sexta-feira, 8 de maio de 2015

Uma Homenagem aos Emigrantes de 60/70

Por: Carla A. Gonçalves:

Numa edição de autor, Francisco da Costa Andrade registou as memórias daqueles que foram a salto em busca de uma vida melhor.
Francisco da Costa Andrade nasceu nos anos 40, em Carção, onde viveu até à sua juventude. Filho de sapateiro, com algumas terras e posses, não se pode dizer que era de famílias ricas, mas era o que então chamavam de “remediado”. Os seus pais, com muito esforço, conseguiram que ele e o seu irmão seguissem os estudos, não tendo que andar a trabalhar à jeira ou procurar um ofício para sobreviver. Sobreviver, sim, porque naqueles tempos sobrevivia-se. Sobretudo no Nordeste Transmontano. Trabalho não havia e era no verão que se conseguia ganhar meia dúzia de escudos nas ceifas do cereal e, depois, nas vindimas.
“Ali dizia-se que escurecia em Setembro, para amanhecer em Março. Fome e dramas pungentes...No Inverno, os mais pobres faziam o rebusco da azeitona, da castanha e roubavam umas nabiças. Garantiam assim a passagem do Natal, comendo, quase só, castanha e caldo de nabiças”, recorda Costa Andrade.
A cantina da escola primária, mandada construir e sustentada pelos beneméritos Irmãos Santos e a obra social desenvolvida pelo saudoso P. Amândio Lopes, uma das figuras mais queridas de Carção, inovação, naqueles tempos, em todo o planalto mirandês, asseguravam às crianças, pelo menos, refeição quente por dia. O pão que acompanhava a sopa, muitas vezes, escondiam-no discretamente para partilhar à noite com os irmãos.
Com oficina no centro da aldeia e sendo regedor, o pai de Francisco da Costa Andrade cedo se tornou um conselheiro económico, social, religioso, humano e familiar. Tudo passava por ali.
Com o final da 2ª Guerra Mundial e a Europa em recuperação, começou a correr por terras lusas que em França havia trabalho e que os salários eram muito superiores à média do que se recebia em Portugal. Mas partir, não era fácil, como hoje. Com as fronteiras fechadas, partir implicava entrar numa espécie de jogo que podia ser muito perigoso. Era preciso sair pela calada das noites sem luar, atravessar a fronteira por trilhos escondidos e confiar, cegamente, em desconhecidos que, a troco de dinheiro, garantiam a viagem até França. Mas se partir não era fácil, ficar deixava de ser opção quando as contas começavam a acumular-se e a comida a escassear. Francisco da Costa Andrade assistiu a muitos destes dramas na primeira pessoa. Era, então, um jovem de 18/19 anos. Via partir pais de famílias, homens com idades entre os 25-30, muitos deles sem saberem ler ou escrever. Do que passaram e do que sofreram inicialmente pouco se falava, havia a ilusão de mostrar que se venceu.
No entanto, à noite, no calor da oficina do seu pai, por entre um copo de jeropiga “melhor que vinho fino”, alguns abriam o coração e contavam todas as misérias sofridas. “Inicialmente começaram a vir notícias que se ganhava muito dinheiro, mas os primeiros que foram, mentiram com quantos dentes tinham. Havia quem fosse sincero e atirasse: “ele que se cale! Estive lá tanto tempo sem comprar pão!””.
Dificuldades que, ainda hoje, poucos conhecem e que as novas gerações, algumas delas luso-descendentes já nascidas em França, nem sequer as imaginam.
Sem habilitações, sem conhecimentos, sem saber falar a língua, para onde iam os portugueses que fugiam a salto? “Para o serviço que o francês não queria: os saneamentos, as infra-estruturas da construção, a agricultura e semelhantes. Ganhavam uma miséria mas, para Portugal, era uma fortuna porque no seu país não ganhavam nada”.
A ida, por norma, era combinada no centro da aldeia. Era comum, naquele tempo, aparecer pela taberna um “passador”, um homem, muitas vezes, forasteiro, que se apresentava bem-visto e que perguntando como corria a vida, aliciava aquela gente com sonhos de fortunas fáceis. Combinava-se encontro, iam aos grupos, à noite. Primeiro passavam a fronteira de Espanha, depois a fronteira de França. Chegavam lá e viam-se no meio da rua, sem documentos, sem uma mão amiga que não fosse, por vezes, os companheiros de infortúnio.
“Houve muitos que chegaram a viver em barracas, em Paris. Dormiam em cima de paletes e quando chovia tinham que se levantar. Há quem conte que, de noite, os ratos e ratazanas se passeavam por cima deles. A situação era muito má porque sem documentos nem um simples contrato de arrendamento conseguiam, frisa Costa Andrade. Muitos deles contaram com a boa-vontade de franceses que os empregaram e ajudaram. Outros, no entanto, foram explorados. O que é certo é que, inicialmente, muitos deles, para conseguirem amealhar algum dinheiro, tinham de se sujeitar aos mínimos dos mínimos e, se hoje nos espantamos por ver que há quem procure bens no lixo, é porque deixamos que a memória curta nos atraiçoe, porque os emigrantes portugueses também tiveram de o fazer, nas célebres “pubelas”, como nos lembrou Francisco. Na altura, a França estava a recuperar da guerra e havia incentivo ao consumo e ao desenvolvimento da indústria e do comércio, sendo fácil encontrar no lixo muitas coisas de valor que, não raro, davam para a família toda.
