Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Os Natais de Inocência foram seis, sete e com um pouco menos inocência talvez possa acrescentar mais três, contas redondas.
No tempo em que fui rapaz, até ali era menino, era um tempo de mudança. Pode parecer a algumas pessoas que essa mudança se operou num curto espaço de tempo, mas a verdade mesmo considerando as mudanças rápidas pós 25 de Abril, em certos sectores de actividade ligados à pequena indústria foram lentos em modernizarem-se.
Vou escrever algo que me diz respeito e que foi sempre a minha actividade profissional mesmo que reconheça que nem a arte era complexa nem o meu estatuto como operário fosse minimamente relevante.
Pois bem, comecei a fazer Natais com 11anos. E o caso não é assim tão simples como parece se olharmos para a dificuldade que encontramos quando queremos produzir certas mercadorias sem equipamento e alojamento de qualidade, o que leva a tempo e esforço não compatíveis com o valor da mercadoria considerando a especificidade do produto fabricado.
Ora para mim que comecei a trabalhar aos onze anos incompletos, o facto de a arte de Pastelaria ser totalmente desconhecida, se exceptuarmos os bolinhos que via na montra do Chico Machado e os biscoitos na montra do Pousa que por esta altura do mês de Dezembro cintilavam no escaparate que nos fazia sonhar e me faziam pensar como devia ser diferente da minha, a vida da gente do Porto e Lisboa que fabricavam e consumiam aquelas maravilhas doces que faziam para o Natal. Foi uns poucos meses antes que o Senhor Ribeiro decidiu vir para Bragança e abrir um estabelecimento onde se fabricava e vendia Pastelaria que se equiparava àquela que víamos pelo Natal na montra do Pousa. A verdade era que o espaço ocupado pela fábrica era velho e não sendo um espaço sujo, que definitivamente não era, também não era o ideal para o que as várias licenças de que necessitava para laborar mencionavam e que titularmente a Lei exigia. Digamos que era sofrível.
Tinha sido uma Padaria onde tudo era feito à mão e onde as ferramentas eram fracas e a maquinaria não existia. Mas a verdade é que se fazia muita coisa. E por ser Natal de novo daqui a duas semanas, recordo a primeira vez que à minha boca entrou um pedaço de Bolo-Rei.
O Snr. Ribeiro havia sido pasteleiro na Confeitaria Cunha, no Porto e sabia fazer de tudo ligado à arte. O Bolo -Rei era uma das suas especialidades. Para quem conhece os ingredientes usados, hoje não será fácil fazer todos os ingredientes nobres do fabrico na própria fábrica, exemplo: toda a fruta que era usada no fabrico era conservada por ele com mestria. Era trabalho árduo que durante os meses de verão ele fazia com paciência e saber.
Recordo que a mãe da esposa do meu amigo António Salazar lhe fornecia quase toda a fruta necessária, fruta fresca que ele cozia e açucarava usando métodos complicados adicionando especiarias exóticas que eram para mim autêntica alquimia, laranjas, figos, cerejas, abóbora chila, alperce pêssegos, toda a fruta que era possível encontrar em Bragança incluindo, nozes amêndoas e pinhões. A massa era amassada à mão, numa masseira de madeira, obra de arte que nós retirámos quando fizemos a Dómus.
Não havia uma única máquina, até os ovos batíamos à mão.
Ora, a verdade é que ali se fabricavam uns quilos de Bolo-rei que tinha qualidade e que era fabricado unicamente por métodos artesanais e com fruta da região. As vendas eram em quantidade suficiente para que valesse a pena todo aquele trabalho e cuidado que o Bolo-rei como artigo de uma certa nobreza exigia.
A primeira mudança de posto de trabalho acontece exactamente no mês de Dezembro (10) de 1965 quando comecei a trabalhar no Roque Poças & Filhos. O Poças tinha montado uma fábrica pequena e tinha contratado um mestre pasteleiro, natural de Braga, que ainda era novo e que tinha por missão trazer para Bragança um tipo de Pastelaria que pudesse satisfazer, até do ponto de vista da qualidade e estética uma freguesia que era agora mais exigente e pudesse assim preencher um vazio que o Snr. Ribeiro pela sua idade e saturação já não preenchia.
