Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Seria escusado listar aqui os benefícios de viver em comunidade, mas é capaz de ser útil mencionar os custos: em grupo acabamos sempre por amordaçar os nossos impulsos e desejos mais queridos, isto é, por abdicar de uma boa parte de nós próprios, o que, pensando bem, não deixa de ser um preço alto. Outro inconveniente gémeo deste, e igualmente sério, é que as relações entre as pessoas tendem a adquirir um caráter simulado, de onde a autenticidade anda tantas vezes afastada.
Mas no atual estado das coisas tem que ser. Deus nos acudisse se cada um desse em comunicar àqueles com quem se relaciona, mesmo os mais próximos, tudo o que realmente pensa deles. A vida social tal como a conhecemos simplesmente não existiria, pois ela depende muito da cautela que resulta em exteriorizar apenas uma fração daquilo nos vai dentro. Enquanto caridosamente douramos a pílula da realidade que propomos aos outros, o uso contido da palavra permite que as relações prossigam, o que dificilmente aconteceria se assim não fosse: se num grupo de amigos em cavaco ameno cada elemento imaginasse o que os outros já afirmaram sobre si, não havia sequer possibilidade de se terem reunido.
No dia a dia, com a exceção evidente das crianças, dos humoristas e dos tontos que, esses sim, têm o privilégio de não usar filtros sem que daí lhes advenham consequências de maior, toda a gente puxa a rédea ao que exprime em cada circunstância, refreando as ousadias potencialmente corrosivas de uma liberdade de expressão levada à letra. Uma cena de que muitos certamente se recordarão, sintomática dessas cautelas, passou-se com a única mulher que até hoje ocupou a presidência do parlamento. Penso que a certa altura quis entrar pelo melindroso tema da falta de sintonia entre a ação política e os desejos da população, o clássico divórcio entre uns e outros. Então a pobre senhora, entalada entre piscar o olho à sua classe de adoção, que lhe garantia o sustento, e a obrigação de não trair a da origem, que até a tinha elegido, foi-se deixando enredar em patéticos ziguezagues de linguagem. A coisa estava mesmo preta até que finalmente, depois de visível sofrimento, em desespero de causa, lá desaguou numa solução de compromisso de que resultou a produção de dois neologismos com os quais a nossa língua se viu de um momento para o outro soberbamente enriquecida: “inconseguir” e “inconseguimento”.
Indigesto, mas vá lá uma pessoa dizer o que pensa… Para os mais desbocados, que os há em cada canto (e em cujo número, pelos vistos, também estou metido), os poderes engendraram maneira de exercer um papel censório instituindo hábitos de linguagem adequados, neutros, “corretos”, um superego na língua das pessoas para que não se estiquem na conversa. A arrelia é que, a adicionar a esse açaime, nós já quase asfixiamos com uma cópia de constrangimentos, preceitos, normas, deveres, interditos, regulamentos, tudo coisas que limitam severamente a liberdade de cada um ser o que é.
É certo que tais cuidados se restringem ao uso público e que em privado, ao abrigo da cautelosa polidez, enquanto não for inventado um qualquer “machado que nos corte a raiz do pensamento”, cada um continua a ser ele próprio na sua consciência. Acontece que nesse lugar impalpável também esvoaçam continuamente a impotência e a revolta, o medo e a raiva, a agressividade e a frustração, assim como outros intensos sentimentos potencialmente destrutivos. Eles até se podem mascarar, sublimar, envolver em papeis de embrulho coloridos rematados com laços de fantasia, porém não deixam de ser uma realidade poderosa que é imperioso despejar de alguma forma para limitar o uso do victan, prevenir a insanidade, evitar que se rebente.
Daí a necessidade de válvulas de segurança, individuais e coletivas, que permitam extravasar essas incontornáveis tensões que nos habitam. Canais de escape que incluem, bem entendido, a linguagem na sua função emotiva por intermédio do insulto rancoroso, da má-língua ácida ou do palavrão libertador. Mas também imensas outras coisas, que podem ir do calmo e recolhido yoga, que por acaso pratico, à catarse libertina veiculada pelos carnavais ou à prodigiosa neurose do clubismo futebolístico, que por acaso não pratico.
