Sempre que chegam a chuva e as formigas aladas, toda a passarada anda num rodopio, a aproveitar tamanha iguaria. Os papa-moscas não se fazem rogados, conta Paulo Catry.
16 Setembro 2022
Papa-moscas (Ficedula hypoleuca). Foto: Alun Williams333/WikiCommons |
Choveu finalmente, ainda que sem chegar a tudo ou a todos, longe disso. Mas por aqui choveu bem.
Às primeiras gotas veio o cheiro da terra renascida da canícula. Depois vieram outras gotas, e outras mais ainda. Houve chão permeável que recebeu a água de poros abertos. Onde a chuva persistiu, mesmo a terra mais teimosa e dura cedeu e amoleceu. Ficou pronta para ser trabalhada. Era disto que as formigas do campo estavam à espera.
No primeiro dia de sol, à medida que o ar húmido aquece, subitamente eis que começa a chover ao contrário. Gotas brilhantes sobem em colunas e aos poucos enchem tudo, são as asas das formigas aladas que cintilam na luz da manhã. Machos e futuras rainhas vão acasalar para depois as fêmeas fecundadas perderem as asas e furarem a terra fresca e macia onde vão estabelecer novas colónias. São formigas grandes, como a formiga-do-pão Messor barbarus, dessas que todo o Verão andaram por carreiros largos e limpos, bordejados de palha seca, a acartar sementes de cereais e de ervas bravias. Vêm anafadas, das reservas que trazem para esta nova etapa. São petiscos gordos, luminosos e fáceis de capturar, uma tentação!
Nestes dias, reparem que por vezes se veem grupos de gaivotas altas no ar. Têm um voo peculiar, aceleram um pouco num movimento ascendente e logo planam, repetem. Não formam bandos, voam desordenadas, quase chocam no ar. Andam de volta das nuvens de formigas. O mesmo se passa com os estorninhos, que circulam por estas alturas com modos de andorinhas. Toda a passarada aproveita. Já me aconteceu ver até uma trepadeira-azul armada em papa-moscas (quem é que acredita?), caçando o seu quinhão em pleno voo.
“João, já tenho formiga-d’asa; anda daí armar aos taralhões!”. Era por esta época outonal, em tempos largamente idos, que a miudagem (e não só) mais armava aos pássaros. Por todo o lado, arrisco dizer, em cada aldeia do país. Em Setembro os taralhões eram o alvo de eleição.
Sei que há quem queira, ao ler estas linhas, alertar com urgência para o facto de que a prática não morreu. E de facto, foi até notícia no ano passado a decisão incompreensível, por maioria na Assembleia da República, de não proibir as “ratoeiras” ou “costelas” com que se apanham estes pássaros miraculosos (a caça é interdita, mas não a venda do utensílio da letal captura). Contudo, o que hoje se apanha assim é nada, comparado com outros tempos. Mais não fosse porque as aldeias esvaziaram-se de gaiatos e nas cidades há tanto mais com que encher os dias.
São duas espécies, os taralhões (nalgumas regiões também conhecidos por papa-moscas): o cinzento Muscicapa striata e o comum ou galego Ficedula hypoleuca. Este último é mais numeroso e mais conspícuo pelos seus chamamentos e comportamentos territoriais que envolvem um bater de asas sinalizador quando está poisado. O bate-a-asa, como também é conhecido, apanha-se melhor nas armadilhas, pois ao contrário do taralhão-cinzento (que se especializa a caçar insetos em voo) também captura numerosas presas no solo.
Taralhão-cinzento (Muscicapa striata). Foto: Dominic Sherony/WikiCommons |
Uma grande maioria dos taralhões-comuns da Europa faz escala na Península Ibérica durante a migração de outono. E nota-se, são tantos a anunciar a passagem que não podem passar despercebidos. Concentram-se nas regiões mais ocidentais, sobretudo em Portugal e na Galiza. Pinhais, montados, pomares, até em bocados de verde no coração de grandes cidades, estão em todo o lado!
Aqui param por uns dias e defendem a exclusividade de umas poucas centenas de metros quadrados, onde se alimentam vorazmente (a leitora adivinhou: empanturram-se de formigas-de-asa, quando as há). Acumulam gordura para a viagem que se avizinha. Depois lançam-se num voo destemido sobre o mar, voando noite e dia ao longo da costa noroeste africana (evitando assim os calores do Sara). Com frequência só voltam a parar já passado o deserto, no sul da Mauritânia ou no Senegal*, depois de cerca de 36 a 48 horas sempre a bater as asas e com a ajuda de ventos favoráveis**.
Na migração primaveril todos estes taralhões-comuns passam por uma rota mais para nascente e é raríssimo vê-los por cá. Já os taralhões-cinzentos aparecem e nidificam, mas muito escassamente, se comparando com as populações de outono. São portanto aves quase invisíveis na Primavera, tempo em que sobressaem antes outros protagonistas emplumados, como as proverbiais andorinhas.
Taralhão-comum, também conhecido por papa-moscas (Ficedula hypoleuca). Foto: Yerpo/WikiCommons |
Na recolha de Contos Tradicionais do Povo Português efetuada por Teófilo Braga (1883), temos o sumário penetrante do que acima sem jeito se procurou descrever. Conversa passada na primavera…
Dizem os taralhões:
Que fostes poucas e muitas vindes?
Replicam elas:
Que fostes muitos, e vindes poucos?
Muitos mesmo, estes que agora por aqui param e logo se vão. Se em português os meses tivessem nome de pássaro, setembro chamava-se taralhões.
** Ouwehand & Both 2016. Biology Letters 12
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