Quando regressavam em Agosto “havia necessidade de provar que jogaram bem, quantas vezes, sabe Deus, o que ia por lá!”.
Com a abertura da Alemanha aos emigrantes, onde só se conseguia entrar com documentos, a França acabou por ter de apertar a legislação e os empresários começaram a fornecer documentos.
“O emigrante português não era burro e com documentos na mão, começava a exigir. As condições melhoraram e os filhos da primeira geração já não passaram nada que se parecesse com o que passaram os seus pais”.
Estas e outras histórias ouviu-as Francisco da Costa Andrade, algumas viveu-as. Como aquele ano em que não houve Natal em Carção. Um grupo de homens que se preparava para ir a salto para a França, acabaria detido na fronteira. Regressaram à aldeia acompanhados da GNR, roubados e humilhados, sem nada que por na mesa e com a tristeza de ver o grande sonho por terra. Foi este momento marcante que, um dia, quis abordar na revista Almocreve e daí surgiu o desafio de escrever um livro que guardasse estas memórias de histórias que se repetiram por toda a fronteira, de Valença ao Algarve.
Apercebendo-se da ignorância total das gerações seguintes, quis guardar a memória viva dos que partiram e que, com muito esforço e muita luta, acabaram por vencer na vida. E é gente que merece uma grande e reconhecida homenagem que não passa por elementos escultóricos em rotundas ou festivais de música pimba. É que foi com o suor, o trabalho e o sofrimento dos muitos emigrantes, a maioria transmontanos, que Portugal assegurou, então, o equilíbrio das finanças públicas, à custa das divisas que iam chegando e que os emigrantes portugueses iam amealhando no banco, sobretudo para construírem a sua casinha.
“Vinham carradas de dinheiro, o emigrante não pensava em investir”, recorda Francisco, com a autoridade de quem esteve ligado à banca, na sua vida profissional. “Nunca nenhum Governo reconheceu a influência que os emigrantes tiveram no equilíbrio das contas públicas. É preciso relembrar a dor e perpetuar o triunfo”, considerou.
Com mais de 150 histórias, algumas das que guarda memória, outras que foi ouvindo, Francisco da Costa Andrade decidiu avançar com a publicação do livro – “Destinos jogados em vidas a salto”, onde reúne 21 dessas memórias, sem ficção nem romance, muitas vezes em discurso directo, com o tratamento adequado e alterando apenas os nomes das pessoas em causa. Quis assim “pagar à geração” do seu tempo, respeitando religiosamente o mais absoluto anonimato.
“Se eu tive condições para estudar, acho que tenho obrigação de investir algo em favor deles. Vi-os partir e, dos que partiram, alguns, trabalharam para o meu pai, comi batatas que eles cavaram, bebi vinho que eles cultivaram. Tinha essa dívida de gratidão para com eles”, confessou ao Mensageiro.
A expensas próprias editou 500 exemplares, com apoio de algumas entidades, prefaciado por Adriano Moreira que, num texto sentido, deixa também o alerta para a necessidade de se reconhecer o valor dos que, com tanto esforço, partiram.
A venda dos livros reverte a favor do projecto “Um Sorriso para ti”, que se desenvolve no norte de Moçambique para ajudar as crianças, uma missão em que o autor se envolveu, dando continuidade à formação humanista aprendida desde cedo.
Para ilustrar a capa e cada uma das histórias relatadas, escolheu quadros do pintor António Valença Cabral, sob a orientação artística de Isabel Dias Cabral, deixando às mãos da subjectividade de cada a interpretação de cada um deles. Vemos a falta de oportunidades de uma geração “amarrada” a uma terra rodeada de montes e vales, a fuga, o verde da esperança, o medo e a escuridão, o triunfo suado.
Hoje tudo mudou, mas há uma nova leva de juventude frustrada, altamente qualificada, que procura noutras paragens o que lhes é negado em seu país, muitos pagando à França aquilo que a França deu aos seus antepassados.

1 comentário:

  1. A leitura deste texto é recomendável aos que, aparentando ter perdido a memória, aparecem, de quando em vez, a evocar e celebrar aquela figura, o principal responsável pelos negros quase 48 anos que medeiam entre 28 de maio de 1926 e 25 de abril de 1974 e que a diáspora ilustra. Relevam-lhe o ter resolvido o problemas das finanças públicas e ter amealhado reservas de ouro no Banco de Portugal... Sim, e à custa do quê e de quantos? A sua política foi uma forma de atuar em tudo idêntica, embora numa versão mais moderna, à dos que guardam o dinheiro no colchão à espera que o mesmo se reproduza... E o País e as suas gentes? Continuando a seguir o modelo agrário tradicional, tudo fez para impedir o desenvolvimento industrial do País. Assim, manteve as velhas relações de trabalho quase escravo e a miséria do seu povo. Mas, apesar de tudo, os camponeses, mesmo quase analfabetos, tiveram a necessidade, mas também a lucidez, de procurar solução para os seus problemas mais prementes: a subsistência, própria e de suas famílias, com um mínimo de condições de dignidade que a dita nefanda figura lhes recusava ou os impedia de alcançar.

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