Mas no atual estado das coisas tem que ser. Deus nos acudisse se cada um desse em comunicar àqueles com quem se relaciona, mesmo os mais próximos, tudo o que realmente pensa deles. A vida social tal como a conhecemos simplesmente não existiria, pois ela depende muito da cautela que resulta em exteriorizar apenas uma fração daquilo nos vai dentro. Enquanto caridosamente douramos a pílula da realidade que propomos aos outros, o uso contido da palavra permite que as relações prossigam, o que dificilmente aconteceria se assim não fosse: se num grupo de amigos em cavaco ameno cada elemento imaginasse o que os outros já afirmaram sobre si, não havia sequer possibilidade de se terem reunido.
No dia a dia, com a exceção evidente das crianças, dos humoristas e dos tontos que, esses sim, têm o privilégio de não usar filtros sem que daí lhes advenham consequências de maior, toda a gente puxa a rédea ao que exprime em cada circunstância, refreando as ousadias potencialmente corrosivas de uma liberdade de expressão levada à letra. Uma cena de que muitos certamente se recordarão, sintomática dessas cautelas, passou-se com a única mulher que até hoje ocupou a presidência do parlamento. Penso que a certa altura quis entrar pelo melindroso tema da falta de sintonia entre a ação política e os desejos da população, o clássico divórcio entre uns e outros. Então a pobre senhora, entalada entre piscar o olho à sua classe de adoção, que lhe garantia o sustento, e a obrigação de não trair a da origem, que até a tinha elegido, foi-se deixando enredar em patéticos ziguezagues de linguagem. A coisa estava mesmo preta até que finalmente, depois de visível sofrimento, em desespero de causa, lá desaguou numa solução de compromisso de que resultou a produção de dois neologismos com os quais a nossa língua se viu de um momento para o outro soberbamente enriquecida: “inconseguir” e “inconseguimento”.
Indigesto, mas vá lá uma pessoa dizer o que pensa… Para os mais desbocados, que os há em cada canto (e em cujo número, pelos vistos, também estou metido), os poderes engendraram maneira de exercer um papel censório instituindo hábitos de linguagem adequados, neutros, “corretos”, um superego na língua das pessoas para que não se estiquem na conversa. A arrelia é que, a adicionar a esse açaime, nós já quase asfixiamos com uma cópia de constrangimentos, preceitos, normas, deveres, interditos, regulamentos, tudo coisas que limitam severamente a liberdade de cada um ser o que é.
É certo que tais cuidados se restringem ao uso público e que em privado, ao abrigo da cautelosa polidez, enquanto não for inventado um qualquer “machado que nos corte a raiz do pensamento”, cada um continua a ser ele próprio na sua consciência. Acontece que nesse lugar impalpável também esvoaçam continuamente a impotência e a revolta, o medo e a raiva, a agressividade e a frustração, assim como outros intensos sentimentos potencialmente destrutivos. Eles até se podem mascarar, sublimar, envolver em papeis de embrulho coloridos rematados com laços de fantasia, porém não deixam de ser uma realidade poderosa que é imperioso despejar de alguma forma para limitar o uso do victan, prevenir a insanidade, evitar que se rebente.
Daí a necessidade de válvulas de segurança, individuais e coletivas, que permitam extravasar essas incontornáveis tensões que nos habitam. Canais de escape que incluem, bem entendido, a linguagem na sua função emotiva por intermédio do insulto rancoroso, da má-língua ácida ou do palavrão libertador. Mas também imensas outras coisas, que podem ir do calmo e recolhido yoga, que por acaso pratico, à catarse libertina veiculada pelos carnavais ou à prodigiosa neurose do clubismo futebolístico, que por acaso não pratico.
Nordeste - mar. 2019
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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