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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 17 de julho de 2022

O TOMATE E O FRANÇUGUÊS

 Aqui há quatro ou cinco anos, escrevi uma crónica intitulada “Bacalhau com todos em Osnabrück”. O assunto era a mistura de culturas, ou melhor, a inevitável permeabilidade da cultura portuguesa quando desterrada num país estrangeiro.
 Contava eu, nessa crónica, que em Osnabrück, ao jantarmos na sede de uma das duas associações de portugueses ali existentes, fizeram gala de nos servir aquele que é, provavelmente, o mais genuinamente português de todos os pratos: bacalhau cozido com todos. Queriam muito legitimamente mostrar-nos, aqueles emigrantes a dois mil quilómetros de Portugal, que se esforçavam por manter intocados os laços culturais com a Mãe-Pátria, simbolizando essa intocabilidade numa bacalhoada à nossa moda. Tudo bem: o bacalhau era português e óptimo, o azeite idem; as hortaliças fiquei sem saber se eram portuguesas também, mas isso era o menos: uma couve da Baixa Saxónia não é suficientemente diferente de uma couve de Trás-os-Montes para que a diferença se note. Mas o que não era de forma nenhuma português era o intruso tomate cru que vinha com o bacalhau: esse era alemão e bem alemão.
 Isto é: por muito que um fulano, lá nos quintos da Europa, se desunhe para manter intacta a sua identidade cultural, há sempre uma frincha por onde um pormenor espúrio se infiltra perfidamente. Assim as supranumerárias rodelas de tomate cru no bacalhau com todos de Osnabrück.
 Não se me ria o Leitor, que isto graça tem pouca. Pelo contrário, tem até o seu quê de dramático, quase patético, esta luta desigual que o nosso emigrante, qualquer emigrante, trava contra um ambiente que poderá não ser hostil (e quantas vezes o é), mas que não é o seu e não é pois chão para a sua identidade deitar raízes e florescer.
 O que se passa com a gastronomia passa-se com a língua. Não é possível conservá-la imune num ambiente linguístico adverso. Tomemos por exemplo privilegiado os emigrantes que vivem em França. A gente às vezes julga que é por ostentação e gosto de embasbacar que esses emigrantes, quando regressados para férias, falam o seu francês, aliás de correcção mais do que duvidosa e muitas vezes caricato. E em certos casos será assim. Mas, noutros casos, o ‘françuguês’ é como que o seu novo português. A imersão ininterrupta de onze meses por ano em terra francófona dificilmente podia dar outro resultado. É um fenómeno de mimetismo inevitável. Lembremo-nos disso quando em Agosto próximo ouvirmos os gárrulos emigrantes a debitar uma mistura bizarra das duas línguas e descontemos no nosso desprezo e nos nossos sarcasmos o patético da sua derrota ante a assimilação linguística. Isto é: não sejamos demasiado cruéis para com eles, como desconfio que eu próprio já tenho sido em tempos de maiores impaciências.
 Como não hão-de falar ‘françuguês’, eles que são em grande parte iletrados e por isso mesmo ainda mais vulneráveis — quando outras pessoas, de quem se esperaria uma maior vigilância e resistência, baqueiam quase com o mesmo estrondo? 
 Dou um exemplo:
 Tive acesso por estes dias a uma circular do director português dum jornal também português que se publica em França. A carta está escrita em português correcto (salvo as palavras que vou transcrever), inculcando pois autoria de pessoa de certa cultura e aprendizado. Pois, a certa altura, o senhor director quer por força ‘atirar’ a nossa atenção para determinado facto. E acaba por afirmar que a Câmara de Paris ‘honora’ o seu jornal com várias assinaturas de apoio. Valerá a pena recordar-lhe que attirer é em Português ‘atrair’, e não ‘atirar’, e que em Português se diz ‘honrar’ onde em Francês se diz honorer? Acho que não vale.
 Isto é indubitavelmente ‘françuguês’. Porventura mais inesperado do que o dos nossos emigrantes, em todo o caso ‘françuguês’. Mas poderemos levá-lo a mal? Bem sei que se trata do director dum jornal que se reclama ‘de promoção dos portugueses’, logo tem responsabilidades acrescidas... Mas viver e trabalhar em França tem custos linguísticos pesados que nem sempre favorecem a promoção dos portugueses, nomeadamente daquilo que eles têm de mais rico e distintivo: a sua língua. O ‘atirar a atenção’ e o ‘honorar’ daquela circular parisiense são afinal o tomate cru no bacalhau com todos de Osnabrück. 
 Igualmente inevitável, igualmente compreensível, igualmente lamentável.

(Repórter do Marão, 2 de Agosto de 1991)

A. M. Pires Cabral

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