(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
É ali, quando passo pelo entardecer sobre o rio, que sinto o prazer de me demorar mais um pouco.
Ali, quando o sino da torre anuncia a tarde a recolher-se, quebrada, nas pedras e no brilho dourado das águas, enquanto a brisa dolente leva tudo aquilo que já pouco importa.
As mulheres regressam às casas brancas, alinhadas à espreita de alguém, com os silêncios pendurados nas janelas ao lado das roupas secas dos estendais.
No tasco da esquina, os homens, habituados à rotina do caminho, pedem cervejas e fingem gargalhadas. Uma aceitação resignada de que os dias são sempre os mesmos e que o mesmo é quanto lhes serve.
Alguém lê o jornal, sentado num banco de madeira. Noto-lhe outro cansaço. Talvez procure no perfume das páginas novas, as esperanças que o passado lhe roubou. Se tem o corpo já em queda, o pensamento ainda não. Por isso, acredita que o destino pode mudar de ideias. Quem sabe?
Mais além, o velho de chapéu gasto e botas pesadas com o fumo do cigarro nos olhos e na boca o sabor da espera. Arrasta-se como um gato que se recolhe antes da noite. E não há fé naquele corpo cansado de quem aguarda há muito pelo repouso frio da ausência.
Próximo, dois namorados, com pressa de tudo, repetem-se nos beijos de muitos recomeços, sem perceber que também eles vão aprender a viver calados entre perdas e a continuarem a ser um do outro mesmo quando já não souberem disso.
Recordam-me que, no fundo, também há o amor, claro que há. Daquele onde existe gente de verdade. Daquele que continua, teimoso e com fé, mesmo quando, um dia, as juras desaparecem nas curvas da vida. E se discute sobre uma torrada fria como se a torrada fosse o problema e não a fome de afeto que arde no corpo. Na esplanada do café, um casal não repara que é essa perfeita imagem de quem já partilhou uma estação feliz e depois a esqueceu.
Entro na igreja. No ar, o odor a cera e a perdão. Lá dentro, ajoelhada, uma mulher reza e suspira. Porque precisa de uma pausa entre o seu desgosto e o mundo. O padre passa e olha. Para perto dela, como se a visse através de um vitral. Ela levanta a cabeça, mas nenhum fala. Ele, como aqueles que aprenderam a não se meter na vida de ninguém, desliza adiante, em direção a outros prantos. Com o coração já mais à frente, pensa apenas no ritual que lhe cabe cumprir.
Volto às gaivotas, em bando, a gritarem num voo que leva embora o resto do dia. Parecem felizes. Não têm lembranças para esquecer. Falam por todos os que já não conseguem dizer nada e parecem troçar da mania humana de ficar sempre onde mais dói.
Entre duas ruas estreitas, um vendedor acena-me, encolhido na ferrugem do assador. Um gesto quase impercetível. O meu sorriso foi curto, só o suficiente. Não precisávamos de mais. Estendi-lhe as moedas e escutei o crepitar das castanhas estaladiças. Nesse simples movimento couberam-me todas as memórias e quis voltar a ser criança. Segui como quem se deixa perder, devagar, entre as vozes dos estranhos que passam e a inspiração daquelas brasas acesas.
No horizonte, as sombras de quem vai partindo e dos que ainda tardam.
E entre mim e o tempo, continua o rio. Ah! O rio! Lento, transparente e inevitável. O rio que nos ensina o desapego da vida não quer saber das nossas pequenas mortes.
Ouço a voz do sino, mais uma vez, a descer pela encosta sobre o rebanho de pedra e cal.
Três badaladas. A dor depois dos risos. As pessoas depois do amor. As vidas depois da vida.
Cala-se.
E eu fico ali. Ali, a ver envelhecer o dia. Escuto o sol do outono a despir a ponte. Despede-se da luz. Diz-me que o mundo é um lugar pequeno que cheira a saudade. E que a beleza também é feita de fim.
- Paula Freire -
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.


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