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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Carlinhos da Sé e do Bairro São João de Deus! II

 Não havia ninguém que não conhecesse aquela figura patusca feita homem de média estatura e corpo magro, cabelo à escovinha e barba mal escanhoada, com esguio bigodito a espreitar pelos cantos da boca. Tinha uma cara de franzina inocência, um olhar de malandreco, uma voz sibilina e uma língua afiada. Estivesse chuva, frio, vento ou sol, os paramentos eram incontornáveis: socos feitos no «Feijão Sapateiro», onde enfiava os pés envoltos em dois ou três pares de meias, umas calças gastas e justas, um casaco preto coçado, por cima da camisa desbotoada e de uma camisola de lã. Era comum vê-lo de boné enterrado até às orelhas e, por vezes, com chapéu de abas largas. Por baixo do casaco, existia uma série de funcionalidades tipo canivete suíço: do cordel grosso que lhe segurava as calças pendia uma guita com o que agarrava uma meia de lã feita mealheiro; outro baraço «tinha-lhe à mão de semear» uma navalhita, que servia para o farnel; até a garrafinha do quartilho da pinga surgia atada como vinda do nada. Esta figura patusca deambulava pela cidade enquanto espaço de vivência e labor, surgia, de vez em quando, numa ou outra aldeia limítrofe, quando lhe dava para «emigrar», subia ao São Bartolomeu ou à Serra da Nogueira, seus centros religiosos de devoção e fé, ou calcorreava os montes dos arredores, quando a inquietude procurava sossego. Por onde passava era mimoseado com comida, uma pinga e uma ou outra moeda – «a moedita prá navalhita». Agradecia religiosamente. Era um pobre de Cristo, manso das Bem-Aventuranças e um afilhado de Nossa Senhora. Prezava os benfeitores, escarnecia das maldades e deleitava-se pela vida. Normalmente na Praça da Sé e encostado à parede da igreja, o seu «centro de operações», onde era apreciado pelos transeuntes, solicitado para tarefas a partir do mercado ou das mercearias e, tantas vezes, incitado pelos «polidores de esquinas» do café Cruzeiro, rapaziada sem vintém, que passeava os livros.
O Carlinhos nasceu a 1 de outubro de 1932 na Rua São João de Deus, a conhecida Caleja. Teve como nome de batismo João Carlos Pereira Quintana e tinha uma irmã e dois irmãos mais novos: a Sr.ª Amélia, o Gualdino e o Joaquim, este morreu em Angola, durante a Guerra do Ultramar. Nasceu saudável, corpo escorreito e tinha cabelo louro comprido. Mas foi atacado, ainda pequenino, por Meningite, que nunca foi curada devidamente, e sofria de epilepsia aguda, jamais controlada e que a pinga e o passar dos anos agravaram. Perdeu os pais muito cedo e ficou aos cuidados da avó Inês, que o estimou e acompanhou, em tempos de provações. Entretanto, a avó morreu, a grande perda da sua vida, e ele foi para o Albergue, onde nunca se deu bem. Faltava-lhe liberdade, desdenhava dos cuidadores e a ausência dos irmãos e dos sobrinhos, que moravam no Bairro São João de Deus, por cima da Caleja, constrangia-o. Até que fugiu e chegou ao Bairro a dizer que o queriam matar: “Albergue nem pensar, anda pra lá o diabo vestido de branco”. Aos vinte e tal anos, arranjou-se-lhe emprego como tarefeiro na estação de comboios. Acarretava sacos e distribuía encomendas na estação de caminho-de-ferro ou levava correspondência e fazia recados pela cidade. E ia bebendo a pingoleta na taberna do António Júlio, junto à Estação, ou na Maria Francesa, na Caleja. O Sr. Queiroz fez-lhe a farda azul da ferrovia à medida, onde cravou uma chapa com a inscrição «moço de recados», e o Sr. César fazia questão de lhe dar amiúde uma aparadela de cabelo e barba. Começava a ser notado e acarinhado na urbe.
Deu-se o 25 de Abril e em tempos ditos de liberdade e de fraternidade o Carlinhos foi dispensado da ferrovia por não ter os estudos primários. O seu sustento passou a ser a praça da Sé, lugar cativo para fretes às senhoras no mercado, acompanhar o vai e vem das pessoas ou cantarolar Amália chamado a esmola. A César o que é de César! Fanava-se por moedinhas e se não sabia ler nem escrever, a fazer contas ninguém o enganava.
E as histórias do Carlinhos desfiavam como contas do rosário …

… Continua no próximo número

Abílio Lousada

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