoje, pelo contrário, cai quem quer e quem não quer: ou bem que temos olho vivo e pé ligeiro, ou nos esganamos como tordos na aboiz publicitária que qualquer fabricante de sabonetes ou refrigerantes nos arma enquanto o diabo esfrega um olho.
Vejamos então alguns anúncios da Agenda, quase todos eles emoldurados em elegantes cercaduras arte nova, o mais sábio e delicado uso que jamais se fez da linha curva.
Em 1914 já existiam algumas marcas de produtos que ainda hoje encontramos no mercado, o que não deixa de ser uma boa recomendação para os mesmos. Um exemplo ao calha: os automóveis Peugeot. Os agentes gerais em Portugal, A. Contreras & Cª Ldª, afirmam que a afamada marca Peugeot é a que mais garantias oferece ao comprador. E depois, num rompante de orgulho, adiantam que foram feitas desde Março a Junho de 1912 47 encomendas à casa Peugeot, cujos nomes dos compradores teem sido publicados, o que prova à evidência o grande número de adeptos e conhecedores das inigualáveis qualidades que reune esta afamada marca. Que tempos aqueles, em que se vendiam 47 carros em quatro meses e se publicavam os nomes de quem os comprava. E publicavam- -se para quê? Seria para que o público, céptico sempre como S. Tomé, acreditasse no assombroso número de 47 viaturas vendidas? Ou para estimular outras pessoas a verem o seu nome também publicado, isto é, o seu ego estimulado, adquirindo automóveis Peugeot? Ou seriam os 47 compradores nomes tão sonantes da sociedade da época que só por si induzissem o cidadão comum a comprar também, assim como nove em cada dez estrelas de cinema induzem o zé-povinho a comprar o tal sabonete? Mistérios da publicidade.
A publicidade não é uma coisa de hoje. De hoje é, sim, o apuro velhaco e a consumada arte com que no-la apresentam. Há filmes publicitários que são verdadeiras obras-primas. Só que é uma arte interesseira, mais apontada à nossa bolsa do que ao nosso deleite estético. A mensagem é só uma: compre, beba, use, consuma - mesmo que o que consome, usa, bebe e compra lhe faça uma falta equivalente à que faz uma viola num enterro.
A publicidade de hoje está para a de há oitenta anos como um gangster de Chicago está para um menino de coro. Tenho nas mãos um exemplar da gloriosa Agenda Grandella de 1914, que inclui nas suas páginas inúmeros reclames, disto e daquilo.
Para um homem como eu — que, acreditando embora no progresso e fazendo os possíveis por lhe desimpedir o caminho, para que chegue em bem a toda a parte, não se consegue furtar a uma agridoce nostalgia por tudo quanto foi, tudo quanto o mesmo progresso vai implacavelmente triturando nas mandíbulas poderosas de jacaré —, para um homem como eu, dizia, a ingenuidade com que os fabricantes e vendedores da época tentam impingir os seus produtos chega a ser comovente. Oh, nada da manha velhaca e científica dos reclames de hoje, em que nos querem convencer — e o diabo é que convencem mesmo — de que uma simples água-de-cheiro é capaz de desencadear um romance ou um simples vermute basta para nos abrir de par em par as portas da dolce vita. Qual o quê! Ali, na Agenda Grandella de 1914, a publicidade encontra-se em estado puro, virginal: é como a galinha que se consegue desentupir do ovo e cacareja aos quatro ventos a façanha. Bem entendido que andam por ali as suas mentirazinhas, as suas imposturas, os seus exageros e charlatanices. Mas tudo tão às escâncaras que não chegam a ser nefastos: só cai mesmo quem quer. Hoje, pelo contrário, cai quem quer e quem não quer: ou bem que temos olho vivo e pé ligeiro, ou nos esganamos como tordos na aboiz publicitária que qualquer fabricante de sabonetes ou refrigerantes nos arma enquanto o diabo esfrega um olho.
Vejamos então alguns anúncios da Agenda, quase todos eles emoldurados em elegantes cercaduras arte nova, o mais sábio e delicado uso que jamais se fez da linha curva.
Em 1914 já existiam algumas marcas de produtos que ainda hoje encontramos no mercado, o que não deixa de ser uma boa recomendação para os mesmos. Um exemplo ao calha: os automóveis Peugeot. Os agentes gerais em Portugal, A. Contreras & Cª Ldª, afirmam que a afamada marca Peugeot é a que mais garantias oferece ao comprador. E depois, num rompante de orgulho, adiantam que foram feitas desde Março a Junho de 1912 47 encomendas à casa Peugeot, cujos nomes dos compradores teem sido publicados, o que prova à evidência o grande número de adeptos e conhecedores das inigualáveis qualidades que reune esta afamada marca. Que tempos aqueles, em que se vendiam 47 carros em quatro meses e se publicavam os nomes de quem os comprava. E publicavam- -se para quê? Seria para que o público, céptico sempre como S. Tomé, acreditasse no assombroso número de 47 viaturas vendidas? Ou para estimular outras pessoas a verem o seu nome também publicado, isto é, o seu ego estimulado, adquirindo automóveis Peugeot? Ou seriam os 47 compradores nomes tão sonantes da sociedade da época que só por si induzissem o cidadão comum a comprar também, assim como nove em cada dez estrelas de cinema induzem o zé-povinho a comprar o tal sabonete? Mistérios da publicidade.
No próximo número prosseguiremos esta ronda pela publicidade de há oitenta anos.
(Repórter do Marão, 4 de Setembro de 1987)
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