Nesse ano de 1965, o Poças vendeu Bolo-rei como se a tradição de venda de tal produto em Bragança fosse um costume muito antigo. O Zé Araújo sabia da arte e foi um sucesso a venda do produto nesse Natal e Ano-novo. Quero aqui dizer, muito particularmente às Senhoras de hoje e Meninas daquele tempo, que os célebres Mil-folhas do Poças foram uma ideia do Zé Araújo, que trabalhou na Lusitana de Braga onde se fazia disso a granel.
Mas voltemos ao Bolo-rei.
O Zé Araújo tinha duas filhas e uma delas adoeceu o que colocou um obstáculo ao fabrico, pois ele passou a ter que levar a criança ao médico e o caso era só possível de ser tratado no Porto ou Braga. A solução foi o pasteleiro cessar funções em Bragança e contratar outro que o pudesse substituir. Desta vez o Zé Poças usou dos seus conhecimentos pessoais e conseguiu contratar um outro mestre de Braga de nome Gomes Da Costa que era de facto um mestre no ofício.
Chegou a Bragança no mês de Dezembro de1966 e revolucionou por completo a arte de fazer pastéis e afins em Bragança. Em 67 foi necessário a equipa de pasteleiros (eu, o Zé Leal, recentemente falecido e o Mestre Gomes da Costa irmos para a Padaria do Alexandre Afonso pois o local de fabrico na Rua Direita era exíguo para a quantidade de Bolo-rei vendida naquele ano.
Repartimos as tarefas e eu fiquei na Rua Direita, fazendo toda a restante Pastelaria para a charcutaria e o Mestre e o Zé Leal foram para cima com a missão de termos Bolo-rei até ao último freguês. Eu quando acabava a Pastelaria seguia para cima a ajudar os outros.
Haviam já passado 7anos desde a primeira vez em que eu tinha feito a prova deste artigo que feito com boa formulação e bem decorado com frutas é coisa deliciosa! Está relatado sumariamente como se fazia Bolo-rei nesse tempo e as variantes que os meus ilustres colegas foram alterando com fórmulas diferentes e também com diferente imagem.
Com matéria similar inventaram-se outros Bolos que passaram a tomar o lugar que foi Rei por dezenas de anos, mais de 1 século e o panorama da Pastelaria enriqueceu-se com outros sabores mais seleccionados que têm como recheio frutos secos integrais ou moídos e com chila que é por si só uma festa do paladar. Quando decidiram que seria uma nova maneira de fazer Bolo-rei e que seria assim chamado, creio, cometeram um erro de palmatória, pois ao pretenderem aumentar a escolha de um determinado produto juntaram-lhe outros que sendo fantásticos do ponto de vista da Top Quality apresenta os predicamos suficientes mas é tudo menos Bolo-rei. Não pretendo pôr defeitos ao que os não tem, mas parece-me precipitado e uma falta de imaginação não se haver estudado mais o assunto para evitar possíveis confusão em coisas que são apenas modas novas.
Após regressar da Tropa voltei ao Poças tendo antes disso passado algum tempo antes pelo Flórida como empregado, tendo de seguida consumido quatro anos e meio na Dómus, tendo terminado com a minha passagem pelo Flórida de parceria com o meu irmão Rui. Foi uma experiência fantástica tanto do ponto de vista profissional como social. Em todas as fábricas onde trabalhei, fazíamos Bolo-rei pelo Natal e eu e as equipas com quem trabalhei produzimos centenas de toneladas deste produto que se tornou ao longo do tempo num dos produtos mais vendidos em Portugal e nas Comunidades Lusas por todo o mundo. Ainda hoje quando sinto o aroma saído do forno sempre que se procede à cozedura, me vem à boca o doce sabor da primeira fatia de BOLO-REI.
