Desde tempos imemoriais que o ser humano recorreu a rituais para compreender o mistério da vida e o poder da natureza. Entre os gestos, sons e símbolos que atravessaram os séculos, o fogo, a máscara e a dança permanecem como três pilares de uma linguagem ancestral que une o profano ao sagrado, o corpo ao espírito, o homem à divindade. Estes elementos, que encontramos em tradições de todo o mundo e de modo especial nas festas populares portuguesas, falam de um mesmo impulso, o desejo de celebrar, de exorcizar o medo e de tocar, ainda que por instantes, o invisível.
O fogo é o primeiro e mais poderoso desses símbolos. Nas aldeias, nas romarias e nas festas de inverno, o fogo brilha como um coração ardente em torno do qual se reúne a comunidade. O fogo é calor, é luz, é purificação. Desde os antigos rituais pagãos até às festas em honra dos santos, o fogo marcou o renascimento cíclico da vida. As fogueiras de São João, por exemplo, trazem consigo o eco de rituais solares pré-cristãos, onde se celebrava o solstício e se pedia fertilidade para a terra. Saltar a fogueira é ainda hoje um gesto simbólico de coragem e esperança, uma passagem do velho para o novo, uma forma de purgar o mal e renovar a alma.
O fogo é também ambíguo, destrói e cria, consome e purifica. Essa dualidade é o que o torna sagrado e profano ao mesmo tempo. No fogo habita o divino que dá vida e o inferno que a consome. O homem, ao dominá-lo, sente-se próximo dos deuses mas, ao temê-lo, reconhece os seus limites.
A máscara, por sua vez, é o rosto do mistério. Quando alguém se cobre com uma máscara, já não é apenas um homem, é outro, é muitos, é ninguém. Nas festas dos Mascarados de Trás-os-Montes ou nas celebrações do Entrudo, a máscara permite libertar o instinto e dar corpo ao caos, sem que a ordem se perca. Por trás da madeira colorida, do latão ou da cortiça pintada, o indivíduo desaparece e renasce como personagem coletiva, símbolo de forças primordiais que a comunidade convoca para celebrar o ciclo da vida e da morte, do inverno e da primavera.
A máscara oculta, mas também revela. Ao esconder o rosto humano, revela a essência arcaica do ser, aquilo que o tempo e a razão tentam esconder. Nela, o sagrado e o profano dançam lado a lado, o riso, a irreverência e o desejo convivem com o respeito pelo mistério e com a evocação do divino.
E então vem a dança, o movimento que une o corpo à terra e o espírito ao céu. A dança é linguagem universal, anterior à palavra, nascida do impulso de celebrar e de comunicar o inefável. Nos rituais religiosos, ela é oferenda e nas festas populares, é libertação. O corpo que dança entra num estado de transe, num equilíbrio entre o domínio e o abandono. É o momento em que o homem se entrega ao ritmo da vida e, por instantes, sente-se parte do todo.
Nas tradições populares portuguesas, nas danças das máscaras, nos pauliteiros de Miranda, nas rusgas e nos giros, a dança é também uma forma de memória viva. Os passos guardam séculos de história, os gestos repetem os gestos dos antepassados. Dançar é rezar com o corpo, invocar o passado e celebrar o presente.
Quando o fogo arde, as máscaras correm e a dança acende-se, o espaço torna-se ritual. O sagrado e o profano deixam de ser opostos, confundem-se, completam-se. A festa torna-se um teatro cósmico onde os papéis se invertem, o homem brinca com o divino, e o divino parece sorrir ao homem. O riso, o vinho, o som dos bombos e dos ferrinhos, das castanholas, misturam-se com o incenso e as orações, e nessa mistura habita a alma profunda de um povo que soube sempre celebrar a vida sem negar o mistério.
O profano, aqui, não é negação do sagrado, é a sua face terrena. É o modo como o ser humano traduz o transcendente em festa, em carne, em canto e em movimento. Ao redor da fogueira, entre máscaras coloridas e danças vibrantes, o povo reencena os dramas da existência, a morte e o renascimento, a ordem e o caos, a luz e a sombra. Através desses símbolos, o homem compreende que o sagrado não vive apenas nas igrejas ou nos altares, mas também no ritmo do corpo e no calor da comunidade.
O fogo, a máscara e a dança continuam, século após século, a renascer nas festas e tradições. São heranças vivas de uma sabedoria antiga, lembranças de que o homem precisa de rituais para se reconciliar com o mundo. As chamas que se acendem, as máscaras que se vestem e cada corpo que se move ao som do bombo, reafirmam a mesma verdade, o sagrado habita no gesto humano, e que a alegria, mesmo quando profana, é também uma forma de oração.

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