No tempo em que fui rapaz, até ali era menino, era um tempo de mudança. Pode parecer a algumas pessoas que essa mudança se operou num curto espaço de tempo, mas a verdade mesmo considerando as mudanças rápidas pós 25 de Abril, em certos sectores de actividade ligados à pequena indústria foram lentos em modernizarem-se.
Vou escrever algo que me diz respeito e que foi sempre a minha actividade profissional mesmo que reconheça que nem a arte era complexa nem o meu estatuto como operário fosse minimamente relevante.
Pois bem, comecei a fazer Natais com 11anos. E o caso não é assim tão simples como parece se olharmos para a dificuldade que encontramos quando queremos produzir certas mercadorias sem equipamento e alojamento de qualidade, o que leva a tempo e esforço não compatíveis com o valor da mercadoria considerando a especificidade do produto fabricado.
Ora para mim que comecei a trabalhar aos onze anos incompletos, o facto de a arte de Pastelaria ser totalmente desconhecida, se exceptuarmos os bolinhos que via na montra do Chico Machado e os biscoitos na montra do Pousa que por esta altura do mês de Dezembro cintilavam no escaparate que nos fazia sonhar e me faziam pensar como devia ser diferente da minha, a vida da gente do Porto e Lisboa que fabricavam e consumiam aquelas maravilhas doces que faziam para o Natal. Foi uns poucos meses antes que o Senhor Ribeiro decidiu vir para Bragança e abrir um estabelecimento onde se fabricava e vendia Pastelaria que se equiparava àquela que víamos pelo Natal na montra do Pousa. A verdade era que o espaço ocupado pela fábrica era velho e não sendo um espaço sujo, que definitivamente não era, também não era o ideal para o que as várias licenças de que necessitava para laborar mencionavam e que titularmente a Lei exigia. Digamos que era sofrível.
Tinha sido uma Padaria onde tudo era feito à mão e onde as ferramentas eram fracas e a maquinaria não existia. Mas a verdade é que se fazia muita coisa. E por ser Natal de novo daqui a duas semanas, recordo a primeira vez que à minha boca entrou um pedaço de Bolo-Rei.
O Snr. Ribeiro havia sido pasteleiro na Confeitaria Cunha, no Porto e sabia fazer de tudo ligado à arte. O Bolo -Rei era uma das suas especialidades. Para quem conhece os ingredientes usados, hoje não será fácil fazer todos os ingredientes nobres do fabrico na própria fábrica, exemplo: toda a fruta que era usada no fabrico era conservada por ele com mestria. Era trabalho árduo que durante os meses de verão ele fazia com paciência e saber.
Recordo que a mãe da esposa do meu amigo António Salazar lhe fornecia quase toda a fruta necessária, fruta fresca que ele cozia e açucarava usando métodos complicados adicionando especiarias exóticas que eram para mim autêntica alquimia, laranjas, figos, cerejas, abóbora chila, alperce pêssegos, toda a fruta que era possível encontrar em Bragança incluindo, nozes amêndoas e pinhões. A massa era amassada à mão, numa masseira de madeira, obra de arte que nós retirámos quando fizemos a Dómus.
Não havia uma única máquina, até os ovos batíamos à mão.
Ora, a verdade é que ali se fabricavam uns quilos de Bolo-rei que tinha qualidade e que era fabricado unicamente por métodos artesanais e com fruta da região. As vendas eram em quantidade suficiente para que valesse a pena todo aquele trabalho e cuidado que o Bolo-rei como artigo de uma certa nobreza exigia.
A primeira mudança de posto de trabalho acontece exactamente no mês de Dezembro (10) de 1965 quando comecei a trabalhar no Roque Poças & Filhos. O Poças tinha montado uma fábrica pequena e tinha contratado um mestre pasteleiro, natural de Braga, que ainda era novo e que tinha por missão trazer para Bragança um tipo de Pastelaria que pudesse satisfazer, até do ponto de vista da qualidade e estética uma freguesia que era agora mais exigente e pudesse assim preencher um vazio que o Snr. Ribeiro pela sua idade e saturação já não preenchia.
Nesse ano de 1965, o Poças vendeu Bolo-rei como se a tradição de venda de tal produto em Bragança fosse um costume muito antigo. O Zé Araújo sabia da arte e foi um sucesso a venda do produto nesse Natal e Ano-novo. Quero aqui dizer, muito particularmente às Senhoras de hoje e Meninas daquele tempo, que os célebres Mil-folhas do Poças foram uma ideia do Zé Araújo, que trabalhou na Lusitana de Braga onde se fazia disso a granel.
Mas voltemos ao Bolo-rei.
O Zé Araújo tinha duas filhas e uma delas adoeceu o que colocou um obstáculo ao fabrico, pois ele passou a ter que levar a criança ao médico e o caso era só possível de ser tratado no Porto ou Braga. A solução foi o pasteleiro cessar funções em Bragança e contratar outro que o pudesse substituir. Desta vez o Zé Poças usou dos seus conhecimentos pessoais e conseguiu contratar um outro mestre de Braga de nome Gomes Da Costa que era de facto um mestre no ofício.
Chegou a Bragança no mês de Dezembro de1966 e revolucionou por completo a arte de fazer pastéis e afins em Bragança. Em 67 foi necessário a equipa de pasteleiros (eu, o Zé Leal, recentemente falecido e o Mestre Gomes da Costa irmos para a Padaria do Alexandre Afonso pois o local de fabrico na Rua Direita era exíguo para a quantidade de Bolo-rei vendida naquele ano.
Repartimos as tarefas e eu fiquei na Rua Direita, fazendo toda a restante Pastelaria para a charcutaria e o Mestre e o Zé Leal foram para cima com a missão de termos Bolo-rei até ao último freguês. Eu quando acabava a Pastelaria seguia para cima a ajudar os outros.
Haviam já passado 7anos desde a primeira vez em que eu tinha feito a prova deste artigo que feito com boa formulação e bem decorado com frutas é coisa deliciosa! Está relatado sumariamente como se fazia Bolo-rei nesse tempo e as variantes que os meus ilustres colegas foram alterando com fórmulas diferentes e também com diferente imagem.
Com matéria similar inventaram-se outros Bolos que passaram a tomar o lugar que foi Rei por dezenas de anos, mais de 1 século e o panorama da Pastelaria enriqueceu-se com outros sabores mais seleccionados que têm como recheio frutos secos integrais ou moídos e com chila que é por si só uma festa do paladar. Quando decidiram que seria uma nova maneira de fazer Bolo-rei e que seria assim chamado, creio, cometeram um erro de palmatória, pois ao pretenderem aumentar a escolha de um determinado produto juntaram-lhe outros que sendo fantásticos do ponto de vista da Top Quality apresenta os predicamos suficientes mas é tudo menos Bolo-rei. Não pretendo pôr defeitos ao que os não tem, mas parece-me precipitado e uma falta de imaginação não se haver estudado mais o assunto para evitar possíveis confusão em coisas que são apenas modas novas.
Após regressar da Tropa voltei ao Poças tendo antes disso passado algum tempo antes pelo Flórida como empregado, tendo de seguida consumido quatro anos e meio na Dómus, tendo terminado com a minha passagem pelo Flórida de parceria com o meu irmão Rui. Foi uma experiência fantástica tanto do ponto de vista profissional como social. Em todas as fábricas onde trabalhei, fazíamos Bolo-rei pelo Natal e eu e as equipas com quem trabalhei produzimos centenas de toneladas deste produto que se tornou ao longo do tempo num dos produtos mais vendidos em Portugal e nas Comunidades Lusas por todo o mundo. Ainda hoje quando sinto o aroma saído do forno sempre que se procede à cozedura, me vem à boca o doce sabor da primeira fatia de BOLO-REI.
Bragança 08/12/2022
A. O. dos Santos
(Bombadas)
Sem comentários:
Enviar um comentário